segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Mudança de estação

Tanta tecnologia, tanto computador, tanto telefone, tanto equipamento, tanta coisa, mas as pessoas são sempre iguais.
Chove e escondem-se debaixo de collants, casacos siberianos, botas árticas, camisolas de malha e gola alta. Pluviosidade e temperatura são duas coisas diferentes, mas vá lá entender-se tão complexo mistério!
Podem perguntar-me o que tenho eu a ver com o assunto - de saias e pernas à mostra, meias nunca!
Tenho tudo a ver com o assunto: vou apertada no metro, empurrada por uma imitação de leopardo a três quartos, pisada por botas de cano alto, falta-me o ar que é sugado pelas penas de impermeáveis dignos de locais onde os donos nunca foram e se fossem nem quero imaginar o que vestiriam!
Estão as pessoas assim tão ansiosas pelo tempo invernoso? A chuva é ácida e há que proteger qualquer centímetro quadrado de pele? Sou só eu que tenho calor? Isto é uma reacção menopáusica?
Se este tempo tivesse um nome eu chamava-lhe Tempo Nova Iorquino, em homenagem à cidade onde se vê de tudo, onde tudo é permitido, onde ninguém estranha o estranho. Aqui, olham para mim nos transportes como se eu fosse um animal fugido do zoológico, como se fosse despida.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

São mariquices, mas são minhas!

Eu até não fiz grande alarido com o fim das férias, nem com o início do Outono, nem com a primeira chuva, mas não posso deixar de marcar este dia, como o primeiro, desde há vários meses, em que uso calças. E eu detesto calças.
A trovoada desorientou-me logo de manhã; primeiro, acordou-me com luzes a acender e a pagar e fazendo do quarto uma discoteca tardia - há músicas menos melodiosas - uma vez que durmo com os estores levantados. Depois empurrou-me para a secção de calças que a de calções não me pareceu apropriada, a de saias só tem exemplares curtos e já imaginava o vento a piscar-me o olho enquanto as levantava.
Não tendo senão sandaletes ali nas redondezas, vai de ténis, tanto mais que é sexta-feira, casual day.
Manga curta e - voz de tia - um corta-vento impermeável. Porém, a chuva era tanta que tive que ir desencantar um objecto com o qual tenho uma má relação: um chapéu-de-chuva.
Assim, sai para a rua nesta figurinha... com chapéu-de-chuva e ténis, coisas que não pegam, não fazem pandan. É claro que estou chata, irritada e mal disposta e não é pelos ténis, que não perco oportunidades de os usar mesmo no trabalho, mas o chapéu-de-chuva não vai com ténis, é uma afronta aos próprios ténis, lindos, maravilhosos, confortáveis, o chapéu-de-chuva, decididamente, não pega comigo. Hoje usei-o como quem toma um medicamento e amanhã espero estar melhor.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Mas estamos a brincar ou quê?

Manuel Almeida não gosta da palavra Bairro. Afirma ser um ninja e querer formar ninjas para combater o crime. O candidato mais mediático das eleições de Setembro de 2013 lembra o brasileiro Tiririca mas, por mais vontade de rir que nos dê, acaba por ser uma voz anónima que arranca de muita gente um, É parvo, é parvo, mas vai dizendo verdades... 
É o taxista que conhece aquele caso com que lidou ainda ontem, é o passageiro dos transportes que ainda há dias ficou prejudicado porque o autocarro não passou, é o cidadão a quem acontecem coisas concretas e pode dar exemplo disso, levando o particular à categoria de geral.
Faltando-lhe, entre outras coisas, a dimensão do global, os concorrentes entram em paranóia com o discurso inarticulado, mostrando desagrado com as acusações de Manuel Almeida, mas não adiantando muito mais, quase com pena dele, quem seria o juiz que o condenaria fosse pelo que fosse. Ainda assim, têm escrito nas testas Mas porque é que este gajo teve que se candidatar ao mesmo tempo que eu? Como se a dimensão extraterrestre de Manuel Almeida descredibilizasse qualquer pessoa envolvida.
A dimensão pessoal assumida em tudo verbaliza acusações de ladrões e corruptos; quem não as faz? Ideias como a de fazer auditorias sem aviso prévio são palavras comuns na boca de cidadãos comuns. Afinal onde está a surpresa?
O novo Tino de Rans distingue-se do original por uma raiva contida, um desafio instintivo contra uma vida que não terá sido fácil.  Procura palavras e sai-lhe especular a propósito de tudo e mais um par de botas, juntamente com mais uma história pessoal, cheia de pormenores, e eu disse, e ele disse, e depois eu disse e depois ele disse,...
Manuel Almeida é um português nato. Sabe que muita, muita, muita coisa está mal e quer que fiquem bem. Personagem digna dos Gato Fedorento contrariou a célebre tirada, Eles falam, falam, mas não fazem nada, fazendo alguma coisa: candidatando-se. E quer se queira, quer não, isso é muito importante.
Manuel Almeida lembra-nos a criação de Gil Vicente,  Joane, o parvo, do Auto da Barca do Inferno, o único que tem a audácia de injuriar o Diabo, o pobre de espírito, o inocente que, mal ou bem, se opõe ao poder.
Visto na televisão e na internet é espectáculo gratuito que ninguém perde, que todos condenam, mas a quem silenciosamente se acaba por dar uma certa razão. 

