quinta-feira, 31 de março de 2011

Peregrinando...

As peregrinações, à imagem de muitas coisas, já não são o que eram. Que eu saiba há três modalidades de peregrinar a Fátima, e falo de Fátima por ser o expoente máximo das peregrinações em Portugal:
1. O Método Profissional da Fé
2. O Método Pedro Caldeira
3. O Método Tradicional.

O Método Profissional da Fé, que também se podia chamar Método de Aluguer, consiste em pagar a alguém para que faça a peregrinação por nós; assim, alugamos os sapatos, pernas e corpo de outrem que fará o caminho por quem fez a promessa. É uma criativa saída para a crise, onde se pede tanto, imagino eu que os Santos andem numa lufa-lufa com listas intermináveis de pedidos e estas pessoas, os Profissionais da Fé, estão dispostos a pagar promessas por procuração, desde que lhes paguem a eles em dinheiro.
O Método Pedro Caldeira, que também pode ser chamado Método das Prestações, foi publicitado quando se constou que o ex-famoso corrector teria feito a promessa de ir a pé a Fátima, em troca duma graça, dum pedido para a sua vida, tal como o fazem milhares e milhares de pessoas. A estória não teria história não se desse o caso de ele ter feito uma peregrinação completamente fora dos padrões tradicionais: todos os dias caminhava uns determinados quilómetros e ao fim da caminhada alguém o ia buscar e ele regressava confortavelmente a casa, à sua caminha, à sua família, ao seu meio. No dia seguinte, sentado no fofinho da sua viatura, era levado até ao local onde tinha terminado no dia anterior e daí andava mais meia dúzia de quilómetros e a coisa repetia-se.
O Método Tradicional é uma maçada de sacrifício, dores de pés e contacto com gentes coloridas nas pernoitas sabe-se lá onde. É usado só pelos pobres e por aqueles que acreditam e interiorizam verdadeiramente que estão a pagar a promessa.
Aqui não se farão apreciações sobre se as peregrinações devem ou não ser feitas, mas apenas me rebolarei no ridículo de quem sabe que tem que pagar a promessa, mas inventa de tudo para se livrar desse compromisso.
Os dois primeiros métodos podem ter muitos nomes, mas não são peregrinações e o primeiro então, lembra-me aqueles alunos que mandam outros fazer o exame por si, o que pode ser definido numa só palavra: trafulhice! Há quem a defenda, é certo, mas também é verdade que a lei consagra que todos sem excepção devem ter uma defesa, logo, há advogados para tudo.
O segundo método lembra-me analogias, como por exemplo, chegar a casa e comer qualquer coisa não é jantar, ir para a rua de pijama não é estar-se vestido, embora não se esteja nu, alinhar palavras atrás umas outras não é escrever, fazer uma peregrinação não é dar uns passeios ao fim de semana.
Pedir é fácil, cumprir o quer se prometeu, que o diga o Governo, não é bem a mesma coisa e por alguma razão diz o povo que de boas intenções está o inferno cheio.
Com franqueza afirmo que não percebo estes pretensos peregrinos que querem mas não querem, vão mas não vão, pagam mas não pagam, mas uma coisa é certa, assim que se apanham com a graça pedida e obtida arranjam esquemas para minimizar a sua parte do acordo e cumpri-la com o mínimo dos sacrifícios, aos bocadinhos aos fins-de-semana que tirar dias de férias para pagar promessas nem pensar.
Esqueceram que o pedido era de monta, se não o fosse não teriam recorrido aos serviços das promessas, e já com o servicinho feito, fazem caretas ao caminho, planeiam pequenos passeios que não lhes desarranjem a vida e assim se fazem as modernas peregrinações. Mais, até há os que se arrependem e ficam chateados com a necessidade de mais aquele pagamento, como eu fiquei esta semana quando fui pagar o IMI!
Ora bolas, agora tenho que ir fazer uma caminhada enorme… tenho que ir já comprar uns Hush Puppies novos que os Manolos não ficam bem com as jeans que comprei na Prada…
Onde está o sacrifício que se oferece em troca da dádiva? Onde está a concentração no pagamento que se está a efectuar? Onde estão as dores semelhantes às de Cristo quando deu a vida pela humanidade? Onde está a fé? Onde está o ‘estar’ em comunidade nas noites em albergues para peregrinos? Estes são alguns dos argumentos que me apresentam para fazer peregrinações, a malta do Método Tradicional.
A peregrinação sentida sai da pele de quem a faz e deixa cicatrizes e não fotografias para mostrar mais tarde, como se tivessem ido fazer uma excursão.
Caminhadas também eu faço aos fins-de-semana, mas não são peregrinações! É assim que vivem a fé? É assim que querem conquistar, pelo exemplo? É assim que dão o exemplo aos filhos? Que de atitudes exemplares se faz a vida, seja em matéria religiosa ou outra qualquer.
À preguiça e indolência que se instalou também neste campo da fé eu sugiro que possam ir ainda mais longe e, tendo em conta que de Lisboa a Fátima são 147 quilómetros, (quem for de outros locais deverá medir a respectiva distância) deixo aqui a seguinte sugestão:
Cada ‘peregrino’ deve arranjar um pedómetro, que mede a quantidade de passos dados, e deve colocá-lo num braço, por exemplo. Como o passo médio das pessoas tem cerca de 75 centímetros, é só fazer as contas de quantos passos equivalem à distância entre a sua casa e Fátima e completar essa distância! Quem viver em Lisboa deve dar 195 951 passos. Ora com idas e vindas nos transportes de e para o trabalho, com idas ao supermercado, ao cinema, um ou outro passeiozito ao fim-de-semana, mais umas visitas a casa de amigos, está feita a coisa.
Aqueles que tiverem de facto pressa e desejarem cumprir a promessa mais rapidamente ainda podem deixar os carros longe da porta dos supermercados, da porta dos prédios dos amigos ou familiares que visitem e caminharem ao longo das carruagens do metro ou do comboio e assim farão mais passos ao longo do dia.
Mais simples que isto nem saltar à corda!

