quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Saudoso primo

Quando oferecemos o computador aos meus pais criámos-lhes uma conta de e-mail e uma página no Facebook, que se têm mostrado bons aliados para alguns momentos de solidão, matança de curiosidades várias e grandes navegações nos mares virtuais.
Face a algumas dificuldades no manobramento de velas e burrajonas, com cabos e nós, os netos, sobrinhos e filhas dão uma mãozinha de quando em vez, com actualizações, limpezas de spam, varrimento de lixos e eteceteras.
A propósito do envio duma mensagem para as Finanças ontem limpei a caixa do correio e vi que pelo meio da ondulação estava uma mensagem cujo assunto mencionava ‘Saudoso primo’.
Um parente afastado identificava-se nomeando pai e mãe, não fosse a memória dos meus pais tê-lo apagado, e escrevia-lhes dizendo ter dificuldades em os adicionar, e perguntava se não tinham outro e-mail.
Comecei a responder, alinhando também a árvore genealógica para que confirmasse a veracidade da informação e a meio lembrei-me que os podia adicionar nas redes sociais, fazendo uma surpresa aos dois.
Tirando alguns tios e primos directos não sou grande especialista na família e tenho apenas uns ecos de nomes que andam soltos, um bocado aos trambolhões na minha lembrança, nem sei se chegam a entrar na memória, mas tinha uma vaga ideia deste primo. Porém, se lhes recordo os nomes, não faço a mais pequena ideia das ocupações ou das profissões. Quando abri a página percebi que o senhor é médico, mais propriamente ginecologista: só assim se explica a multiplicação de imagens de partes íntimas femininas no mural do ‘saudoso primo’. Sempre pensei que só existisse um médico na família, que mesmo já tendo morrido continua bem vivo em nós, e era ortopedista. Ginecologista, nunca tinha ouvido falar.
Depois lembrei-me que o ‘saudoso primo’ talvez trabalhe num jornal e faça a composição das páginas do lazer, que nos últimos anos são uma versão dos livros aos quadradinhos, a cores e com fotografias só de mulheres, um bocado a anti-matéria de certos filmes de guerra onde só entram homens, e, quem sabe, estava a trabalhar na rede social…
Pensei, pensei, pensei e acabei por não o adicionar pela simples razão que o meu pai trabalhou muitos anos num diário lisboeta e ainda deve estar cansado daquela dinâmica que, sabe-se lá, confrontado assim de repente com as novas formas de composição, ainda lhe desse uma filoxera que lhe pusesse o coração em jeitos de motor quitado.
Comentei o assunto com a minha irmã que disse imediatamente lembrar-se da personagem, mais, nunca a esqueceria! Recordava uma tarde de sábado, há muitos anos, quando tinha acompanhado os meus pais de visita ao ‘saudoso primo’ que tinha sido operado aos rins. Esperava-os um lanche, como competia, com toalha branca, café, chá e bolos. No meio da mesa, em jeito de centro floral estava o frasco com as pedras que lhe tinham tirado dos rins e que foram o centro da conversa desde que chegaram até que abalaram. Como se isso não chegasse, as pedras foram retiradas do líquido e passadas de mão em mão para avaliação de peso, textura, forma e demais características. Depois fizeram-se revisões da matéria a pedido do ‘saudoso primo’ e as pedras, quais Sivalingas do Indiana Jones, voltaram a dar nova volta de apreciação pelos dedos dos convidados.
Se um lanche pressupõe uma lição e respectivo exame de Petrologia, uma ligação na rede social pode significar sei lá o quê… Olha, ficamos assim, eles se quiserem que se adicionem depois um ao outro!

Pão de cereais

Há tempos enunciei aqui os mil e um pedidos que se podem fazer ao balcão e que envolvem café, que as pessoas e as modas vão alterando para, por vezes, apenas parecer café.
Com o pão passa-se a mesma coisa mas elevado a grãos de areia do deserto do Saara.
Quando morávamos nas Mercês e eu ia à padaria da D. Adelaide tinha duas opções: pão de Mafra e carcaças; ocasionalmente havia pão alentejano, que nós consumíamos muito porque o trazíamos do Sobral da Adiça cada vez que lá íamos. Hoje há catálogos de pão que competem com os catálogos das tintas!
Saloio e alentejano, de Mafra e de água, bolas e bicos, vianas e vianinhas, carcaças e mafrinhas, integrais e com sementes, com passas e de mistura, ázimo e de forma, de centeio, milho e trigo e ficam a faltar muitos.
Lembro-me há uns anos, durante um fim-de-semana no Algarve com a minha irmã e cunhado, este comprou um pão alemão, segundo ele, muito bom! A estadia era de curta duração e comíamos sempre na rua, ainda assim abastecemo-nos para lanches a meio da noite durante jogatanas de cartas que ainda hoje adoramos. Quando demos a primeira dentada no pão alemão, literalmente, cuspimos os três em simultâneo, a massa do pão, tão intragável e horrível aquilo era.
Uma coisa que me engalinha é perguntarem-me se quero pão de cereais. Respondo logo com outra pergunta:
- Os outros são de plástico, verdade?
As pessoas olham-me durante alguns segundos sem saber o que responder e depois continuam dizendo que não, não senhora, e seguem enumerando os tipos de pão que têm. Lá sorrio e acrescento que espero que todo o pão seja de cereais. Normalmente a pergunta quer designar pão com sementes e eu, picuinhas, sei mas insisto.
Tenho um amigo que tem uma máquina de fazer de fazer pão: deita-se e o ‘forno’ vai trabalhando de noite de modo que tem pão quente assim que se levanta. Nunca o provei mas conheço quem adorasse ter uma maquineta destas.
Não faço quilómetros para ir a um restaurante comer isto ou aquilo, não me lembro do nome de terras ou locais onde estive e onde comi bem, mas sei onde comprar pão que só de olhar para ele até nos lambemos e assim que começamos a tirar-lhe farrapos não se consegue parar. E é pão de cereais…

