sábado, 30 de janeiro de 2010

O gajo das botas

Já chamei muita coisa ao meu amigo V. Muita mesmo. Mas mesmo assim, nunca acho ser o suficiente, ou melhor, ainda não encontrei a palavra certa, eu, que percorro o dicionário dia após dia e o tenho como livro de cabeceira, para que ajude a corrigir-me, para que me melhore.
Um problema técnico qualquer que não é para aqui chamado dificulta-me ouvir as mensagens de voz que deixam no meu telefone. Mas sabia que o V. deixara uma e fiz tudo para a ouvir. Consegui, ouvi e aumentei a sensação de urgência em ter uma palavra que o defina. Mas ao mesmo tempo penso que uma palavra só é infinitamente pouco, mesmo que a palavra seja 'Mundo'. Já pensei em 'Universo' mas também a acho atarracada.
Leio as cartas que me escreve, leio o blog com nome impronunciável para mim que estou habituada ao um dó li tá da vogal e consoante, vogal e consoante sabendo que é uma deficiência não saber ler nem compreender consoante e consoante, consoante e vogal e consoante e consoante e por aí fora.
Aqui fica publicamente dito que leio o V. como quem lê Proust, como um clássico. Com uma diferença fundamental, o V. escreve para mim. E o que é estranho no meio disto é que o ouço dizer na mensagem - e era mesmo ele, eu conheço-lhe a voz - que espera que eu leia o blog dele embora se sinta meio envergonhado da sua pobreza...
O V. fala não sei quantas línguas, disserta sobre a cultura europeia antiga, moderna, contemporânea e futura com a classe da medalha de ouro da patinagem artística, desporto que acho belo, entre muitos, em duas linhas converge no pensamento político de quem acha fascinante e de quem acha uma merda, mistura pensamentos de gente de quem nunca ouvi falar mas sei existir, pelo meio põe um poema em norueguês, chama mortos e vivos à conversa com uma lucidez que me deixa estarrecida e depois... envergonha-me quando deixa no meu telefone uma mensagem a dizer... que se sente envergonhado.
Será a palavra 'Enigmático' uma boa definição? Esperem, eu já tinha decidido que uma palavra só era redutora, portanto não pode ser...
Mas a verdade é que me dava imenso jeito... preciso de catalogar este rapaz!
Leio o blog dele e sinto-me um burro a olhar para um palácio, mais, aqui confesso a minha inveja pela minha falta de capacidade de escrita, pela minha falta de capacidade de relacionamento das coisas, pela minha falta de capacidade de memorizar como ele tem, que não esquece que fulano ou beltrano disseram isto ou aquilo, nos livros tal e assim assim.
Será a minha memória tão selectiva que só consigo fixar a página dos signos nos jornais?
O V. faz-me descrições onde sinto o cheiro da terra que ele pisa naquelas terras do norte da Europa. Sinto frio não a ver fotografias, mas a ler a descrição da neve a cair. Sinto-me empolgada com certos autores não por os ler, mas por deles ter notícias pelos olhos do V.
E a palavra? Que palavra há-de ser...?
Por mais que pense não me ocorre uma adequada... a não ser... talvez, não sei... Rapaz...
Um rapaz tem o mundo nas veias e os olhos no infinito, tem esperanças e não desiste, é teimoso, por vezes até demais, persegue o amor e, acima de tudo, tem uma coisa maravilhosa, deixa-se encantar. Esta capacidade de encantamento não é para qualquer um, é só para quem sabe ser Rapaz. Para quem é rebelde e não se acomoda, para quem não existem fronteiras nem distâncias. Para quem sabe fazer rir e chora connosco das nossas tristezas. Para quem é amigo para a vida.

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