Toda esta dissertação foi causada pela descoberta de que uma pessoa muito querida e amiga está a fazer uma peregrinação no Método das Prestações: todos os fins-de-semana anda qualquer coisita. Quando me contou fiquei boquiaberta e estupefacta com tamanha fé, que a leva a fazer semelhante promessa, e com tamanha cara de pau, que a leva a cumpri-la de semelhante forma, sem convicção alguma.
Quando perdemos as convicções, o que resta…?

quarta-feira, 30 de março de 2011

Criar Afectos

Há anos atrás, a minha irmã e eu deliciávamo-nos com uma brincadeira que consistia em pôr a minha mãe a ler os genéricos dos filmes. Ela proferia palavras inexistentes, lendo em inglês como sabia o português, a longa lista de palavras com nomes de realizadores, actores, fotógrafos, músicos, produtores e um sem fim de outros intervenientes e funções, e nós produzíamos gargalhadas com tal energia que dava para alimentar um qualquer electrodoméstico.
Mesmo antes, na nossa infância e adolescência havia sempre um livro na mesa-de-cabeceira da minha mãe, em cima da toalha da praia ou no sofá, e se havia qualquer coisa onde não se poupava dinheiro, era em livros e isso é qualquer coisa que nunca poderemos agradecer.
Ao longo dos anos fomos vendo-a desinteressar-se da leitura, do cinema, dos teatros de revista. Quer a minha irmã quer eu somos grandes leitoras, sôfregas, ansiosas, insatisfeitas, lendo os mesmos livros, discutindo-os e, regra geral, com iguais preferências e atribuímos a falta de interesse da nossa mãe pela leitura à redução da capacidade de concentração, ao excesso de entrega aos netos, ao nascer de outros interesses (ou desinteresses) próprios da idade.
As maleitas do meu pai ao longo da vida não ajudaram em nada e ela ficava exausta com tanta consulta, operação, medicamentos, preocupações, sustos, hospitais e outros que tais.
Mas de repente, como um bilhete de lotaria que nos vem parar às mãos sem que fossemos nós a querer comprá-lo, eis que as coisas mudam de figura!
O Projecto Criar Afectos entrou na nossa vida por volta do Natal e talvez por isso, nós achemos que foi uma bela prenda, porque milagre foi com certeza.
Por entre várias coisas, tantas que preciso duma agenda para me orientar, o meu pai deixou de se queixar das dores, fazem imensos planos para eles próprios, sem inclusão de filhas nem netos, o que prova que têm vida própria, e a minha mãe voltou a ler.
Ela não sabe, nunca saberá, por muitas palavras que use para lho dizer, a alegria que isso me proporciona, porque quem não lê, não tem essa consciência, mas é mais pobre que os que se dedicam a essa tarefa.
Ler é dos mais maravilhosos mundos que se podem descobrir e a leitura pode até ser uma forma de vida, que o diga eu que comecei a ler aos quatro ou cinco anos e nunca mais parei.
