quarta-feira, 30 de junho de 2010

10 de Junho de 2007

Cachopa Camila
As livrarias de Oslo, como esta onde acabei de te comprar um postal e outras que ficam ao sabor do percurso que se tem que fazer num determinado dia, ou a que se vai de propósito, estão cheias de memórias, minhas (as lidas) ou de outros (as escritas). Aqui ou ali encontrei este ou aquele verso, uma história que me encantou, páginas apenas folheadas e depositadas depois em Santarém e que nunca mais li. A mais querida é a Libris, do outro lado da rua National Galeriet, onde se encontram um Van Gogh auto-retratado de pequeno formato, alguns dos mais obsessivos quadros de Edvard Munch e uma série de pinturas que retratam interiores, admiráveis, quentes, cheios de madeira e outros tempos, que se depositaram em tintas e telas. Na Libris, na Tanum e na Kvist encontrei muitos dos livros memoráveis que me distinguem os dias passados, como um marcador de página, que deixámos num capítulo ou num verso que merece ser revisitado.
Mas o encanto maior, o supra-sumo do encantamento, são os alfarrabistas que aqui se chamam antvikatiater. E há-os de todos os feitios e gostos. Têm em comum o testemunho comovente de uma cultura periférica que absorve o que se produz nos grandes centros do continente, e tenta aprender.
Desde os que, nas áreas chiques, se dedicam a lombadas de dourados, que ficam bem na estante que se quer decorar lá em casa, aos que se dedicam aos livros raros e históricos escritos em língua inacessível para mim, e de preço inacessível também, aos que têm livros amontoados segundo uma lógica que é impossível de decifrar. Estes são, para mim, os mais encantadores. Não só neles existe o prazer de encontrar o que se procura, como estão cheios de surpresas escondidas a que se acede por “escavação”! O supremo templo é o Oslo Ny antvikatiat. Fica perto de um maravilhoso parque concebido para as estátuas de Vingeland; o Vingeland Park. Dele te enviarei um postal, ou fotos. É o sítio por excelência das rosas, onde se encontram as mais belas rosas de Oslo. Até de Inverno, as hastes que despontam da neve conjugam bem com o filigranado do gelo que se recorta nas árvores caducifólicas de encontro ao céu cinzento e ao entrançado de corpos que dançam, amam, sustentam, correm, envelhecem ou olham a cidade de par em par.
Acede-se a este alfarrabista pelo meio das casas de madeira ajardinadas, ou de tijolo castanho avermelhado. Nas esquinas onde começam os prédios de três ou quatro andares encimados pelas cornijas tão típicas deste norte, está a porta de madeira descorada e vidro, com a tranqueta em forma de vírgula deitada. De cada lado, dando para uma e para a outra rua, duas janelas amplas onde os livros aparecem sem ordem. O que é um convite. Uma montra desarranjada que não quer convencer ninguém a comprar, que sabe ou está confiante, como que por modesto orgulho, que encerra tesouros que dispensam pregão. No interior, um distinto cavalheiro de linhas secas e roupas coçadas que se expressa correctamente em várias línguas, recebe-te com um sorriso e com deferência, sem pressas, mas com um olhar directo e curioso. Há sentimento imediato de que não te estará a vender o que quer que seja, mas a receber-te em sua casa como a um hóspede. Indica-te as secções se percebe que não és da casa, e desculpa-se e aos seus livros pela desarrumação como quem os desculpa por andarem de mão em mão qual canalha miúda e traquina. Na cave, encontram-se tesouros ao fundo da escada estreita de tábuas, em escaparates e caixas. Ternas edições da Galimard, de capa branca que contam tropelias de Sartre e Beauvoir, as palavras escritas em “Carnets de Drôle de Guerre”, “Paris c’était mon village”, poemas de Eluard e Rimbaud, coisas passadas de moda, livros de bolso, como este curioso “Abée Pierre” de Chateaubriand, o “processo” do Kafka da Everyman’s Library, “The short novels of Dostoievski, com introdução de Thomas Mann, da Dial de Nova Iorque de 1945. Encontram-se livros dispares em francês rubricados pelo mesmo homem, coleccionados por uma vida, e a que a família não soube dar melhor sorte do que vender por atacado. Encontra-se este “ Group Dynamics and Society” que o autor dedicou à mão com uma saudação amistosa “med venligst hilsen” ao seu amigo Odd, datado de Junho de 98 em Hvalstad, e que o mesmo conservou por estes longos anos (três) se não vendeu no mesmo dia.
Neste volume de Dostoievski, nas short novels, encontram-se as “notes from the underground”. Quando encontrei o sítio, pensei neste título. Recentemente ali o encontrei. Aquela loja é como a cartola de um mágico, até o título que lhe imaginei, ali se encontrava, prefaciado pelo punho de Mann. E tem, suprema felicidade, o olhar do velho nórdico, que faz a adição numa velha caixa registadora de manivela e me vai agradando com o bom gosto das escolhas. Às vezes tenho a sensação de que tem um secreto prazer em encomendar livros para aquele gentleman que vem de Portugal, como uma cegonha receosa empurra o filho do ninho para que conheça o azul de outros céus e para que siga o velho preceito de crescei e multiplicai-vos… às vezes tenho a vontade ou o secreto desejo de estar presente quando morresse, de lhe passar a mão pelo cabelo e pela testa, para lhe assegurar que os livros estão em boas mãos à beira do Tejo, em cabriolas com as tágides de um zarolho que dividiu a história em dez cantos e contou que dez anos serviu aquele pastor o pai de Raquel, serrana bela, mas não servia o pai, servia-a a ela… nunca lhe direi nada disso, é claro, e um dia destes não estará mais lá. Mas abençoados os homens de boa vontade.
Amiga, pergunto-me se a tua paciência chegará para albergar estas coisas. Não será impessoal tudo isto? Tenho uma dificuldade terrível com a linguagem, gostaria que fosse mais económica, precisa e rigorosa. Mas que não fosse fria e estéril como que emanada de labirintos de verve burocrática que, de tão codificada, parece que se dobra sobre si mesma, auto-suficiente, e nunca se consegue determinar se quer comunicar algo ou apenas ostentar o carácter impenetrável, como uma descomunal prisão que nos deixa fechados cá fora, mas que se ergue ameaçadora na nossa frente e ao mesmo tempo, que não fosse feita de termos da moda, esses cometas que atravessam a linguagem e monopolizam a atenção de todos, ofuscando as outras palavras. E especialmente que não fosse demarcada socialmente ou datada no tempo. Sempre achei as modas linguísticas, com que um grupo social se distingue, e deixa os seus contemporâneos de fora, numa demarcação do seu território, uma coisa tão abjecta e pouco higiénica, como o demarcar levado a cabo pelos cães que mijam nos candeeiros. Não queria, na escolha das palavras que uso, ser pretensioso, distante e superior ao meu tempo, ou abster-me de partilhar o linguajar e o destino dos que vivem ao meu lado. Mas gostava que as palavras dos outros que passaram de moda, os arcaísmos, e mesmo as palavras de todos os que não puderam falar fossem mais usadas, recuperadas, como monumentos góticos que enfeitam a cidade. Tens a mesma dificuldade? Isto faz algum sentido?
Bem, vou jantar e dormir um pouco
Quatrocentos beijos
V.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Impacienta-te