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O dedo

Estive de serviço no fim-de-semana. Quase podia dizer que tinha posto a boina e ficado ao serviço ao Zézinho, do Huguinho e do Luísinho: os três juntos são os sobrinhos mais famosos do mundo e os meus são os melhores.
Estive de serviço também à minha irmã e uma das coisas que lhe fiz foi cortar-lhe as unhas. Foram limadas para não correr risco de arranhar o bebé e chegada aos pés deparei-me com a visão dos meus actos de criança: o dedo grande do pé direito foi passado numa trituradora, refeito à mão e voltado a colocar como peça de lego partida e colada. Resultado, o dedo é esguio e longo, a unha é uma massa preta que cai a cada dois anos, mais ou menos.
Numa bela tarde de Verão, quando as crianças ainda brincavam na rua sem a permanente supervisão dos pais, andava eu de bicicleta a subir e a descer a rua. A minha irmã ainda não tinha feito cinco anos e ia com a nossa mãe para o trabalho. Pontualmente eu esperava-as na estação do comboio, na ponta da rua. Naquela tarde, e como de costume, dei-lhe boleia na parte de trás da bicicleta. Ela usava umas sandálias azuis, abertas, como competia naquela altura do ano. A rua descia em direcção à nossa casa e eu não vi quando ela meteu os frágeis dedos nos raios da bicicleta que nem precisou de fazer força para lhe trucidar o dedo e magoar os outros. Os gritos dela encheram a rua, o meu pavor alastrou-se à lua que já alumiava o fim da tarde.
Alguém chamou a minha mãe que já subia as escadas em direcção ao segundo esquerdo onde morávamos e que ficou em estado de choque. Sem saber exactamente o que fazia, apanhei cada bocadinho de dedo dos raios da bicicleta e segui os vizinhos que levavam a garota em braços ao enfermeiro do bairro, o Sr. Camilo, seguidos pela minha mãe, meia zonza.
O enfermeiro mandou chamar uma ambulância dizendo que aquilo não era para ele, a minha mãe deu o número do telefone do trabalho do meu pai, pedindo para os vizinhos o avisarem e seguimos as três para o hospital, eu com o estrago nas mãos, lavada em lágrimas.
A garota gritava a plenos pulmões e no meio dos gritos fazia um pedido que me punha a chorar ainda mais e me deixava a tremer:
- Mãe… não te zangues com a mana…
Repetiu e repetiu esta frase, em palavras mal alinhavadas e intercaladas com soluços mas ditas de tal forma que ainda as conservo vivas na memória.
Quando chegámos ao hospital de S. José, assim que a porta da ambulância se abriu, vi o meu pai a espreitar, de olhos esbugalhados.
Entrámos no hospital, ela foi vista imediatamente e o médico disse ao meu pai que como eu tinha levado o que restava do dedo, iam tentar compô-lo, mas sendo ela muito nova, ele não aconselhava que se anestesiasse, porém, a decisão final era dos pais. O que queriam fazer?
O meu pai disse-lhe que fizesse como se ela fosse sua filha e o médico avisou, como se fosse preciso, que não ia ser fácil e que precisava da ajuda dele.
Entraram na sala de operações com ela segura por uma enfermeira e pelo pai. Os gritos dela ouviam-se no corredor, por favor pai, paizinho, por favor, não, não, não…
A dor era lancinante dentro e fora da sala. E quando pensei que não podia ser maior tomou proporções épicas, só comparáveis ao momento em que soube que ela teve um acidente, há quatro anos, queimada com ácido sulfúrico.
- Mana… mana ajuda… mana… ajuda… não, não… mana…
O pedido de socorro vinha em maiúsculas, como balas certeiras que me atingiam o coração. A minha mãe chorava abraçada a mim e eu chorava abraçada a ela. Passou uma eternidade que, contada posteriormente, pouco passou da meia hora. Ninguém diria, nem mesmo os desconhecidos que aguardavam ao nosso lado no corredor.
Quando saiu vinha esgotada. Rouca e alienada, como se não reconhecesse chão e céu. Ao colo do meu pai recebeu os nossos beijos e abraços e voltou a pedir que não se zangassem comigo.
Começou aí uma epopeia que durará a vida inteira: primeiro foi o retirar dos pontos, eu com dois gelados na mão a meter-lhos na boca para lhe adoçar o momento. Depois a cena dos gelados iria repetir-se sempre que era preciso cortar a unha, mesmo recorrendo a anestesia. Agora cai de vez em quando e ninguém lhe toca. Nunca mais usou sandálias e chinelos de enfiar o dedo só em casa ou na piscina.
É uma das cicatrizes que tem, uma cicatriz que não se vê ao contrário das outras, na cara e nos braços. Foi a caneta da vida que se desviou do curso normal e ali deixou um risco. Não mais se apagará.