Orgulho-me imenso quando o meu filho brinca e me diz que eu não devo ser muito esperta porque entrei na escola aos seis anos e nunca mais saí!, para designar o vício que tenho em aprender, em saber coisas novas, em conhecer mais e mais e mais. Nunca me canso. E também por isso nunca aceitei muito bem que alguém tão próximo de mim não tivesse um bocadinho, ainda que pequeno, deste meu vício.
Mas agora tudo mudou, o que só prova que se aprende até morrer, que há provérbios populares que não ditam a verdade e que, na minha opinião, nem sequer há burros velhos! Só é velho quem quer e nessa matéria Parabéns à Dona Prata que velha é coisa que ela nunca há-de ser!
Há pessoas mais ou menos abertas à vida e a vida é dum tamanho gigantesco, só temos que ter os olhos abertos, dormir pouco e estar atentos. Teremos muito tempo para dormir quando morrermos!
Por entre danças e cantorias, passeios e novas amizades, teatros e piscinas, cuja saudabilidade é excepcional, o facto de a minha mãe voltar a ler é o que me dá mais descanso. Sei que assim ela terá sempre um amigo à sua espera.

segunda-feira, 28 de março de 2011

O mistério das horas

Ontem acordei com o telefone a tocar. Tentei a minha melhor voz de super acordada para não ter que entrar em explicações do, sabes, é que estou adoentada, por isso dormi até mais tarde, o que tenho?, nada de especial, uma constipação e etecetera e logo do outro lado que também já tinham tido, e este tempo é o que provoca e toda esta conversa que eu detesto! Assim, atendi como se andasse em labuta há horas. Enquanto falava levantei-me e fui à cozinha, pelo canto do olho o relógio ditou-me as horas, lá desliguei e ao fazê-lo, casualmente, olhei as horas do telefone que não coincidiam com as da cozinha. Ora, eu vivo com os pés na lua, mas ainda não cheguei ao ponto de ter dois fusos horários dentro da minha casa! Meia a dormir, fui ver as horas no outro telefone: estava certo com o relógio da cozinha. Já um pouco mais acordada com o mistério, fui ver a televisão: estava certa com o primeiro telefone.
Facilmente cheguei à conclusão certa: o meu filho tinha andado a brincar com os relógios lá de casa, atrasando uns ou adiantando outros, o sono ainda não me permitia ter a certeza.
Orientada pelas horas da televisão, a que resolvi dar mais crédito, sonambulei pela casa até serem horas do jogo do Duarte que tinha saído cedo para ir estudar com o pai. No regresso do jogo a caminho de casa vejo que o relógio do carro marca quatro horas e tal. Impossível! O jogo tinha começado às três, logo deviam ser cerca das cinco e meia. Incomodada com aquela cena, sem dar a conhecer pelo tom de voz que se preparava, no mínimo, um ataque nuclear, pergunto as horas ao meu pai que segue ao meu lado, imune ao desastre atómico que se prepara. Ele lá se estica devagar, tão devagar, que foi a minha mãe lá do banco de trás que acabou por dizer as horas: cinco e meia, acrescentando:
- Já mudaram as horas nos relógios? A hora mudou esta noite.
- Ai sim? – digo eu com o ar mais distraído que consegui arranjar, como se aquele assunto não me interessasse nem dissesse respeito.
Estávamos salvos!