Impacienta-te.
Embriaga-te na nudez dos sentidos.
Crava as unhas na carne do tempo
Escreve a Deus.
Pede conselhos aos pés que estão ligados ao coração
Eles te encaminharão no sentido do mundo, dos outros, de nós
Ouve a música do desequilíbrio
Acredita nas fábulas do antigamente que ainda não passou
Recusa-te a visitar museus ocos
O objecto de arte sou eu, és tu, é ele, somos nós, sois vós, são eles
Ouve o musgo e a ráfia
Cheira o solstício
Sente os solilóquios alheios
No amanhecer de cada coração há sempre uma aurora boreal
Para a vermos só precisamos de fechar os olhos
Grita que estás faminto
Grita e agita-te como se sofresses de desejos primitivos
Usa o olhar como espada e como escudo
Liberta-te do cativeiro da imundície
Não descanses enquanto não fores tu
Parte-te e cola os despojos as vezes que forem necessárias
Se fores vítima de qualquer colapso é porque a poesia morreu
Espapaçado, só as lágrimas se aproveitarão
Pode ser que misturadas com lama, se molde o barro
E então, então não terás existido em vão

A morte, essa cabra!

Morreu o marido duma colega minha. Tinha 51 anos, praticava desporto, fazia uma vida saudável. Ele e ela, mais que marido e mulher, eram namorados, daqueles de fazer uma certa inveja.
Se a morte dum homem jovem é dramática, assume outros contornos quando sabemos que já lhes tinha morrido um filho e que, uma segunda gravidez tinha sido interrompida pelos desígnios do destino. Apesar de tudo, ela sorri diariamente, tem sempre uma palavra de simpatia e ajuda quem pode.
Haverá uma força superior que escolhe os fortes para os aspergir com tragédias ao longo da vida? Não há palavras, eu pelo menos custa-me a encontrá-las. O que se pode dizer a esta mulher? O quê? Não sei, emudeço perante a dor.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Olá vagabundo

Olá vagabundo
Isto pretende ser um suspiro, não uma resposta às tua missivas. Impossível seria, no espaço que tenho agora, tentar, sequer, responder, mas não consigo evitar e assim, rapidamente, em pensamentos soltos. Perguntas se o que escreves faz sentido. Não faz outra coisa! Quem te deu a ti, marinheiro vagabundo, autorização para em mim entrares e, ao abrigo da distância, talvez com medo da minha fúria, deitares cá para fora as minhas preocupações, as minhas reflexões, certo é que trabalhadas e mimadas pelas palavras que usas, deixa-me dizer que és um abusador, coitados dos dicionários que terão que conter ainda mais termos para te alimentarem o vício de usares todas as palavrinhas que lá estão, não esquecendo nenhuma e a todas tratas por igual e eu fico encantada por te ler.
Vibro com os nomes das terras que me mandas e que não consigo dizer, soletro como uma criança que não sabe ler ainda, mas faço-o com o prazer de alguém que avista um navio e vai conseguindo ler o nome gravado na proa e, de repente, já consegue ler tudo e é mesmo aquele que estava à espera e chegou e está ali… e… para além das reflexões sociais que terão a sua devida resposta, ai Deus como eu gosto desta arte epistolar e como me faz bem ser nela correspondida, mas dizia eu, para além das tuas preocupações, para que corro as livrarias em busca de alimento escrito por viajantes, com encadernações mais ou menos insinuantes e atractivas, para quê? Responde-me!
Tenho-te a ti! E sou uma pessoa sortuda, a encarnação do próprio Gastão! Repara, eu tenho um escritor de viagens que me escreve na primeira pessoa, para mim e em tempo útil, real, tenho um escritor que usa e abusa da linguagem e não se faz rogado com as palavras lindas e esquecidas da nossa pátria, que reflecte e faz julgamentos acertados no meu entender, que me faz descrições de sítios que me obrigam, ah, sagrada obrigação, a fechar os olhos e a marcar na agenda da minha vida uma viagem a esses lugares, sabendo que, quando for, me sentarei num qualquer banco onde, tempos atrás, um certo vagabundo se sentou também, aquecendo aquele lugar levando-me antes de ir, criando uma dimensão intemporal, transportando-me para sítios límbicos (sim, é mais uma palavra para o teu dicionário) mas que existem e eu estou aqui e lá, ah sim, estou lá, longe daqui, em Oslo, em Kiel, na cabeça de quem escreveu os poemas, de quem pensou o que me lês no jornal de antes de ontem mas que hoje não pode ser mais actual, quem sabe se amanhã não será ainda mais, porque existe uma ligação, um tracinho, como os que usamos em certas palavras, para ligar quem fala, a quem se dirige a conversa, entre quem escreve e quem lê e quando se consegue colocar o mundo de permeio, mas o mundo não é estático!, não, não é nenhuma fotografia, é algo em acção, que se mexe, como eu quase consigo ver as tuas linhas, em movimento e eu sou levada por esse movimento também, ai queria tanto fazer-me entender, mas não consigo e daqui não sairá nada, será que vais entender uma palavra no meio desta pressa urgente?
Sinto-me no meio do mundo ao ler-te, vagabundo marinheiro, escritor, pensador, homem e pessoa. Deve faltar aqui qualquer coisa, mas ainda bem, pois mesmo que não houvesse mil motivos para te escrever de novo, arranjaria um que podia ser continuar a chamar-te nomes.
Mais um beijo, mais um abraço, à laia de pregão, como antigamente se fazia nas feiras que, ao ler-te, sinto-me num carrossel, qual criança feliz…
Camila