O Ouro dos Corcundas

O Ouro dos Corcundas é escrito a ouro em barra, daquele que sabemos existir mas raramente se vê e nunca se usa; no entanto, vive.
A estória mergulha-nos na história com palavras novas-velhas, próprias, certas, fidedignas. Pedristas e Miguelistas agridem-se à pedrada e enquanto isso as pessoas normais continuam com as suas vidas.
Paulo Moreiras mostra-nos como as pessoas normais se podem transformar em heróis e leva-nos de observadores nas andanças de Vicente Maria como se caminhássemos a seu lado, magia feita através da linguagem que optou por usar, impecável, rica, dinâmica e viva, muito viva, provando que o passado também está vivo, de boa saúde e recomenda-se.
Nada foi deixado ao caso e a bibliografia final é prova disso: ali se buscou verdade para a descrição de roupas e trajes, dizeres, modas e canções, descrição de armas e aldeias, transformando a leitura numa lição de história da vida pública e privada, onde os pormenores são cuidadosamente tratados.
O linguajar utilizado é uma música solene de tal forma que nem dei atenção à composição da travessa com rodelas de morcela e queijo partido aos quadrados, cuja forma me trás algumas dúvidas, por actual.
Concordo que a primeira tentação é anunciar Vicente Maria Sarmento como o protagonista do livro, mas assim que se começa a ler ficamos indecisos se esse lugar não pertence à linguagem, à forma de expressão, que cria imagens impossíveis de criar se o palavreado fosse outro.
A ler e reler, a oferecer, a emprestar – que me desculpe o Autor por esta última forma.
O Ouro dos Corcundas é da Casa das Letras, que lhe escolheu capa a condizer, magnífica, e nos brindou com badanas.

Da vida dos livros

Que os livros são entidades vivas já o sabia; levamo-los debaixo do braço mas são eles que nos transportam; apertamo-los mas são eles que nos aquecem; abrigam personagens mais reais que certas pessoas; contêm histórias que adorávamos ter vivido; fazem-nos rir, chorar e pensar; são a cama dos sonhos.
Já pensei fazer um gráfico, uma ilustração dos ganhos obtidos com os livros e a leitura, mas os riscos sobrepõem-se, as setas misturam-se, tudo se encavalita, de tão denso ser o resultado.
Descobri - obrigada Âncoras – imagens de livros cuja riqueza é filha da eloquência com o belo, cruzada de sentidos e que pode ser vista aqui.
Um livro nunca está gasto, obsoleto, velho ou inútil. É sempre possível uma nova abordagem, novas visões, outras histórias, novas e renovadas leituras.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Ai, que calor...

Sento-me já em voo picado para o livro que ando a ler. Como já comentei aqui, o metro fica cheio na primeira estação, a suburbaníssima Amadora-Este. Apesar do mergulho no livro mantenho um periscópio involuntário através dos ouvidos. À minha frente sentam-se duas mulheres, conhecidas, o que é mau sinal: sei que irão a conversar e me vão distrair. Não vou conseguir visualizar as imagens que o autor preparou para mim através da escrita. Bolas! Bem, concentremo-nos!
Claro que elas vão a conversar e às tantas a antena apanha a seguinte frase, em sussurro, apenas murmurada:
- Havíamos de perguntar a esta senhora que meias é que usa, nem se nota que tem meias.
Sei que o comentário é para mim. Levanto os olhos e deixo Vicente da Bufarda parado diante de sua majestade, El Rei de Portugal e sorrio para as senhoras que me olham como se fossem crianças apanhadas a fazer uma traquinice:
- Não se notam porque eu não uso meias.
- Ah...
- Então é por isso... mas como é morena... parece que tem...
- ... mas ao mesmo tempo parecem invisíveis...
- Pois... o segredo é não se usarem meias, irmos à praia o ano inteiro, andarmos sempre de calções, fazermos caminhadas e, de preferência, caminharmos dentro de água. Desta forma conseguimos umas meias invejáveis e, garanto, perdemos o frio.
Enquanto fazia este discurso, elas abanavam a cabeça em sinal de concordância e apontaram para os meus braços tapados por aquilo que se chama manga curta e disseram-se incapazes de andar assim no inverno, com tanto frio. Esclareci ainda que não usava meias com saias nem com botas, nem com calças, que era uma questão de hábito. Sorrimo-nos e eu voltei à Taberna do Pasquino e a Vicente da Bufarda e a Tomásia e ao enredo, mas principalmente, à forma do magnífico livro que anda nas minhas mãos.

domingo, 20 de novembro de 2011

Estamos à tua espera, pá!

Na próxima quarta-feira a minha família terá mais um elemento: será um Sagitário. Nós somos uma família diferente e não dizemos não a qualquer elemento. Se ele um dia decidir abandonar-nos, isso é outra história. Por agora fica connosco e já tem nome: Xavier. É um bom nome para um Sagitário. O irmão mais velho, M., com quem hoje apalavrei as próximas férias com ele de olhos esbugalhados, também é um bicharoco raro. Esta semana encontrou uma moeda de cinco escudos e pediu ao pai se a podia levar para a escola uma vez que estavam a dar os povos antigos, sic. Quando soube da história senti-me uma matrona romana...
A irmã, P., que deixará em poucas horas o estatuto ingrato de filha mais nova, está radiante; afinal, uma miúda tão sabida ser a bebé da família, não condiz com ela.
Enquanto gritávamos pelo Duarte durante o jogo, ele estava sentado ao meu lado e apertava-me volta e meia, numa manifestação de carinho e saudade que me deixa sempre babada. Não podia sonhar sobrinho melhor.
O Sagitário que está quase a passar a fronteira para o país da nossa família, não sabe que apesar de muitas divergências, somos os mais puros dos ciganos, dos mafiosos: a família é tudo e ele não sabe, mas vai sentir.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Uma questão de organização