quinta-feira, 24 de março de 2011

É assim

A rapariga opta por ficar em pé, embora existam bastantes lugares vagos. É nova, ronda os vintes e poucos. Contenho-me para não lhe dizer que se grave a si própria: iria poder contar as inúmeras vezes que disse é assim. Iria poder verificar que repetiu a mesma conversa dezenas de vezes e não me parecia que do outro lado a interlocutora fosse mouca.
Queremos que os outros nos ouçam mas devíamos, de vez em quando, só de vem em quandinho, ouvirmo-nos também. Talvez nos calássemos ou pelo menos pensássemos duas vezes antes de abrir a boca. Se o fizéssemos tenho a certeza que havia pessoas que acabavam logo ali com a amizade que têm consigo próprias, olhariam em volta tentando perceber se alguém as teria ouvido e teriam rezado para que todos estivessem desatentos.

Pregar aos carris do metro

Com o nariz a pingar e lenços de papel espalhados pelos bolsos entro no metro a ansiar por chegar a casa. A plataforma quase vazia informa-me que acabou de passar um comboio. Sento-me à espera do próximo entre um homem e uma mulher sem qualquer característica que os distinga de milhões de outros por esse planeta fora. Calados, contemplamos as pessoas que chegam e se instalam na plataforma, à espera também.
De repente, sem qualquer aviso prévio o homem desata a gritar:
- A Santa Casa da Misericórdia deve-me seis mil euros! Há cinco anos que me devem o dinheiro e até agora nada.
Os barulhos normais do metro asfixiam-se perante o grito, que continua:
- Comprei a raspadinha e estavam lá, cinco ferraduras! E dizia seis mil euros! Cinco anos! E nada!
As pessoas que se tinham voltado na sua direcção inicialmente já estão de costas outra vez.
- E depois aquele assalto ao banco! Mas o meu irmão tem culpa nisto porque ele estava lá quando foi o assalto ao banco e não me disse nada. Calou-se bem caladinho! Bem caladinho é que ele se calou. Ora ele devia ter-me dito que assaltaram o banco, se fosse eu tinha-lhe dito a ele! E agora a Santa Casa nada! Caladinha também.
As cabeças esticam-se em direcção ao escuro do túnel, como se assim o comboio viesse mais depressa.
- Seis mil euros! É quanto me devem! Que azar o banco ter sido assaltado logo no dia em que lá deixei a raspadinha. Que azar. Santa Casa, estás a ouvir, deves-me seis mil euros. Há cinco anos.
E mais não soube porque o comboio chegou e o barulho abafou os gritos do homem, que ficou sentado nos bancos da plataforma, com certeza à espera que o comboio se fosse embora para continuar a pregação.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Sopa da Pedra