PS1: A ideia das cinco vidas espalhadas pelos cinco continentes… soberba…
PS2: lembras-te de em tempos termos falado na questão de doar o corpo para o Instituto de Anatomia? Já fiz o meu documento e estou orgulhosa de, um dia, espero que daqui a 150 anos, poder contribuir para o progresso científico. O senhor Miguel Freitas, meu pai e a dona Augusta Freitas, minha mãe, não gostaram da ideia como calculas, daqui a algum tempo vou conseguir convencê-los a fazer o mesmo! Em nome da ciência!

Navegando

O barco anda de margem em margem
Navegando
Embalo-me no torpor da viagem
Navegando
Corta a água escura e fria
Navegando
O cheiro da espuma anestesia
Navegando
Vai cheio e pesado e cansado
Navegando
Volta vazio e leve e apressado
Navegando
Nunca fez outro percurso
Navegando
Quer morrer
Navegando

Se a vida nos rouba a vida, em que a usará?

Fim do dia. Entro no metro e sento-me. À minha frente vai uma senhora literalmente a dormir, deitada em cima da mulher do lado que se mexe ligeiramente, incomodada com a proximidade da outra.

A mulher tem uns cinquenta e qualquer coisa anos embora aparente ter mais, muito mais. Em tempos foi loura e um solavanco maior do metro fá-la abrir os olhos deixando-me ver que são azuis. O cansaço, pois é de cansaço que se trata, fá-la fechar os olhos novamente, os olhos e o corpo, que deixa cair em cima da companheira do lado.
Tem os braços vermelhos do cotovelo para baixo e brancos, quase alvos, debaixo da manga curta da camisa. O cabelo apanhado com um elástico, embora curto, juntamente com a vermelhidão dos braços e com as unhas cortadas rentes e uma cicatriz de queimadura levam-me a pensar que talvez seja cozinheira. Acabou o turno num qualquer hotel, está exausta e tenta por o sono em dia nas poucas estações que medeiam o local de trabalho e a sua casa, onde a esperam para fazer o jantar.
É uma mulher maltratada. Vê-se e sente-se. Maltratada pela vida, talvez também em casa. As rugas que vivem na sua cara e que são mais expressivas quando abre os olhos para ver em que estação parou o comboio mostram raiva e submissão.
Quem será o homem que com ela vive mas que com ela não convive? Ou a expressão devia ser ao contrário? Que vivência se esconde por detrás daqueles olhos outrora belos e agora sujos de cansaço?
Estava eu a ficar incomodada com os arremessos de ombro da companheira de banco da ‘minha cozinheira’ para que esta se endireitasse até que decidi tocar-lhe na perna e disse-lhe, com o meu melhor sorriso, que se se encostasse para o lado da janela conseguia dormir melhor. Olhou-me como se eu fosse um extraterrestre. Ficou direita e muda a olhar-me. Sorri levemente. Ela não disse nada e encostou-se de acordo com a minha sugestão. Porém, abria os olhos com mais frequência e olhava-me, tão simplesmente porque assim que os abria a minha cara estava diante da dela. Olhava-me com suspeita. De quê, não sei. Talvez desconfie, mas saber, não sei. Pensaria ela que era preciso uma desconhecida para lhe sugerir qualquer coisa, qualquer coisa que fosse, relacionada com o seu bem estar?
Reparei que as mãos de unhas curtas seguraram com mais força na mala velha e gasta que nem imitava pele, era plástico assumido. Ninguém acredita que outro alguém faça seja o que for voluntariamente, sem esperar pagamento e eu podia apenas querer que ela adormecesse para a roubar. Senti que ela tinha experiência disso, de ser roubada, especialmente pela vida.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Dinheiro: oferece-se!