De entre as várias tarefas que me estão confiadas está a organização de eventos científicos, que também se pode traduzir como a arte de tocar vários burros e conseguir que nenhum fique para trás: definição do programa, escolha dos conferencistas, convites, marcação de viagens, hotéis, guias, resumos e livros de actas, pastas, identificadores, traduções simultâneas, publicidades e cartazes, imprensa, cafés, almoços e jantares, menus para vegetarianos, pratos especiais para quem é alérgico a isto ou aquilo, transportes, questionários de avaliação, aspirinas para dores súbitas e mais um sem fim de aspectos que, quanto mais pequenos, mais diferença fazem.
Para isso é preciso uma equipa que, felizmente, existe e sorri. Os preparativos vêm sendo afinados desde há meses e aproxima-se agora a hora agá. Como sempre, estou nervosa: este é o maior evento que já organizei; mas como estamos bem sintonizados, acredito, como sempre também, que vai correr bem. Confio na equipa e isso é o fundamental. Sei que sou exigente, picuinhas e almejo uma perfeição a que nunca se chega, logo, nunca me dou por satisfeita. Sei que por estes dias fico irascível e fulminante, tentando antecipar qualquer coisa que possa correr menos bem e pondo em prática planos bês e cês, construindo redes sobre redes como se fosse uma trapezista com medo de cair.
Numa ocasião, depois dum outro evento, fui convidada a organizar uma visita dum grupo de arquitectos alemães a Portugal. Espantada com o convite que me parecia cair do espaço sideral, quis saber como tinham chegado até mim. A indicação fora dada por um dos participantes no colóquio anterior, com a informação que eu trabalhava à alemã. Aceitei o elogio e lamentei não poder ajudá-los.
Embora seja uma incapaz para arrumar a minha secretária, poço sem fundo e que na semana passada deu origem a um comentário sobre o facto de estar entrincheirada, dado o volume de papéis diante de mim, sei que a organização deste tipo de actividade flui nas minhas mãos.
O que mais aprecio nestas andanças é a diversidade de aprendizagens: cada evento é sobre um assunto diverso e acabo sempre por ficar a falar línguas diferentes, agora arquitectura, depois relações internacionais, história, ética, estratégia empresarial, o que for.
Há uns anos organizámos um evento internacional cujo jantar final coincidiu com o dia em que se acenderia a árvore de Natal do Terreiro do Paço. O jantar foi no Martinho da Arcada e, apesar dos milhares de pessoas que estavam na praça, os nossos convidados viram as luzes começarem a brilhar no silêncio que antecedeu a iluminação e no barulho consequente do público. Um deles, com lágrimas nos olhos, dizia que era tudo tão perfeito que não se admirava que tivéssemos encomendado a árvore só para eles. E eu perguntava-lhe se ele tinha dúvidas!
O melhor disto tudo é a correspondência que se mantém posteriormente com as pessoas, informal e indisciplinada, as visitas mútuas e a alegria do reencontro.
Espero que este não falhe a regra.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Conhecer o mundo

Venerando viajantes e desdenhando turistas fico sempre de olho semicerrado quando ouço alguém dizer que conhece muito bem determinado sítio porque numa ocasião lá passou.
Quando a coisa se compõe para a conversa digo que invejo quem tem a sorte de conhecer muito bem seja que local for, pois eu, e o defeito será com certeza meu, nunca conheço bem nada, pois cada nova visita é uma descoberta nunca completamente assimilada.
Claro que sou esquisita aos olhos de quem conhece França através do relance que lhe permitiu poisar a vista na Torre Eiffel! Este síndroma verifica-se em todo o seu esplendor com o Brasil, onde um mergulho em Fortaleza tem poderes mágicos e dá conhecimentos sobre aquele imenso país!
Certos locais são muito caros, dizem-me, e justificam com a compra duma garrafa de água; não é preciso garimpar muito para se descobrir que a água foi comprada no hotel, hotel esse que alberga galáxias de estrelas que, mesmo falsas, brilham de tal forma que os clientes pensam ser verdadeiras e pagam, nem se dando ao trabalho de procurar um supermercado.
Noutras ocasiões fazem valer opiniões colhidas no tempo dos cruzados, ou por interpostas pessoas, amiúde um cunhado que viveu muitos anos na Suice ou na Alemanha, ou alicerçam-se numa reportagem que deu uma vez na televisão.
aqui falei dum casal que conhecemos em Marrocos, únicos e só possíveis de existir na vida real, como a Falha das Marianas ou qualquer outro erro da natureza, pois nenhum Spielberg teria imaginação para fazer nascer tais personagens, principalmente ela, cujas descrições da Tailândia me foram inesquecíveis, de tal foram que aqui as partilho.
A Tailândia tem imensos hotéis, todos enormes, com soberbas piscinas e empregados m a r a v i l h o s o s! À beira das soberbas piscinas dos enormes hotéis da Tailândia, os m a r a v i l h o s o s empregados dão massagens aos hóspedes! Não! Não são dessas… quer dizer, também devem dar, mas ali, à beira das piscinas são massagens normais.
A Tailândia também tem praias, ou melhor, a Tailândia em si, não sei se tem ou não alguma praia, mas os enormes hotéis têm de certeza! A água das praias é transparente e quente. O comer… bem, o comer… há i m e n s o, nos restaurantes dos hotéis e pode-se comer de tudo vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas!
Com uma descrição assim, e pensando agora no assunto, percebo o trauma que me ficou e, provavelmente, é por isso que nunca lá fui.
Depois há os executivos que conhecem a Europa de fio a pavio! Vão de manhã e regressam à noite ou no dia seguinte mas, mais uma vez, têm uma capacidade de ficar a conhecer as cidades onde aterram que escapa às minhas básicas competências, mas não os inibem de afirmar que conhecem bem Varsóvia ou Frankfurt, pois se ainda há semanas lá estiveram!, e sabem tudo o que há para saber acerca da cidade, por exemplo: em frente do hotel havia um enorme café que servia p’ra cima de cinquenta espécies de café; e a casa de chocolates em Bruxelas? Hein? Nunca se viu tanto chocolate junto… Como se chama? Não se lembram. Onde ficava? Na rua paralela ao hotel. O que comprou? Nada, no hotel davam amostras.
E o Sena? Os passeios que se dão por lá… e antes de ter tempo de perguntar pelos bouquinistes, já ouço que o único senão são os tipos que se espalham nas margens a vender livros velhos e papelada. E incrível como gente mais avançada que nós, os franceses!, deixam que aqueles sem-abrigo por ali andem a encurtar o espaço de quem quer passar! Aquilo é uma Feira da Ladra e é TODOS OS DIAS!
E as jóias da Rainha? Que coisa espantosa… já que foram ver a as jóias, tiveram que ir à Torre de Londres, e que tal? Não, não chegámos a ir, era para irmos, mas à última da hora o tipo que nos devia levar teve um atraso e ficámos no hotel, mas vimos um folheto com as coroas e aquilo tudo.
Engulo e pergunto porque não foram de metro. De metro? Nã… tínhamos pouco tempo, sabes, ainda nos perdíamos…
Nem perco tempo a dissertar sobre a maravilha que é perdermo-nos, o que se ganha em nos perdermos, o que ficamos a conhecer e a riqueza que trazemos para casa.
Raramente pergunto por Museus não vá a resposta enfurecer-me e eu nem sou muito amiga de museus, é mais ruas e pessoas e cheiros e sabores e sensações e empedrados e mercados e ventos e rugas e risos e estações e terminais de transportes.
Serve tudo isto para pedir que não me digam – digam a outras pessoas, há por aí tanta gente – que conhecem bem esta cidade ou aquela, pela simples razão que é uma enorme mentira.

