terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com as capas dobradas - IV

O cunhado era alguém à parte. Claro que fazia parte da família, mas era diferente de todos eles. Ela e a irmã perguntavam-se com frequência, como é que ele existia…e como é que esta tinha casado com ele.
Chegava a casa e despia o fato, comprado à força de choros e súplicas da mulher, que os que tinha estavam velhos e era mesmo preciso, que o trabalho que desenvolvia obrigava a um fato novo e mais cem por favores, vestia um casaco de malha aí com vinte anos, coçado até mais não, mas cumprindo a sua função de casaco, aquecendo e, principalmente, protegendo a camisa cujo preço ele nem sonhava, pois tinha sido a mulher a comprá-la e escondera-lhe a etiqueta. A estas horas já a gravata estava pendurada no seu devido cabide, bem como sapatos, limpos e no sítio certo. Passava a vida a dizer cuidado com os pés, quando se entrava para o carro, de modo a que os outros ocupantes batiam com os sapatos, chinelos, botas, para que não entrasse areia, lama, terra, pó e tudo quanto vem agarrado aos pés. Não suportava nada desarrumado, loiça, roupa, papéis, livros, fosse o que fosse e dedicava tempo sem fim às arrumações, de brinquedos do filho, que andavam sempre num virote, espalhados pela casa, as revistas da mulher que andavam dobradas nas páginas das reportagens que eternamente lia e que se encontravam debaixo do sofá, na casa de banho, na cozinha, na cabeceira, no carro, fora as que perdia em cafés, restaurantes, comboios e afins.
Ele raramente perdia fosse o que fosse, se bem que houvesse uma espécie de teatro instituído e oficializado antes de saírem de casa, pois ele nunca sabia onde tinha posto as chaves. Tirando isso, era perfeito. Baixava sempre a tampa da sanita, não apertava a pasta de dentes em cima e sim em baixo, de modo a que toda a pasta fosse aproveitada, não só apanhava a roupa da corda, como a dobrava, limpava janelas quando as via com pó, mesmo tendo uma empregada em casa quatro dias por semana, depois de jantar, limpava o fogão que era um mimo, não deixava o lixo sair do caixote, despejando-o diariamente, dobrava as toalhas do banho depois de se limpar. Quando viajavam, o porta bagagens era escrupulosamente arrumado e tudo acondicionado como uma prateleira de supermercado acabada de compor. Os CD’s dentro do carro tinham um lugar certo e só aquele. Os bancos de trás eram tapados com um lençol, o que não evitava o eterno cuidado com os pés.
Uma ocasião, em férias na Bretanha, ele, a mulher e o filho, a irmã da mulher e o respectivo Robin, procuravam o túmulo do grande feiticeiro Merlin. Andavam para a frente e para trás há quase duas horas, perdidos numa floresta digna das lendas do Rei Artur, da fada Viviane, e de todas as Morganas e Lancelotes que viviam na imaginação da mulher, quando, fartos de tanto andarem de carro resolveram parar e perguntar se o local era mesmo aquele. Depois de lhes confirmarem que era ali sim senhor, só tinham que andar um pouco pela floresta e rapidamente dariam com o sitio, lá mais à frente no meio do matagal havia indicações, não havia que enganar, e lá foram eles no meio dum lamaçal enorme e eis que de repente a cunhada perde o equilíbrio e cai de chapa na lama que era mais que muita e diz uma das famosas frases que ficaram para toda a eternidade, na família:
-Ai... Ai... Caí... Caí...
Seguiu-se uma gargalhada geral perante o aspecto dela e rapidamente todos pensaram o mesmo: como iria ela entrar agora, assim, naquela figura, dentro daquele imaculado carro? Como por magia, talvez com uma ajudinha do próprio Merlin, apareceu um outro lençol, que não aquele que se costumava pôr para ocasiões normais, e lá a rapariga se sentou com a lama já meia seca e agarrada à roupa e às botas e a todo o lado.
Ele tinha um especial cuidado em que o filho andasse com as unhas cortadas, no banho lembrava sempre a necessidade do filho puxar a pila, tal como a médica lhe tinha ensinado, não deixava passar as consultas do dentista, do oftalmologista, fazia análises com regularidade. Não se importava que a mulher saísse sozinha com amigos, fosse ao cinema ou beber uns copos. Ao cinema ele ainda ia, beber uns copos dispensava. Um café, vá lá, ainda aceitava. Mas tudo o que fosse deitar depois da hora da Cinderela, nem pensar. Também não se queixava quando o filho lhe dizia que ele estava velhinho.
Era impecável no trabalho que fazia. Impecável e admirado por todos. Invejado também, claro. O laboratório de análises clínicas, onde trabalhava como analista, ficava perto de casa o que lhe permitia ir buscar o filho à escola, preparar o jantar, pôr a mesa, dar banho ao filho, vestir-lhe o pijama e esperar com calma que a mulher chegasse.
Sempre calmo, sereno, mesmo que o filho gritasse que não queria tomar banho, que o dia de trabalho tivesse sido agitado e stressante, que estivesse maldisposto ou doente, a serenidade não o abandonava, falava devagar, dizia o que tinha a dizer e quando a mulher gritava com ele, era incapaz de responder no mesmo tom.
Quando soube que ela tinha sido presa, ficou horrorizado mas não surpreendido.

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