Só hoje já apaguei quatro mensagens do telemóvel onde me oferecem mundos e fundos!
Uma operadora de telefones que até parece que me paga para eu gastar ainda mais;
Uma grande superfície que tem os preços mais baratos do universo, do planeta ou dum continente qualquer, agora não me lembro;
Um banco, cuja mensagem é tão grande que vem dividida em duas, com têáégês e tanes e mais não sei o quê;
Outro banco que me empresta uma quantidade MUITO considerável de dinheiro, sem me conhecer de lado algum (se eu precisasse e o fosse pedir emprestado, era um sarilho!).
Pior que a publicidade que me põem na caixa do correio e me deixa fula e danada, só estas mensagens onde imagino sempre alguém lá do lado de lá, a acenar com um maço de notas na mão, sorridente e dentes brancos, a aliciar-me, levantando ao de leve as sobrancelhas, chamando-me, tentando-me.
Mas que raio... eu não tenho dinheiro para pagar o que devo quanto mais para me meter em cavalarias! Mas a pressão é tão grande, tão insistente, tão teimosa que até chego a compreender quem cai na tentação.
A legalidade destas coisas deixa-me dúvida: eles poderão mesmo fazer isto, insistir de tal forma que nos metem o dinheiro na mão, connosco a dizer não, não, não, e depois vêm buscá-los a grossas prestações mensais? Não sei e acho que nunca saberei porque se me pusesse a esgravatar e descobrisse que não o podiam fazer, metia-os num barco sem fundo no alto mar, como costumava dizer o meu avô!

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Ourives do verniz

Dou uma corridinha e consigo entrar no metro no último instante antes de partir. Balançando-me no corredor como se estivesse bêbeda procuro um lugar, encontro-o e sento-me. À minha frente está uma rapariga com cerca de vinte anos vestida com um polar amarelo, hoje, onde as previsões apontam para trinta graus e eu, como todas as outras pessoas, estou de manga curta, à excepção das que estão de alças ou com menos ainda. E ela de polar. Estará doente? Não parece.
A minha estranheza perante a roupa da moça desapareceu completamente quando, casualmente, olhei as mãos da mulher que viajava ao meu lado. Nas pontas dos dedos, onde temos aquilo a que chamamos unhas, ela tinha um mural! Metade da unha era verde e a parte superior amarela. A fronteira era feita com uma linha dourada, precisa mas grossa e encorpada, com certeza de outro tipo de verniz, quiçá verniz para fronteiras. Em cima do amarelo estava depositado um coração azul, emoldurado a branco! Aquilo era uma obra de arte, ou melhor, dez obras de obras, talvez vinte obras de arte pois os sapatos eram fechados à frente e não deixavam ver nada, mas algo me diz que ao rés do chão havia também trabalho valente duma qualquer Dali das unhas, que aquilo não era obra duma qualquer esteticista e sim duma artista de gabarito.
A mim tinham que me pagar muito bem para andar com aquelas bandeiras nas unhas mas reconheço ali um trabalho de minúcia, um ofício de ourives do verniz difícil de fazer e cujo resultado final é artístico e chama a atenção. Rendo-me sempre perante quem é capaz de fazer aquilo que não sou, e sinto uma ponta de inveja, por vezes uma grande pontada, perante certos feitos que parecem tão fáceis nas mãos, nos pés ou na cabeça de outras pessoas. Admiro a agilidade, a destreza, a pontaria, a inteligência, e mais mil coisas onde fico, não em segundo lugar, mas nas quais nem sequer sou concorrente.
Sem saber quem pintou aquelas unhas, ou outras semelhantes, deixo aqui os parabéns pela mão firme com o minúsculo pincel, pela precisão e pelo trabalho. Se há pessoas que gostam e se sentem bem assim, que haja também quem as consiga satisfazer!