Novos passageiros

Com o conforto, a que muitos estavam habituados, a passar férias em parte incerta é cada vez mais o número de pessoas que utiliza os transportes públicos. Dois minutos de atraso são suficientes para não se encontrar lugar no estacionamento e o metro, que outrora saia vazio da estação de Amadora-Este, agora vai cheio.
Nos primeiros anos que trabalhei em Almada, e morando no Algueirão, apanhava cinco meios de transportes para lá chegar e outros cinco para entrar em casa: camioneta de casa até aos comboios; comboio até ao Rossio, de onde saltava quase em andamento e em andamento entrava num autocarro que me deixava à porta do barco; navegava até Cacilhas onde apanhava nova camioneta para o centro de Almada. Apenas no regresso, quando não tinha pressa e o tempo estava bom, prescindia do autocarro entre os barcos e o Rossio. Hoje ando apenas de metro e ando muito bem, à excepção dos dias de greve, em que venho de carro e entro no trabalho às sete da manhã.
Uma coisa que me irrita solenemente é a facilidade e a forma com que as pessoas reclamam sem pensar por tudo e por nada. Um minuto de atraso adquire proporções épicas de desassossego em certos passageiros, põe-se na má vida as mães dos maquinistas, atiram-se impropérios sobre um jornal abandonado que as empregadas da limpeza, nesse dias umas poltronas, nem sequer apanharam… enfim, uma tristeza.
Os ‘novos’ passageiros, os que antes iam de carro e agora emparelham com a ralé, e que se notam pelos cremes que lhes cobrem as caras e pescoços, pelos perfumes que se instalam em carruagens inteiras, pelas bijutarias tão parecidas, mas tão mesmo, com peças originais, pela forma afectada como se sentam fazendo tudo para não tocar na plebe que toma lugar a seu lado, como torcem o nariz a qualquer um que se vista de modéstia, são os que mais se incomodam e quando vão em pé então, valha-me S. Cristovão! Então pagam e vão em pé? Olhe, viesse mais cedo, ou então mande a criada guardar-lhe o lugar…
A coisa anda má, mas para algumas pessoas a crise é o próprio inferno, até de metro têm de andar! Ao que uma pessoa se sujeita!

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Vivelete

O Cheiro dos Livros entra-me pelos olhos e vejo uma palavra a que a minha boca está desabituada, mas que mora na minha memória. Teodolito.
Nos idos do primeiro ano de faculdade na disciplina de Sociedades, Culturas e Civilizações Clássicas foi-nos proposto uma de duas hipóteses: ou fazer um trabalho escrito ou ir trabalhar para um campo arqueológico nas férias da Páscoa. Ui… que escolha difícil e pobres dos que não tinham autorização dos pais, sim porque isto passava-se na altura em que era preciso ter autorização dos pais para nos ausentarmos de casa. Sim… esta época existiu.
Lá fomos cantando e rindo para Castro Verde onde os Maias tinham um resort arqueológico. Explico-me: marido e mulher, ambos com o mesmo apelido, davam aulas na faculdade e a estadia dos alunos era organizada entre os dois, ou entre os três se contarmos o cão, Dragendorff, que fora buscar o nome a um arqueólogo famoso do qual nenhum de nós ouvira falar.
O cão era um enorme pastor alemão que permitia que a dupla estacionasse o jipe, um velho Land Rover, e o deixasse de janelas abertas com pastas e papéis e mais o que se lembrassem à mão de semear. Ninguém se atrevia sequer a espreitar se não queria levar com a fúria de Dragendorff, Drago para os amigos e Draguinho para os momentos de mimo com a dona e que nos punham sempre a rir, pois era como chamar Fifi a um general.
Há uns anos tinha passado a única novela que vi com agrado e que me deixava pena quando perdia episódios: o Bem-amado, momento alto da representação do magnífico Paulo Gracindo no inesquecível Odorico Paraguáçu, talvez a melhor composição de intérprete a que já assisti em televisão.
O prefeito Odorico tinha um sonho: inaugurar o cemitério de Sucupira. Legítimo, é claro, mas para isso tinha que morrer alguém e não havia meio, apesar de muitos esforços.
Ora a malta lá em Castro Verde deu com um cemitério romano que nos pôs a imaginação a funcionar e proclamámos o prof. Maia como Prefeito Odorico; um dos nossos colegas, que passava a vida com a cabeça no ar, ficou o Dirceu Borboleta, outra personagem da novela que andava com uma rede de borboletas na mão por aqueles campos. A plêiade de arqueólogos de Castro Verde contava ainda com um aspirante a jornalista que ficou a chamar-se Neco Pedreira como o jornalista da novela. Eu e outras duas éramos as irmãs Cazajeiras e cada um tinha o seu papel naquela novela da vida real que marcou para sempre aquelas duas semanas.
Todos os dias fazíamos o trajecto de Castro Verde até ao campo e regressávamos ao fim da tarde, deixando os materiais usados no campo, devidamente acondicionados. Menos o teodolito que andava a passear connosco e com o qual os Maias se preocupavam imenso pois era emprestado, não me lembro por quem. Todos aprendemos a espreitar pelo teodolito, nem todos chegámos a perceber como se usava efectivamente.
Os almoços eram na cantina das Minas de Neves-Corvo, arranjo previamente feito através da Câmara Municipal e que nos proporcionou momentos únicos como descer a um dos poços, aventura que só quatro de nós aceitaram. Adorei!
Os cuidados com o teodolito não eram esquecidos nem ao almoço, pois levávamo-lo connosco para a Mina.
Era véspera da Páscoa e já fazia calor; embora cada um tivesse levado impermeável, andávamos todos de manga curta e uma de nós tinha uma t-shirt com umas belas palmeiras que, para além de lhe fazerem as mamas ainda maiores, tinha escrito em letras que se iam desfazendo como ondas: Vive l'ête. A t-shirt era velhota, estava meia desbotada e o chapelinho do Verão estava quase desaparecido.
Na fila para o almoço misturávamo-nos com o pessoal da mina, a arrastar o teodolito que passava de mão em mão, quando um dos mineiros fixou o peito da rapariga e disse:
- Vivelete? Esse é o sê nome? Que fêio… sês pais nã tinham outro?
Lá se foi o teodolito, naquele momento nas mãos de Dirceu Borboleta que o deitou ao chão com tanta gargalhada. Escusado será dizer que a Vivelete ficou com o nome gravado a ferro e fogo e nunca mais se separou dele.
Foi o melhor trabalho da faculdade e na altura ainda pensei na Arqueologia como uma carreira a seguir, e cheguei a escrever ao Prof. Indiana Jones a pedir integração na sua equipa mas, vá lá saber-se porquê, nunca tive resposta.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Não querem pagar?