Há bilhetes de avião entre cidades europeias e do Norte de África a 5 euros!
Isto dito assim, faz-nos correr a casa a buscar os óculos de sol e partir em direcção ao Porto, que os voos saem da Invicta, e voar como se não houvesse amanhã.
Porém, isto é como a Sopa da Pedra: aos 5, aos 6 ou aos 8 euros, os bilhetes mais baratos, temos que juntar as taxas administrativas, a bagagem, os sacos de fraldas, as guitarras, enfim, todo o tipo de pertence, taxado sem esquecimentos. O transporte de um objecto musical pode custar-nos 50 aérios! Ora que gaita, já uma pessoa não pode viajar com o seu acordeão!
Cada 20 quilos de maletas são mais 50 euros, e como gostamos de andar sempre aos pares, já lá vão vinte contos, que eu gosto da moeda antiga. Cada quilo a mais custa 20 euros, independentemente do destino, ao contrário da TAP que tem taxas variáveis e que em Portugal e Espanha se ficam pelos 5 euros por quilo a mais.
Como nada é deixado ao caso, se quisermos que nos mandem um sms a confirmar o número do voo, é mais um euro!
Escusado será dizer que os ditos bilhetes são em dias seleccionados, a horas fora do relógio e voam para aeroportos dos quais nunca se ouviu falar, e dos quais temos que nos deslocar em comboio, autocarro ou táxi (livra!) para os centros das cidades, fazendo a ampulheta do valor gasto encher a cada minuto.
Mas o que me aborreceu mesmo, o que me deixou fora de mim quase a cair, que me provocou uma tristeza profunda, uma consternação sem limites foi ler nas condições sobre os Artigos Proibidos de transportar que, para além das cinzas humanas, também não se podiam transportar troféus de pesca! Isto é inadmissível!
Uma pessoa já não pode viajar com a sua navalhita, anda com frascos de shampoos e pastas de dentes da Barbie, não pode comprar uma espingarda para oferecer aos afilhados e agora não podemos transportar os troféus de pesca! Onde é que isto já se viu? Por este caminho, garanto-vos, vão deixar de ter clientes!

quinta-feira, 10 de março de 2011

As minhas obrigações

É minha obrigação cuidar de todo o bem-estar do meu filho, mas também fazê-lo ver as suas responsabilidades, conversar com ele, ouvi-lo e entende-lo. Também é minha obrigação cuidar dos meus pais, providenciar para que em casa não falte o essencial, ter comer no frigorífico e na despensa, ter as contas em dia.
É minha obrigação sorrir aos meus amigos, aos verdadeiros, aqueles que dia após dia se preocupam comigo e mo manifestam em gestos e não só em palavras que, essas, leva-as o vento.
É minha obrigação ter a casa limpa, preocupar-me com a minha família, ter o meu trabalho em ordem, respeitar o meu chefe, ajudar os meus funcionários, colaborar com colegas.
É minha obrigação dar o lugar a quem mais precise nos meios de transporte, andar com roupa limpa, alimentar-me em condições, ir com regularidade ao médico, lembrar-me do aniversário dos amigos, ser cordial com as pessoas, beber muita água.
É minha obrigação ajudar quem precise, estar informada sobre o panorama nacional e mundial, aprender todos os dias uma coisa nova, ensinar todos os dias uma coisa nova, não desperdiçar recursos de água, poupar luz, evitar fotocopiar e imprimir, gerir as horas, ter os papéis arrumados, saber onde estão as coisas, manter as unhas limpas, ter as respostas aos e-mails em dia, colocar-me no lugar dos outros antes de opinar, pensar antes de falar, valorizar o trabalho alheio, enriquecer o meu trabalho, não deixar para amanhã o que posso fazer hoje.
É minha obrigação andar bem-disposta e sorridente, contribuir para o bem-estar dos que me rodeiam, saber mudar o tinteiro da impressora, elogiar a comida que me põem à frente, não desvalorizar alguém, observar tudo de ângulos diferentes, não me deitar tarde, saber mudar pneus, conhecer os limites de velocidade e respeitá-los, não dar erros, saber ouvir.
É minha obrigação morrer deixando um rasto de vida arrumada.
Será?