Lisboa, 8 de Junho de 2007

Vítor
Bom dia e hoje sim, digo-o com propriedade, pois o sol deixou-se de vergonhas e apareceu, espreguiçando-se e tocando nesta terra, abençoando-a.
O teu eclectismo é sempre uma incrível e agradável surpresa…
Numa das cartas que de ti recebi pedes-me o impossível… que faça luz no teu espírito… vejo a tua mente tão iluminada a reflectir, leio-te e é como se olhasse uma planície regada pelo sol… como vou eu iluminar-te o espírito?
Peço-te que não me cries tal embaraço, pois gosto de corresponder aos desejos dos meus amigos, mas a este teu sou incapaz.
As tuas reflexões vão para além do que pensas sobre o que foi dito… deves reler a tua descrição sobre o enquadramento das notícias: leva-nos dentro da tua mente estruturada que, para além de me contar o que pensa e o que lê, faz-me o quadro formal das próprias notícias, para que eu não só leia, mas para que VEJA, através dos teus olhos. O facto de eu conseguir captar o cheiro da terra, quando nela falas, é aqui compensado pela descrição do tipo do cabelo ou pela geometria do mármore, para além da sua coloração. Isto é espantoso, não perdes um pormenor (é pormenor!).
Dentro de muito pequenos limites, porém, quero dizer que não deixo de pensar que em instituições como uma Constituição, se se prestar atenção, encontram-se “coisas” cuja intenção de quem as escreveu, até foi boa, mas parafraseando as frases populares, de boas intenções está o inferno cheio… sendo a Constituição o que é, será “isto” do inferno? Não tenho dúvidas e Descartes que me perdoe por isso mas, por vezes, é o inferno do direito.
O Direito e a Justiça têm algo divino… acreditamos que existem e, embora esporadicamente surjam revelações desta verdade e, tal como a fé, nunca ninguém viu o Direito ou a Justiça… terão certamente casado e emigrado para parte incerta…
Agora…, serão filhos deles os direitos e justiças, que tantos existem? Mas ao contrário de tudo o resto, não é por se multiplicarem que agem em conformidade com o nome que têm e que nós, com a pressa, pensamos tratar-se do pai e da mãe, não corrompidos, universais, iguais a si mesmos, com as doses de tolerância que sempre têm que existir… mas cuja acção pelo que me é dado ver, tem mais a ver com vergonha, mas por vergonha de se ter vergonha, na vergonha não se fala e, os direitos e justiças continuam a nascer, arrogando-se cada um deles à herança do pai e da mãe que, lá onde vivem, parecem não querer transmitir a sua linguagem universal. Onde viverão? Porque se escondem? Ou serão os filhos que rejeitam os pais… ou será cada um de nós que quer alcandorar-se a ser Justiça e Direito e criamos justiças e direitos, sendo que este plural, que nos levaria, supostamente, à universalidade da expansão do conceito, é apenas um falso plural, para nos iludirmos, conscientemente tantas vezes, porque não queremos encarar a vergonha, e brincamos… por isso, Justiça e Direito se escrevem tantas vezes com letra pequena, coitada da letra pequena que não fez mal a ninguém…
… e quando deparamos com justiças e direitos em qualquer esquina, muitas vezes rezamos, porque a parcialidade anda de braço dado com estas coisas pequenas e plurais fingidos. Direito e Justiça são no singular porque Humanidade há só uma. Quando os buscamos dentro de nós, são com letra grande… o problema é quando os aplicamos… diminuem de tamanho, mesmo que se escrevam com letras enormes nos manuais de Direito e na Justiça que se faz, que raramente é cega, como só ela devia ser. Infelizmente, quantas vezes tem os olhos bem abertos para ver só o que quer, o que convém e encornar o Direito, fazendo-o esquerdo…
A Justiça não distingue estibordo de bombordo e desorienta o Direito, envolvendo-o em vendavais que são provocados por lobos que sopram para deitar abaixo qualquer tipo de edificação.
Onde nos levaria a continuação deste infantil pensamento? Não sei, mas pouca luz farei para te alumiar, vagabundo de línguas estrangeiras, dono do que não pode ser perdido e meu saudável companheiro epistolar.

Um abraço
Camila

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A crise

Leio no jornal que os portugueses inibem-se de tomar medicamentos para poderem pagar bens supérfluos. Leio, mas não precisava de ler, já o sabia. A bem da verdade, quantas vezes faço disparates... Mas assim tão grandes... hum... deixa ver... não em lembro de ter feito!
Parece que também cortam no peixe e na carne, o que se compreende pois têm que pagar a conta da Internet! Ora os miúdos, principalmente os miúdos que são os que mais precisam das proteínas e daquilo tudo que a carne e o peixe transportam e que dizem, dizem, vá lá saber-se se é verdade!, não andam todos gordos e obesos? Então até lhes faz bem cortar na comida! Agora a internet e a TV por cabo isso não, senão ficam uns excluídos da sociedade de informação, uns pobres tecnológicos, uns desgraçados! Para além dos problemas sociais que causaria a inexistência de net e tv lá por casa, pois não se poderia dizer ao vizinho que se assistiu aos jogos do mundial a três dimensões ou que a pochete da patroa, uma imitação fantástica da marca x ou y, foi encomendada num site exclusivo na net!
Tudo condiz na perfeição com a conversa duma amiga na semana passada e que, enquanto funcionária duma agência de viagens me contou que as viagens a Cuba estão esgotadas em Julho e Agosto! As viagens para a populaça bem entendido, em charters com as pernas apertadinhas, mas mesmo assim com cada bilhete a custar três ordenados mínimos, mínimo dos mínimos. Mas vão a Cuba! Isso é que interessa pois a grande vantagem será depois ter conversa durante o ano e esticar a descrição dos sete dias durante os 365 que se seguem!
Mas afinal onde é que anda a Crise?
O Rock in Rio estava cheio, alinham-se já não sei quantos festivais de música e folclore por esse país fora, a programação do Pavilhão Atlântico recomenda-se e anunciam-se já eventos musicais para 2011. Conclusão, nós queremos é que nos dêem música!

A justiça sul-africana

Uns jornalistas portugueses foram assaltados na África do Sul. Três dias depois os meliantes foram condenados a penas de prisão de uma mão cheia de anos. Aqui fazia-me falta agora um cartonista para mostrar a minha cara com várias expressões: perplexa, surpreendida, arrepiada, temerosa, cautelosa e mais um sem fim de carantonhas que, mesmo que eu fosse linda, os cartonistas têm queda para deixar as pessoas com ar de pobres de espírito...
Será a justiça da África do Sul um exemplo a seguir por esse planeta? Devemos mandar já para lá uma comitiva do Ministério da Justiça para que aprendam tão rápidos e eficazes processos? E, já agora, não poderão ir também alguns polícias para fazer uma formação e ver como se prendem os criminosos rapidamente?
Eu não tinha planos para ir tão cedo à África do Sul, o que não quer dizer que não quisesse lá ir, antes pelo contrário, mas agora com esta notícia, tenho que pensar duas vezes, uma vez que sou acusada com frequência de ficar com isqueiros que não são meus e, nunca percebi porquê, as canetas das outras pessoas, colam-se-me às mãos. Ora como desconheço que pena há para estes crimes, mas como a justiça é tão rápida e tão pesada, receio não ter tempo sequer de acender um cigarrito, muito menos de escrever nem que seja só uma palavrinha, por exemplo: SOCORRO!