Era uma vez um casal de reformados que recebia mensalmente uma choruda transferência por conta da reforma que dava para pagar a prestação da casa e fazerem uma refeição decente por dia; as outras eram sopa e restos. O casal de velhos gastava em drogas cerca de metade da reforma, ainda por cima legais, com receita e tudo. De vez em quando mudavam-lhe as doses, aumentava a tarifa, e não podiam dar largas ao consumo, pela simples razão que a farmácia não fia.
Um dia foram pagar o Imposto Municipal sobre Imóveis, IMI para os amigos, e o senhor das Finanças informou-os que estavam isentos por via do velho ter sido reformado por invalidez. Os velhos ficaram todos contentes e até diziam que tinham trabalhado arduamente a vida inteira, de tal forma que o velho passava a vida no hospital em operações, para o que tinha contribuído em larga escala o facto de ele ter passado anos em pé, com grande frequência quase vinte e quatro horas seguidas, mas ninguém sabia se assim era ou não. Tanto mais que o velho teimava, de vez em quando, a ocupar uma cama do hospital e a fazer o doutor cirurgião perder horas a operá-lo. Teimosia de velhos, já se sabe.
Numa ocasião estavam os velhos em casa, sem fazer mais nada se não contar o dinheiro como de costume, e porquê? porque tinham muito com certeza e nunca acabavam de o contar!, sem contribuirem para a sociedade, o que poderiam fazer com facilidade, bastava o velho largar a bengala e tomar umas aspirinas para se pôr a andar, mas enfim, quando são interrompidos pelo toque da campaínha. Era o carteiro que lhes entregou uma carta das Finanças que dizia que esperavam por eles lá na Repartição para pagarem o IMI de 2007 até agora.
O casal de velhos, não contente com o que já tinham, não cansados da dinheirama que gastavam todos os santos meses em droga, de barriga cheia de sopa e torradas, não fizeram mais nada, puseram-se a caminho a incomodar o Senhor das Finanças com reclamações sobre o pagamento que, lata das latas, achavam injusto!
Injusto é não lerem o Diário da República para se informarem que a lei mudou e, para além disso, ainda obrigarem as Finanças a gastar dinheiro em cartas, isso sim, é injusto! Mas os velhos, ávidos e cheios de soberba, ainda foram ver se o barro se agarrava à parede!
Quando lá chegaram estranharam a fila ser composta por vários outros velhos, alguns também de bengalas e muletas. Contou-se depois que houve até quem chorasse a perguntar como ia pagar não sei quantos mil euros de IMI de 2007 até 2011. Lessem o Diário da República e nada disto acontecia! Ora esta! Mas não, a velharia anda é nas farmácias, nos hospitais, nos centros médicos, cambada de viciados, e depois queixam-se!
Sugiro aos Senhores de todas as Finanças que afixem um anúncio nas suas repartições com a seguinte informação:
Não querem pagar? MORRAM!