quarta-feira, 9 de março de 2011

Paz à sua alma

Como disse a minha irmã morreu uma árvore da nossa família, a Tia Josefa.
O que nos ligava era uma sucessão de momentos únicos que aconteciam sempre que a visitávamos, coisa que durante muitos anos fazíamos com muita frequência pois, se não chegasse o facto de os meus avós viverem com ela, era mais do que suficiente ela ser a mana querida do meu pai, a mana Zefa, dedicação que se entendia também à minha mãe.
A Tia Josefa era doméstica mas o sonho da vida dela era ter sido enfermeira e não havia ocupação que lhe encaixasse melhor. Embora vivesse em Lisboa há séculos nunca perdeu o sotaque alentejano e era com ele que nos contava histórias de antigamente, do meu pai, da família e de pessoas que desconhecíamos mas que, a meio da história, já considerávamos primos. O uso de palavras tipicamente alentejanas que há muito não ouvíamos ou que desconhecíamos por completo fazia-nos rir à gargalhada, e não deixávamos de confirmar uma e outra vez que ela era irmã do nosso pai pois para contar qualquer coisa da infância lá na terra ela recuava até às Invasões Francesas.
Como irmã mais velha duma prole de sete filhos onde o meu pai ocupa o lugar do mais novo, era delirante ouvi-la chamar a um homem de sessenta anos, o meu caçula. Durante muitos anos brincávamos com a existência da Gazeta, que correspondia à rede telefónica de informações da qual a minha mãe também participava e que dava notícias sobre aniversários da família – coisa que a Tia Josefa tinha na ponta da língua desde os irmãos até aos netos dos irmãos e que nós nunca sabíamos – passando por doenças em primeira mão e respectivas curas!
A Tia Josefa tinha sempre, mas sempre, uma nota para nos dar que nos arrancava um sorriso de agradecimento, mas na verdade era ela quem a merecia, como pagamento daqueles momentos inesquecíveis, onde não faltava uma visita guiada pelos novos elementos da família através de fotografias que todos fazíamos questão em lhe oferecer, sabendo que ela gostava.
Muitas vezes o meu pai aparecia de surpresa, coisa que antigamente se fazia e que nós não gostávamos, pois se ele telefonasse a avisar que iríamos, sabíamos que a Tia Josefa nos daria aquilo com que salivávamos sempre que falávamos dela: o bolo de chifon! Venham pasteleiros dos quatro cantos do mundo imitar o bolo de chifon se conseguirem!
Tudo isto junto, e muito mais, dá a dimensão da eternidade de certas pessoas.
Apesar dela ser a mais velha, os outros não são propriamente rapazes novos e as cabeças falham cada vez mais: todas as minhas tias foram unânimes em afirmar que eu era a sobrinha mais bonita, mas estava eu a convencer-me disso e a sorrir interiormente com a conquista quando uma delas me disse repetidamente que eu estava muito crescida! Ora tendo em conta que tenho 45 anos, achei por bem não colocar a faixa da mais bela pois a apreciação podia estar um bocadinho deslocada. Só um bocadinho…
Acho que a Tia Josefa nunca se apercebeu da dimensão em que entrava nas nossas conversas, mesmo quando lho dizíamos ela achava que exagerávamos. Mas a verdade é que a árvore mais velha da nossa floresta, com todos os defeitos e virtudes como qualquer um de nós, era uma presença viva e com vida própria. Ainda o é na nossa memória porque há coisas que não se apagam.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O Império de Bale

