quinta-feira, 3 de março de 2011

O Império de Bale

Gosto quase tanto de cinema como de ler. Tal como os livros, há filmes que vejo duas, três, quatro e mais vezes. É como tomar banho numa enorme banheira com água morninha, imagem do início dos inícios dos tempos para qualquer pessoa. Nasce-se ali. Renasce-se ali.
Também por influência da mediatização dos filmes nesta altura do ano, tenho ido ao cinema com mais regularidade, que o mesmo é dizer, ver dois filmes de empreitada, com intervalo para um cigarro e esticanço de pernas. Até agora não me arrependi e só me aborrece é dar-me a fome a meio! Aprendi a ir ao cinema sozinha, coisa que antigamente me deixava um sabor amargo nas palavras, nos risos ou nos choros que queria partilhar e não tinha com quem. Agora habituei-me.
É tão difícil escolher um filme… ou mesmo dois ou três. Ou meia dúzia. Talvez seja mais fácil eleger personagens. Não sei, que digo eu, parvoíces. Mas uma coisa tenho como certa, há anos atrás encontrei um certo Jim, na altura com doze ou treze anos e voltei a vê-lo agora, já adulto, embora com a maturidade dum consumidor de crack. Não me admirei pois quem tem uma infância daquelas, adivinha-se-lhe um futuro complicado, deslocado.
O jovem Jim que vivia no conforto do bairro diplomático em Xangai e que teve que se desenvencilhar sozinho no meio duma guerra, criando uma pessoa única, duma força incalculável e, não obstante, que me parecia só existir por fora, completamente esburacado por dentro, como um queijo suíço ou um fato insuflado de ar, gastos os músculos e até os ossos naquela sobrevivência diária onde até é difícil pensar na palavra esperança, muito mais difícil ainda dizê-la, com medo que até o conceito desapareça e nem sequer nos reste a possibilidade de pensar nela. A corajosa mediação de conflitos com os japoneses, a conquista de comida para se manter vivo e o adiar do fim da guerra permitem-nos observar o processo de avanço da loucura dum rapaz que nunca deixou de o ser e de adorar aviões.
As cicatrizes desse rapaz ao longo da vida seriam incalculáveis e não me espantei por o ver transformado num lutador que se viciou em crack. Ninguém me convence do contrário, é o mesmo gajo, embora tenha mudado de nome e apareça agora como Dicky Eklund.
Já me tentaram convencer que aquilo é uma interpretação, mas eu não acredito: não é possível que seja, é ele mesmo, com todos os traços que a vida lhe foi fazendo; há interpretações impossíveis e aquela é uma delas, de modo que só resta uma alternativa, ser ele próprio.
Há filmes com pessoas dentro, sem personagens. São como cometas que só aparecem de tempos a tempos e há quem passe uma vida sem ver um único. Para além de Dicky Eklund, assim de repente lembro-me de Newland Archer, Karen Blixen ou John Nash.
Na cena final quando Newland espera que ela vá à janela a tela jorra emoção que se nos agarra à pele para sempre; quando Karen pede para dançar e afirma que quando tudo está mal, faz o exercício de tentar piorar ainda mais, a dor que sentimos no peito é lancinante, espetada por um desespero que não achamos possível; as discussões de Nash com os seus eternos acompanhantes, esbracejando e querendo afugentá-los, são duma dimensão onde a interpretação não chega.
Como nos livros, há títulos que esqueço, mas há nomes que vivem comigo para sempre.

Sem comentários:

Enviar um comentário