quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

1 de Janeiro de 2006

João
Vivemos juntos e, no entanto, parece que não nos conhecemos. Dói-me esta falta de aproximação, esta vida estranha, cheia de vazios colectivos, a que tu chamas falta de vida e custa-me ouvir-te dizer que não temos vida. Eu tenho. Mas o que posso eu dizer da minha vida, que tu não saibas…tantas coisas… é cheia. Sem dúvida. De quê? Não vou falar do Duarte, já não concebo qualquer existência sem ele. É ponto assente que participará em toda e qualquer existência da mãe. Boa ou má. Mas não, não tenho o que quero. Começo a sentir no ar, como um fogo longínquo que se pressente, algo que tenho perseguido. A sentir, ainda e só. Quero mais. Sem dúvida. O quê? Todos os pedaços de mundo que me apetecerem. Não, não quero nada de mão beijada: quero sentir a dificuldade do caminho. Quero ir a pé, absorver e cheirar. Aprender a andar. Não de novo, vou aprender agora. Saída da selva, qual tarzan, vou até à cidade. Largo a cidade e vou ao campo. Farto-me do campo e vou à montanha. Subo e desço e volto a palmilhar o que desconheço e enveredo pela primeira vez no desconhecido. Banho-me em supostas incongruências que nunca fizeram tanto sentido. Caso-me com o vento e mudo-me para a casa dele. Serei incapaz de arranjar má vizinhança com as nuvens que, quando se cansarem, se desfazem em água e vão polvilhar a terra. Terra onde dificilmente sustenho os pés. Apesar da força que faço. Penso insistentemente nas histórias que a minha avó me contava, em que havia um aventureiro que ia correr o mundo. Correr o mundo. deve ser a actividade que se deve fazer com mais calma, sem correrias. As folhas das árvores na Primavera não chegam para contar as vezes que eu pensei que, um dia, seria eu a correr o mundo, como aqueles homens de que a minha avó me falava. E porque seriam sempre homens? As mulheres estão tão atarefadas que não têm tempo de se aperceber que o mundo existe, muito menos para o percorrer. Estão atarefadas em ficar quietas no seu canto, em tarefas que elas próprias inventaram e valorizaram para estar atarefadas. Ser mulher é uma tarefa. Claro que é, mas é uma tarefa vazia, sem conteúdo, tão genérica como imortal. E a mulher eternamente será atarefada. Parte da tarefa das mulheres é ocuparem-se em não serem homens. A quietude do seu canto não as deixa perceber como é bom trocar de lugar e podermos ir correr mundo. Mas qual é o objectivo de correr o mundo? Enriquecer, claro. Quero ser cansada de rica, por conhecer gente que nem suspeito que existe; estafada de milionária, por entender idiomas falados com o sorriso; perder-me em riqueza, por experimentar e viver sensações que me esperam; percorrer os caminhos de ouro e prata das mais pequenas e maiores cidades do mundo. E voltar. Como quem se perdeu e voltou a encontrar. Quero uma parte daquelas vidas que pertencem a quem não tem medo de viver, de quem não tem medo de ganhar e perder, de quem é mulher e homem, de quem sabe que só tem uma vida e quer viver cada dia como se fosse o último.
Se tu, João, pensas que não tens vida, eu tenho-a a dobrar, mas não sinto que queiras partilhar esta dádiva comigo. Temos que falar. Como gente crescida.
Magoa-me despedir-me assim, mas é a realidade…

Tua…por enquanto…
Camila

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