Gosto quase tanto de cinema como de ler. Tal como os livros, há filmes que vejo duas, três, quatro e mais vezes. É como tomar banho numa enorme banheira com água morninha, imagem do início dos inícios dos tempos para qualquer pessoa. Nasce-se ali. Renasce-se ali.
Também por influência da mediatização dos filmes nesta altura do ano, tenho ido ao cinema com mais regularidade, que o mesmo é dizer, ver dois filmes de empreitada, com intervalo para um cigarro e esticanço de pernas. Até agora não me arrependi e só me aborrece é dar-me a fome a meio! Aprendi a ir ao cinema sozinha, coisa que antigamente me deixava um sabor amargo nas palavras, nos risos ou nos choros que queria partilhar e não tinha com quem. Agora habituei-me.
É tão difícil escolher um filme… ou mesmo dois ou três. Ou meia dúzia. Talvez seja mais fácil eleger personagens. Não sei, que digo eu, parvoíces. Mas uma coisa tenho como certa, há anos atrás encontrei um certo Jim, na altura com doze ou treze anos e voltei a vê-lo agora, já adulto, embora com a maturidade dum consumidor de crack. Não me admirei pois quem tem uma infância daquelas, adivinha-se-lhe um futuro complicado, deslocado.
O jovem Jim que vivia no conforto do bairro diplomático em Xangai e que teve que se desenvencilhar sozinho no meio duma guerra, criando uma pessoa única, duma força incalculável e, não obstante, que me parecia só existir por fora, completamente esburacado por dentro, como um queijo suíço ou um fato insuflado de ar, gastos os músculos e até os ossos naquela sobrevivência diária onde até é difícil pensar na palavra esperança, muito mais difícil ainda dizê-la, com medo que até o conceito desapareça e nem sequer nos reste a possibilidade de pensar nela. A corajosa mediação de conflitos com os japoneses, a conquista de comida para se manter vivo e o adiar do fim da guerra permitem-nos observar o processo de avanço da loucura dum rapaz que nunca deixou de o ser e de adorar aviões.
As cicatrizes desse rapaz ao longo da vida seriam incalculáveis e não me espantei por o ver transformado num lutador que se viciou em crack. Ninguém me convence do contrário, é o mesmo gajo, embora tenha mudado de nome e apareça agora como Dicky Eklund.
Já me tentaram convencer que aquilo é uma interpretação, mas eu não acredito: não é possível que seja, é ele mesmo, com todos os traços que a vida lhe foi fazendo; há interpretações impossíveis e aquela é uma delas, de modo que só resta uma alternativa, ser ele próprio.
Há filmes com pessoas dentro, sem personagens. São como cometas que só aparecem de tempos a tempos e há quem passe uma vida sem ver um único. Para além de Dicky Eklund, assim de repente lembro-me de Newland Archer, Karen Blixen ou John Nash.
Na cena final quando Newland espera que ela vá à janela a tela jorra emoção que se nos agarra à pele para sempre; quando Karen pede para dançar e afirma que quando tudo está mal, faz o exercício de tentar piorar ainda mais, a dor que sentimos no peito é lancinante, espetada por um desespero que não achamos possível; as discussões de Nash com os seus eternos acompanhantes, esbracejando e querendo afugentá-los, são duma dimensão onde a interpretação não chega.
Como nos livros, há títulos que esqueço, mas há nomes que vivem comigo para sempre.

quarta-feira, 2 de março de 2011

A carta

Recebi uma carta. Li-a e reli-a.
Qualquer um dos meus poucos amigos se a lesse convencer-se-iam que tinha sido eu a escrevê-la.
É sobre livros, sobre febre de leitura, sobre frustração de não poder ler mais, de não conseguir.
É sobre este vício do qual tanta vez falo e que me acompanha desde que aprendi a ler.
É sobre os amigos tão preciosos vestidos de capa dura ou capa mole, quantas vezes maiores e melhores do que os que têm pernas.
É sobre magia, sobre riqueza acumulada, sobre sabedoria, sobre tudo e sobre nada.
É sobre cumplicidades, como as que se estabelecem mudas entre pessoas que têm as mesmas doenças e conhecem o outro. Sabem o que pensa e o que sente.
É sobre insatisfação e desassossegos de quem permanentemente conversa com vivos e mortos, se ri e chora em viagens sem fim, nunca acabadas, cada qual a melhor, a mais bela, todas melhores e belas porque são diferentes. Mas são nossas, fazem parte dos trilhos que percorremos. São cicatrizes perpétuas.
A carta é sobre o amor. Amor incondicional, amor para sempre, amor fraterno por desconhecidos que rapidamente se tornam melhores amigos e nos esperam diariamente sem pedir nada em troca.
Não tivesse eu tanto azar aos amores e responderia a esta carta apenas com uma pergunta: queres casar comigo?

