sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com as capas dobradas - II

O pai vendia andares e lojas e garagens e vivendas e era tão persuasivo que os clientes entravam na imobiliária a dizer quererem uma casa em determinado local e compravam-na noutro, pagando ainda mais, pois consideravam que lhes tinham feito um favor. Guardava fotografias do tempo da tropa quando era responsável pelas rádio-transmissões e pregava partidas a todos os moradores do quartel. Adorava contar a história de quando faziam rondas nocturnas e roubavam os vasos com plantas que os moradores deixavam ao fresco, às suas portas. A situação foi de tal ordem que um dia, os moradores foram queixar-se ao quartel, no sentido de pedirem ajuda contra aquela malandragem que agora tinha dado em roubar vasos. Qual não foi o espanto dos procuradores dos habitantes de Beja, quando viram as suas adoradas e bem tratadas plantas a decorarem os corredores e a sala de espera do quartel!
Estivera quase a ir para África. Mas não fora. Com grande pena da filha que vivia na esperança de um dia lá ir, àquela África longínqua e distante, quente e misteriosa, verde e castanha, de largas avenidas como lhe contavam inúmeros ‘retornados’ que conhecia. Onde as pessoas passavam a passagem de ano na praia e andavam de cavas no Natal. Não lhe restava mais do que vê-la através do panfletos da agência onde trabalhava e pensar que a esperança é a última a morrer.
O pai sempre arranjara bichos-da-seda para as filhas e agora enchia caixas de camisas e de sapatos, para o neto. O grande móvel da sala tinha uma espécie de tiara feita de caixas onde os bichinhos viviam, cobertos por folhas de amoreira. Os bichos-da-seda eram uma das suas duas ocupações favoritas. A outra consistia em ler na casa de banho: guerras e pazes, histórias das segundas guerras mundiais em doze volumes, histórias da humanidade noutros tantos, já tinham marchado, durante a satisfação daquela necessidade fisiológica que, de tanto ler em simultâneo, ninguém percebia qual era a tarefa mais importante e não conseguiam separar uma da outra. Estava na casa de banho, estava a ler. No meio, devoravam-se revistas femininas, de informação geral, portuguesas ou estrangeiras. Tudo o que vem à rede é peixe.
O pai devia ser o elemento da família que menos gritava, mas lançava uns olhares mortíferos que assustavam qualquer quadro pendurado nas paredes. Passava-lhe a fúria como uma onda se desfaz na areia e ele arrependia-se sempre de não ter gritado, como todos os outros faziam. Adorava a mãe, de uma forma doentia. Se ela estava doente ele agia como se ela estivesse à beira da morte. As filhas reagiam e todos acabavam aos gritos. Namorava com a mãe desde os catorze anos. Quando o pai dela descobrira, dera-lhe uma sova, a ele, com um pau de marmeleiro, que o deixara negro durante três quinze dias. Mas o namoro vingara e eles casaram. Pelo meio ele namoriscava amigas dela e ela, menina de bem, ainda por cima sempre com a sombra do pau de marmeleiro na consciência, não só o ocultava de toda a gente, como lhe perdoava. E lá casaram. Fotografias do casamento, só uma. O fotografo contratado para o efeito pelo pai dela, não apareceu e foi o vizinho Zé, com a máquina que o filho lhe trouxe da Suíça, quando a Suíça ainda não era Suice, pois os emigrantes ainda não a tinham baptizado assim, que tirou a única fotografia do casório, e mesmo assim conseguiu apanhar melhor os bêbados que vieram brindar à noiva, ao lado da porta da igreja, do que os próprios noivos.
Mas, paciência, tinham uma certidão de casamento e, essa, haviam de ficar com ela para toda a vida.
O pai, quando soube que a filha tinha sido presa, emudeceu.

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