domingo, 13 de junho de 2010

Feitoria de Bruges, Março dos idos de 1540…

Olá minha caravela quinhentista…
A tua lucidez é tanta que pareces um espectador das tuas próprias emoções. Há momentos até em que parece frieza. Pareces saber tudo. Pareces até saber o que ainda não aconteceu mas, por qualquer contrato, talvez com o futuro, não o podes revelar antes do tempo.
As tuas expressões, para além da tua voz são dum miúdo. Para além disso, tens a maturidade dum adulto bem crescido, às vezes com a tristeza de vida duma longa caminhada com muitos obstáculos, difíceis de ultrapassar. Nas janelas de que falámos, que se abrem quando falas, nem em todos os parapeitos existem flores e isso dói-te. Marca-te e não consegues esquecer. Não sei porquê sinto que faltou contares-me um episódio qualquer importante da tua vida. Estás no teu direito, evidentemente, mas acho que faz falta ao puzzle. Será um canto, meu querido épico?
A donzela
Camila

sábado, 12 de junho de 2010

Parabéns às medidas do Governo

Passo a vida a dizer ao meu filho que tem de estudar. Agora, o Governo, num sussurro, diz-lhe que não precisa, pois passa de ano na mesma e terá um papelucho a dizer que tem X anos de escolaridade! Diz isto e aposto, aposto mesmo, que sorri!
Onde terão ido copiar esta ideia? Que lógica está por detrás desta intenção? Eu só consigo ver alguém a varrer para debaixo do sofá, nada mais.
A introdução do inglês no ensino básico, a informática ou as aulas de educação sexual, são pequenas plantas que darão fruto dentro de anos, espero eu que sejam frutos comestíveis e não aqueles de que ouvi falar, com muito bom aspecto mas venenosos. Apesar da dúvida, mantenho a esperança na apreensão de conhecimentos, competências, tudo conjugado com a minha grande expectativa, que a malta novinha enjoe as bebidas alcoólicas que consomem como se fosse Tang e, não é preciso ser um génio para saber, que lhes põe a moleirinha a funcionar ao contrário. Mas até lá há uma geração onde a imbecilidade reinará, onde a capacidade de decisão, por ser exercício difícil, é substituída por um já existente 'amanhã logo se vê', 'quem vier atrás que feche a porta', e desde que o futebol não acabe a vida continua tal como a conheciam. Que bom estar tudo no lugar!
E assim imagino as repartições de finanças, outros e todos os serviços públicos e demais privados, não a fazerem avenças com os antigos funcionários, mas a mantê-los pois a idade de reforma será tão avançada que há-de passar uma geração até irem para casa e só irão metidos numa caixa de madeira, vulgo caixão, e assim poderão ajudar aqueles a quem o Governo passou de classe, numa atitude que desclassifico e acho inqualificável. Talvez o grande segredo seja este: estamos à espera de uma geração actual, que se enquadre nas necessidades e nas dinâmicas sinérgicas que se pretendem e, como o Governo sabe que ainda vai demorar, mas em simultâneo não quer ficar atrás nas estatísticas, licencia a juventude. Ah, que bom, somos todos doutores...
As pequenas, médias, grandes e multinacionais empresas serão lideradas por primitivos que não sabem ler nem escrever e para fazer contas usam a calculadora do telemóvel, último modelo, pois claro. Estarão todos ligados em rede, como agora é moda e se deseja, na rede do msn, na rede dos futebóis, na cama de rede que os embala desde que nasceram porque nunca se esforçaram em nada na vida e o vento vai embalando, criando uma falsa imagem de movimento.
Os professores têm culpa disto tudo. Pois têm! Assim como os alunos e os pais dos alunos e os avós dos alunos e os vizinhos dos alunos e os amigos dos alunos. E com um paradigma como o de hoje, em que temos que ser estudantes a vida inteira, misturam-se as coisas: temos que ser estudantes sim, mas não no mesmo ano de escolaridade a vida inteira!! Progredir, esforçarmo-nos, sacrificarmo-nos em nome do futuro é ficção científica para a malta nova, algo que não existe pois houve e haverá sempre quem progrida por eles, quem se sacrifique por eles, quem se esforce por eles, quem chegue mais alto e mais longe e mais além por eles, como é o caso do Governo que lhes diz para ficarem a fazer aquilo que gostam, que descansem, que não queimem os miolos, e digo miolos e não neurónios pois estes estão em parte incerta e desconhecida, que ele, Governo, lhes dará aquilo que precisam na forma dum papel que lhes confere conhecimentos e os põe na soleira da porta de qualquer empresa para se sentarem na cadeira de contínuo ou de director geral, de chefe ou de subordinado, não interessa nada porque a malta será toda igual. Agora que penso nisto, pergunto-me: será esta a sociedade da igualdade?
Face aos alunos que (ainda) estudam alguma coisa qual é a mensagem que o Governo passa? Vocês são uns otários!! Podiam tar por aí a limpar paredes com os fundilhos das calças, podiam andar aí a namorar e tão na sala daulas a aturar setôres e setôras? Gandas anormais! Com medidas destas o Governo tem que falar assim.
Seja como for, agora tudo é secundário porque temos que estar atentos ao mundial do futebol que aviva as cores da bandeira e faz saltar o hino nacional fingidamente entoado porque poucos o sabem embora tenham uma ideia que é qualquer coisa dentro do nana nana na na, etc., etc.