terça-feira, 1 de março de 2011

Pensamentos soltos

A propósito do fim dos saldos, que foi ontem, e do início das promoções, que é hoje, ouvi no rádio que desde o Natal se tem verificado um número assustador de encerramento de portas no comércio em Portugal. Muito provavelmente é a minha estupidez natural a falar, mas eu não compreendo é como é que elas abrem…
Com tanto centro comercial, com tanta loja chinesa, com tantos mercados de rua, a perspectiva de abrir uma loja, fosse do que fosse, assustar-me-ia. Perto do meu local de trabalho há um espaço que já viu vários proprietários, vários ramos, embora todos dentro dos ‘trapos’: de criança, de mulher e, dentro desta roupa específica, de vários géneros. Já aqui falei sobre ela por causa dos preços loucos que fazem concorrência com as lojas de griffe da avenida da Liberdade e com os das lojas em Sunset Boulevard, num local de passagem de pessoas com condição social média baixa. Confesso a minha estupefacção pela teimosia da abertura de novas lojas e não pelo fecho.
O mercado onde compro muita da roupa que uso tem peças lindíssimas e boas e é lá que abasteço a minha febre de sapatos, que podem variar entre 1 e 10 euros o par! É claro que a Zilian tem sapatos de sonho, mas vou sonhando com eles e comprando no mercado do Algueirão, pois assim posso ter vinte pares… ou mais…
A irrealidade de muita boa gente que vai abrindo lojas confunde-me: nenhuma delas vende água de coco no deserto, são iguais umas às outras e, se houver destaque, é por terem preços mais altos que as concorrentes! Alguém me explica isto? Não percebo como nascem ilusões na cabeça das pessoas que as fazem crer que a sua loja terá sucesso, só porque gostam de ter uma loja e criaram as condições para a abrir; para a abrir, mas poucos se preocupam em criar condições para a manter aberta.
O Público de hoje trás uma revista com o sugestivo título Portugal Inovador. Todos os exemplos, desde a medicina aos cabeleireiros, passando pela gestão de restaurantes de fado, têm um investimento que vai muito para além da ideia genial de abrir uma loja de trapos que vai ter coisas lindas de morrer… de morrer sim, economicamente falando.

As fábricas que ontem empregavam os nossos pais que vinham das terrinhas com uma mão à frente e outra atrás, fascinados e medrosos com a grande cidade, são hoje os call centers, os centros comerciais, os balcões de atendimento. Não são cinzentos como o fumo fabril pois as cores da publicidade emolduram-nos e as novas visões do mundo actual retiraram-lhes a perspectiva da sujidade associada às fábricas que produziam unhas negras e mãos encardidas.
Todos se queixam que não há emprego e lá acabam por aceitar um lugar nestas novas fábricas, percebendo que a licenciatura afinal não era o passaporte que julgavam ser, pois ainda não perceberam que as regras mudaram e que é necessário começar a trabalhar cada vez mais cedo para que a experiência acumulada, junta com as habilitações conquistadas e com um futuro repleto ad eternum de formação, lhes proporcione um lugarzinho ao sol. E quem não quiser e não gostar, uma vez que não pode dizer que, se é assim, então não brinco, e não podem voltar para o quentinho do ventre materno, vai continuar a andar a vida inteira à procura de emprego – à procura de trabalho há poucos. Espero que não se lembrem de abrir muitas lojas.