domingo, 6 de novembro de 2011

Herói

Leio o Âncoras e sou levada por uma espécie de ciclone da Dorothy, não até Oz, mas ao Sobral da Adiça. Subo a rua Longa, como fiz tantas vezes, da casa dos meus avós até à casa do Tio Raposo que nunca vi noutra posição senão deitado.
Para mim ele é tão velho como o mundo, tão velho que já não envelhece mais. Sempre o conheci assim, velho, deitado num quarto escuro onde nem os poderosos raios de sol escaldante do Verão alentejano se atreviam a entrar. Ao pé do Tio Raposo falava-se baixo e baixava-se a voz quando se falava dele, num tom que parecia a voz de joelhos.
O Tio Raposo tinha estado na guerra e a guerra ficara-lhe com um braço e dera-lhe em troca uma doença que o obrigava a estar deitado. Estava assim há muitos, muitos anos, mais de cinquenta diziam. Eu não fazia ideia de quanto eram cinquenta anos, sabia que eram muitos, mas não conseguia aperceber-me da dimensão de meio século. Porém, isso só dava mais credibilidade à minha certeza que ele era muito velho.
Uma prima minha, pouco mais velha que eu mas que morava na aldeia e conhecia as dinâmicas de toda a gente, levava-me à casa dele quando ninguém suspeitava e falávamos com ele.
O facto dele falar foi uma surpresa não sei porquê. E supresa maior eram as coisas que contava: o frio, o peso da roupa, capotes e botas, a chuva que não parava e era tanta que entrava, passava pela carne e pelo sangue e saia do outro lado, a falta de comida e como se matavam pessoas pela posse de cascas de batatas, o melhor que se encontrava para comer. O receber uma carta, milagre que ele nunca recebera. E a perda do braço.
Hoje, quando vejo filmes passados na I GG e os realizadores nos metem nas trincheiras, olho a ver se vejo um braço, um braço a gritar de dores no meio dum lamaçal de sangue, cujo dono nunca aprendeu a viver sem ele, apesar de ter vivido até depois dos oitenta anos, como se se mantivesse vivo na esperança que o braço voltasse.
Diziam que o Tio Raposo tinha gangrena, que eu associava a uma gripe grave e nas primeiras visitas não me sentava na cama com medo do contágio. Depois percebi que a minha prima, que o visitava com frequência, era mais que saudável, logo, aquilo não se pegava e passei até a visitá-lo sozinha. Para mim era uma aventura subir a rua, entrar às escondidas naquela casa e sentar-me a ouvi-lo, nem que fosse só para me perguntar pelos meus pais. Ele tinha estado na guerra e tinha regressado, podia estar numa cama que fedia, mas se estivesse num trono era a mesma coisa porque ele era um herói. Tinha trazido a tal de gangrena, doença da França com certeza, pois aqui eu nunca ouvira falar dela. Nunca soube exactamente o que era a doença que mantinha aquele homem na cama, magro que nem um cão, amarelo e cheio de febres altas que iam e vinham ao sabor duma permanente inconveniência e mantiveram este ciclo ao longo de mais de cinquenta anos. Quando estava sozinho em que pensaria? Que pecados lhe assomariam à ideia que pudesse ter cometido e que justificassem aquela vida?
E ela? Eu pensava muitas vezes nela, a mulher com quem casara antes da viagem para parte incerta e por razões desconhecidas. Ela que era uma jovem alegre e bonita como dizia a minha avó e se viu transformada em sombra, sem vida, nem própria nem alheia, com uma grilheta a um morto-vivo que o destino colocou na sua vida, um morto-vivo que ela primeiro adorara e depois aprendera a suportar como vingança da vida por qualquer coisa que ela fizera mal e que não fazia ideia do que seria.
Eram dois caminhos perdidos por onde a vida não passava à décadas.
Pelo meu lado, sentia uma enorme pena dela, vontade de chorar quando lhe via os olhos sempre lacrimejantes, as rugas tão profundas como tristes e por várias vezes deixei mesmo as lágrimas cair quando ela se punha na cozinha e dizia que ia fazer certos cozinhados porque eram os favoritos dele. Dava-lhe de comer e ele sorria, ela retribuia e nos sorrisos havia palavras que me escapavam.
Um dia recebemos um telefonema a dizer que o Tio Raposo morrera. Apesar de o ver poucas vezes e sempre naquele ambiente lúgubre, senti que o mundo, pelo menos o meu mundo, perdera um herói.

Eu não entro em grupos

Voltei a andar de táxi. Já não o fazia há meses mas voltou a acontecer ser conduzida por alguém que parece ter acabado de sair duma soup americana dos anos 70.
O rádio ia ligado e o assunto era a crise. Agarrou o mote e repetindo que era preciso poupar e que ele não entrava em grupos, foi contando como era apologista de se abrir uma ou outra excepção, por exemplo para o filho de 25 anos e que ainda morava em casa. O dito filho tinha sido alvo dum presente de quase 300 euros, um gadget electrónico que ele não explicar bem qual era, mas a culpa não era dele, que ele não entrava em grupos, a culpa era da mulher...
Mais, ele já a tinha avisado que era preciso poupar, mas ela... ela não o ouvia e de vez em quando chateavam-se porque ela parecia que não ouvia notícias e não via como o mundo andava, mas ele, ele não ia em grupos, mas infelizmente teve que engolir quando ela comprou o desumidificador e o ar condicionado, que só foi ligado uma vez no Verão. Aí resolvi dizer qualquer coisa e manifestei a ideia que, apesar de fazer mal, mas o ar condicionado sabe bem e fui esclarecida que não se tratava dum equipamento portátil qualquer, mas duma instalação central que dava frio e calor à casa toda, ele próprio o tinha escolhido e supervisionado a instalação, que isto é preciso andar em cima da malta que instala as coisas e ele era de olho vivo e não ia em grupos.
Fiz a minha voz de surpresa e disse que me parecia ter ouvido ele dizer que fora a mulher a comprar o ar condicionado ao que ele esclareceu, esquecendo-se do que tinha dito antes, que a mulher queria um e ele concordara imediatamente; para terminar a conversa ainda me perguntou, afinal, para que serve o dinheiro? Para poupar?