Margem do Tejo, 6 de Junho de 2007

Minha janela virada p’ró mar… cem anos que eu viva, não hei-de esquecer-te…
Isso de eu ser uma gastadora é mentira e eu vou prová-lo aqui e agora!
Lembras-te do beijo que me enviaste ontem? Não o usei! Está guardado. Verdade seja dita que tive vontade. Mas não o fiz. Olhei para ele, mirei-o e remirei-o. Coloquei os cotovelos em cima da secretária do escritório e, com a companhia da Diana Krall, fiquei a admirá-lo. Ela até me disse have yourself a merry little christmas… enquanto me via observar o beijo. Um pouco mais tarde, impressionada com a minha persistência, ela disse também, christmas time is here e acrescentou um ponto de interrogação. Eu ia sorrindo e dizendo que sim, porque dizer yes é fácil e eu estava tão absorvida que não conseguia pensar em mais nada.
Um pouco mais tarde fui arrumar umas coisas e quem me aparece no meio duma montanha de roupa, meio escondido, quase com vergonha? Uma camisola azul escura que veio de Budapeste, onde o Klimt depositou O Beijo original para mim. Sim, o original, porquê? Eu tenho o original numa camisola…bem, vamos lá a ver esse ar de gozo e interrogação! Não tenho culpa que os museus mostrem cópias, nada tenho a ver com o assunto, não quero saber de museus…
Bem, mas não interessa. Quando vi O Beijo, lembrei-me do meu beijo que descansava algures pela casa, onde eu o tinha largado. O meu coração bateu com força e fez concorrência ao vento que teimava em entrar pelas janelas e imediatamente pensei: Porque não o gastei? Corri pela casa, descalça, por isso ando sempre com tosse, nada tem a ver com o tabaco e, de olhos bem abertos, de olfacto activo, com a sensibilidade à flor da pele, a saborear o ar e com os ouvidos alerta, não fosse escapar o som típico da concretização do que era meu e que eu deixara… onde mesmo? No escritório? Sim, tinha sido ali que eu o admirara pela última vez, enquanto a Diana me dizia I can’t give you any thing but love e quando eu lhe perguntei porque me dizia ela aquilo, ela não respondeu e continuou a cantar… gente do xoubizenesse, vá-se lá a saber o que pensam e porque o pensam e o que dizem e porque o dizem… até cheguei a colocar a hipótese de ela não estar a falar comigo. Mas só ali estava eu… quer dizer, eu e o meu beijo e com o meu beijo ninguém fala! É meu e eu não deixo. Pensando bem… vou gastá-lo, é melhor, por via das dúvidas… não vá alguém, à socapa, roubar-mo….
Quero lá saber que me chamem gastadora!
Fica sabendo: se voltares a enviar-me um beijo, gasto-o de imediato… mas devagarinho, docemente, sim porque um beijo de alguém que consegue cheirar bem depois de estar quase vinte e quatro horas acordado e em pé, é um beijo especial que sabe a primeiro beijo… escorrega através da boca e toma conta do corpo todo e faz-nos sentir no céu. Existirá o céu? Não sei… mas também não quero saber… existem beijos. E chega.

Um para ti
Camila

Um livro que vem de dentro

Um livro que vem de dentro. É assim Nenhum Olhar de José Luís Peixoto e a única pena que tenho é não o ter lido antes. É belíssimo e interior. Ao contrário daquilo que normalmente acontece, quando os livros entram em nós, este já vive nas pessoas, vem de dentro, dum dentro fundo e escondido. Um dentro vivido e ouvido e contado e recontado. Talvez isto aconteça comigo porque desde há muitos anos vivo o sol alentejano e reconheço as gretas da terra seca sempre ansiosa e nunca satisfeita. É terra insatisfeita, aquela, mas é terra de gente conformada, que aceita e se submete a si própria.
Em certas passagens Nenhum Olhar é uma canção, a letra duma canção triste e lendo, sinto a falta das notas de música ao lado, ou em cima, das palavras, que deviam talvez ser mais espaçadas para permitirem encaixar claves de sol, breves e semibreves, colcheias e semi colcheias, mínimas e semimínimas, fusas e semifusas e outras cujos nomes desconheço, mas que as deve haver, isso deve. Leio e ouço um roçagar musical pois é música aquilo que a natureza nos dá, embora nem sempre em sinfonia melódica ou harmónica, mas é música. Leio e sinto-me embalar por uma vida que foi e já não é, mas continua a ser, ou não fosse a eternidade eterna. Leio e conheço e reconheço os pensamentos, pensamentos escritos por um escritor mas pensados por gente viva que parece morrer ao nascer e por isso duvidamos.
Nenhum Olhar põe tudo dentro de nós, fazendo-nos descobrir que já lá estava, o tudo, dentro de nós. Por isso é descoberta de quem encontra uma nota no bolso dum casaco, mas uma nota que já não circula e no entanto, ali está ela, ao vivo e a cores, na nossa mão e reconhecemos-lhe o valor mas sabemos não ser aceite. Mas existe e está ali.
Nenhum Olhar é um livro ao contrário, de dentro para fora. De dentro do leitor para fora dos olhos do leitor, como se vomitássemos a vida abrasadora dos personagens e sentíssemos a azia da solidão, do silêncio, da vida.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Abertura da época balnear