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Cockpit girl

Estou a fazer um trabalho sobre o impacto da adesão ao Processo de Bolonha no quotidiano das bibliotecas universitárias. Decidi contactar 3 universidades em cada um dos quase 30 países que assinaram a Declaração e tenho andado nesta odisseia que se me afigura um trabalho de Hércules mas com evidentes vantagens e momentos que me fazem lembrar as duas caras de Janus: de um lado está a dificuldade em ler russo, ucraniano, arménio ou grego; a metodologia passa com frequência por um processo de adivinhação, em que procuro na amálgama de caracteres uma arroba e sei que ali está o endereço electrónico… ou pelo menos, um endereço electrónico. Por outro lado, está a magia desses mesmos caracteres, belíssimos, a mostrarem a minha gigantesca ignorância e a levarem-me a questionar repetidamente sobre o que se perde por não se dominarem línguas. Cresce em mim uma vontade de, como diria o V., comprar livros e um dicionário e ir lendo devagar, memorizando palavras, construindo frases, aprendendo.
Depois deste levantamento, ou melhor, durante, pois ainda vai a meio, cresce-me a sensação que o mundo não é grande, até está ao alcance dos marinheiros que se fazem a ele, mas está cheio de descobertas a fazer, descobertas essas que não são segredos, estão até bem à vista, sendo apenas preciso querer vê-las.
Nesta maratona não busco só os contactos das bibliotecas, procuro o nome dos responsáveis, para lhes escrever directamente, o que considero importante para uma taxa de feedback de sucesso. Uso o tradutor do Google como bengala pois, se Universitat d’Andorra não trás qualquer problema de leitura, embora seja em catalão, já თბილისის სახელმწიფო უნივერსიტეტი torna díficil perceber que nomeia a Universidade Estatal de Tbilisi na Geórgia. E foi assim que do Azerbaijão à Holanda, da Arménia ao Vaticano, passei pela Polónia e encontrei o director duma biblioteca universitária escolhida ao acaso: Blazej, de seu nome.
A alegria foi grande de tal forma que parei a pesquisa, usei o Google images para verificar que era aquele mesmo e escrevi-lhe em seguida.
Conhecemo-nos há muitos anos num congresso de bibliotecários em Creta e no regresso voámos juntos até Atenas, onde ele regressou à Polónia e eu apanhei um voo para Amesterdão, depois para Frankfurt e finalmente para o Porto, tudo para conseguir estar na Invicta a tempo de abraçar um primo muito querido no dia do seu casamento.
Blazej estava cansado de andar de avião mas nunca se tinha sentado no cockpit, conversado com um comandante em pleno voo e nunca tinha visto o horizonte, o céu e a terra daquela janela privilegiada onde poucos têm acesso. Ao contrário, eu já o tinha experimentado várias vezes e a minha grande vontade e curiosidade genuína já me tinham levado a levantar voo na cabina bem como a pilotar um helicóptero. Ainda me falta fazer uma aterragem no cockpit, o que depois do 11 de Setembro torna as coisas mais difíceis, mas é preciso não desistir e acredito que um dia lá estarei.
Sentados sob o mar grego a furar o céu, levantei-me, falei com uma hospedeira, disse-lhe que o meu amigo adorava ver o cockpit e pedi a devida autorização que foi concedida. Poucos minutos depois a hospedeira dirigiu-se ao meu companheiro de viagem e disse-lhe que o comandante o convidava para o cockpit. Quando regressou vinha com lágrimas nos olhos, feliz e agradecido.
Escrevemo-nos muitas vezes, ele chamava-me cockpit girl, eu sorria procurando palavras em inglês para lhe responder. A vida e os problemas informáticos fizeram-nos perder o contacto. Há anos tentei encontrá-lo na Polónia, mas não me lembrava do apelido e só o nome próprio não foi suficiente.
Agora, ao virar duma esquina, leia-se página da internet, aqui está ele.
E quando pensava que ele não se lembrava de mim, sou surpreendida pela mensagem de resposta onde ele pormenoriza a viagem de avião e outros momentos em Creta.
Tenho que sorrir.
Há dias falei dele aqui, a propósito duma igreja em Hania, cuja descoberta e visão me enriqueceram para toda a vida. Na mensagem de resposta pede-me uma carta longa, a contar tudo. Vou escrevê-la, pois claro, mas devagar, bem devagar, para prolongar este momento tão feliz e porque a vou escrever em polaco!
Cada vez mais sinto que quando nos deitamos ao trabalho, trabalho que dá prazer, somos recompensados, e quando a recompensa calha em vir sob a forma de amizade, de reencontro, de partilha, de saudade morta, é a magia a acontecer na nossa vida.
Dziękuję, Blazej.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Às mãos ambas

Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia devoram-se num ápice. Muito bem escrito, Rentes de Carvalho remete para  A Cidade e as Serras, fazendo-nos rir e lacrimejar, em bolandas por esses mundos, exteriores e interiores, muitas vezes ambos escondidos, pois o exterior embora esteja por aí, de braços abertos, à espera, não se vislumbra com a velocidade a que se passa. É a chamada velocidade de turista, pois só em modo viajante os olhos se abrem e deixam entrar as memórias.
Não sei se foi da intenção do Autor ou requisito editorial, mas achei piada ao facto de se referir sempre ‘infarto’ em vez do corriqueiro ‘enfarte’ para designar o achaque do músculo cardíaco. E achei piada porque ‘infarto’ é comummente usado no sul do país, local onde o Autor parece não nos levar através da escrita mas, desta forma, percebe-se que a leitura vai sempre mais além do que se pode pensar numa primeira vista.
Porém, se o livro não tivesse o nome que tem podia chamar-se ‘Às mãos ambas’, expressão transversal a todos os contos, por prazer da escrita, por simpatia do autor, por ineficácia da revisão que podia ter sugerido alternativas, não sei. Mas com as mãos ambas seguramos o livro, lemos essa expressão que, de tão repetida, acaba por ser uma espécie de fio condutor que liga cada conto, cada narrativa, como uma assinatura que não desdenha qualquer mão, mas usa-as ambas para se identificar.