Escrevo aos primeiros minutos do dia 1 de Junho, início da época balnear. Hoje é um dia mágico. Para mim, é o princípio do Verão, a mais saborosa das estações do ano.
Quando era criança o nosso primeiro dia de praia era dia 1 de Maio. Mesmo antes do 25 de Abril o meu pai, tipógrafo linotipista, tinha este dia de feriado. Calhasse a que dia calhasse, eu faltava à escola e a minha mãe metia um dia de férias e íamos à praia, abríamos essa janela que se mantinha aberta durante alguns meses, e que nos dava um alento que permanece até hoje.
A conjuntura política veio depois antecipar a inauguração do nosso Verão, que passou a ser dia 25 de Abril! Chovesse ou fizesse sol!
Na minha vida independente esta tradição manteve-se tendo sido trabalhada com muito esforço e carinho: praia o ano inteiro, caminhadas à beira mar, banho, banho completo, só a 25 de Abril. Adoro estar ali a inspirar sol e calor, sendo dos poucos sítios onde consigo estar quieta sem fazer nada. Bem, se levar um livro (ou dois!) será perfeito.
Há um exercício que gosto de fazer com os miúdos que é perguntar-lhes qual a lembrança mais antiga que têm. A minha lembrança mais antiga é sobre um par de botas, teria eu uns três anos, talvez menos, e sempre achei que seria por isso que tenho a paranóia que tenho com a minhas botas, que ficarão em herança para quem as merecer, de tal forma as tenho em consideração.
Mas uma das minhas lembranças mais antigas é sobre a praia: nós ficávamos na paragem da camioneta, que ficava ao lado duma azinhaga junto a um pequeno rio, no Cacém. Eu não me atreveria a passar na azinhaga sozinha dada a sua configuração, meia escura e sem se ver o fundo, o que me metia medo, mas ao mesmo tempo me atraía. Enquanto esperávamos pela camioneta que havia de dar a volta ao mundo antes de nos fazer aterrar no areal de Santo Amaro de Oeiras, eu fixava a azinhaga, numa atitude interior de contemplação e pensava que um dia a percorreria sem medo. Antes disso poder acontecer, foi ali construído um prédio que derrubou as minhas intenções de dominar o medo. Mas a espera da camioneta era já uma emoção na dinâmica da praia, antevendo-se um dia i n t e i r i n h o esparramada na areia a apanhar escaldões ou dentro de água a engolir pirolitos, mas em ambas as situações, enquanto a pele ficava castanha, tão castanha que durava dum ano para outro. Não havia protectores solares e sim bronzeadores para apressar a camada castanha e deixar os fatos de banho e biquinis todos manchados com nódoas que não saiam mas que eu nem via! Bronzaline era o rei dos bronzeadores, ajudando-nos a atingir os nossos objectivos assim que espalhávamos a mistela na pele deixando-a imediatamente com ar de quem tinha vindo do Sudão. Os escaldões eram tratados com pachos de algodão embebidos em álcool quando chegávamos a casa e eram apenas ossos do ofício, nada mais.
Eu que sempre fui generosa de peito, numa ocasião queimei-me de tal forma que tinha que dormir com um soutien apertado para que as mamas ficassem no sítio sem se mexer nem um milímetro; a coisa foi de tal maneira que a minha mãe levou-me à farmácia! Ora naquela altura ir à farmácia por causa duma coisa daquelas era como ir ao médico porque nos tínhamos engasgado, visita perfeitamente ridícula já que qualquer engasgo passa com uma valente palmada nas costas. O senhor da farmácia deu-nos uma pomada que pus nessa noite em quantidade generosa pois o dia seguinte era dia de ... praia! E à praia não se faltava.
Falava eu das minhas memórias mais antigas para dizer que recordo uma cena que se passou enquanto esperávamos a camioneta, mas em Santo Amaro de Oeiras, já de regresso. A paragem, onde as bichas (antigamente não havia filas, só bichas) se amontoavam e acotovelavam era no jardim, onde horas antes os veraneantes tinham feito piqueniques, e hoje há um McDonald. Depois de tantas horas debaixo dum sol abrasador, com um cansaço enorme vindo das cinco ou seis da manhã, hora a que se levantavam estes viajantes para empreender a dura jornada, depois de horas de camioneta para lá e na expectativa das mesmas horas de regresso, todos ansiavam por um lugar sentado, nem que fosse um por família e, assim, podiam ir trocando ao longo da viagem. Com ânimos quase sempre exaltados lá se punham uns engraçadinhos no fim da fila, embora eles afirmassem que estavam no início há horas, independentemente de ninguém os ter visto. Tenho presente uma destas cenas em que o meu pai fez valer a sua voz possante e deu dois berros a dois homens que queriam passar à frente. Foi secundado por outros que estavam igualmente na bicha há imenso tempo e já viam os seus lugares sentados ocupados por outros rabos que não os seus. De repente, os dois homens foram cercados por várias caras ameaçadoras de vários pais de família que não se inibiam nada em lhes dar um enxerto de porrada, aqui e agora, para depois descansarem nos seus lugares sentados. Lembro-me que tinha o coração a cem à hora e me passaram pela cabeça imagens do dia fantástico que estava a terminar e recordo-me perfeitamente de pensar, como é que era possível que um dia tão bom pudesse acabar assim, como? A bem da verdade, já não me lembro se viemos sentados ou em pé, mas cada vez que passo no jardim vejo o meu pai, novo e com bigode preto, a gritar em coro com mais dois ou três pais de outras crianças e lembro-me desse dia de praia em particular.
Fazendo uma análise, os dias de praia são talvez a acção repetida ao longo da vida de que mais me lembro em particular: os fins de tarde na Fonte da Telha foram soberbos, inesquecíveis e irrepetíveis. Coisas tão boas não se repetem, é isso que faz delas o que são e que as mantém no pódium uma vida inteira. Mas apesar de não se repetirem, podemos multiplicá-las e ter outras igualmente boas.
Haverá coisa melhor que um dia de praia?