Cuisine du futur

Acelera-se-me o coração sabendo que os meus sobrinhos estão a caminho. O mais novo ao telefone diz Quica, Quica, Quica. É Domingo de manhã e dizem-me que vêm lanchar ajantaradamente, tenho tempo para uma surpresa.
Deixo o Duarte a tomar conta de uma panela de arroz e vou ao supermercado: pão, fiambre e queijo, uma carne fatiada, uma caixa de gelado e três garrafas, tão pequenas que não chegam a ter um gole de líquido. Será mais que suficiente.
Quando chegam, abrem-se as abas da mesa da cozinha, a única que existe lá em casa, e ela põe os pratos, os talheres, os copos. Depois mando-a para a sala alegando que vou fazer um comer que vai provocar muito fumo. Fecha-se a porta e a cozinha transforma-se num laboratório de feitiçaria.
Suja-se a loiça toda, é preciso dividir o arroz em quatro porções iguais, juntar-lhe mais uma gota de água e uma gota de líquido das pequenas garrafas, uma só gota de cada garrafa em cada um dos recipientes de arroz. Para cada porção uma taça, uma colher, um prato para levar à mesa o arco-íris: há arroz amarelo-ovo, arroz verde, arroz encarnado e arroz azul.
Chamados a comer, doidos por batatas frita palha nem a olham, olhar esbugalhado preso no arroz colorido.
Percebem que é corante, o sabor é o mesmo mas as variedades - branco, verde, azul, encarnado e amarelo - são magia pura  para engolir.
No fim, alguém se lembra que devíamos ter tirado uma fotografia e a minha irmã diz-me que, em termos de técnica, os meus comeres são a concretização do desastre, mas qualquer chef adorava ter-me a trabalhar com ele, não para ajudar na nouvelle cuisine, mas para lhe apresentar a cuisine du futur

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

As aparências iludem

Decorria animada a conversa com amigos diante de um café, em local bem longe da moda, quando a porta do estabelecimento se abre de rompante. Um vento quente espalhou-se pelas mesas enquanto um homem de cara encarnada estica um braço apontando para a cave do local e diz, afogueado, Por ali! Imediatamente a seguir entram quatro polícias em passo apressado.
O café ficou em silêncio. Por trás do balcão o dono parou de limpar copos. Os olhares de todas as pessoas acompanharam os polícias até desaparecerem escada abaixo num tropel. Os espíritos dos presentes anteciparam mil cenários sobre actividades ilícitas por baixo dos nossos pés. Alguns, que ainda comiam, afastaram os pratos. Os que seguravam em copos e chávenas, pousaram-nos.
Passada a surpresa inicial o dono, ansioso, nervoso, deu uma corridinha saindo do balcão e com o olhar inquiriu o homem que esticara o braço, sem verbalizar nada, e sem nada ser preciso dizer da parte fosse de quem fosse que já ali estava. Então, o homem que esticara o braço, que dissera Por ali!, que usara um tom acusatório, que indicara, que apontara, que quase desvendara, deu a única resposta que ninguém esperava:
- Queriam saber onde são as casas de banho e querem jantar, eu disse-lhes que isto estava quase a fechar. 

Sonhar e rezar, sempre

Antes de sair o vigilante da noite e entrar a colega da portaria que assegurará o serviço de dia vou tomar o segundo pequeno-almoço. Ainda não são oito da manhã, o pátio deixa ver cada pedra da calçada portuguesa que a luz do sol vai aquecer dentro de horas. A sombra e o silêncio misturam-se.
Quando regresso passa das oito e o pátio está cheio de figuras humanas semelhantes a corvos. Os que vestem roupa normal tendem a afastar-se dos doutores, receosos que as praxes comecem com a alvorada.
Sou abordada três vezes, sobre a localização do auditório um e dois e sobre o bar o que me demora uns minutos a chegar à Biblioteca. Aqui, uma das colegas da limpeza é nova no serviço, começou em Agosto, nunca viu a chegada dos caloiros, o pátio cheio de risos e de esperanças, como se o sol, que ainda mal nasceu, aqui vivesse.
O primeiro dia de aulas sempre teve uma mística que me faz flutuar.
Na primária sonhava acordada rezando para que chegasse depressa. No liceu sonhava acordada rezando para que chegasse depressa. Na faculdade sonhava acordada rezando para que chegasse depressa.
Hoje levantei-me às quatro e meia e comecei a trabalhar uma hora depois, não tive tempo nem de sonhar nem de rezar, mas revejo-me em cada novo aluno repetindo as mesmas sensações ano após ano, dando o que tenho e o que sei, sentindo que sou parte da máquina que existe para contribuir para o sucesso de cada um.
Se durante uma vida eu sonhei e rezei para que chegasse o primeiro dia de aulas, depois de começarem sonho e rezo para que seja um Bom Ano. 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Inho, inho, inho

Não sou fã de inhos ou inhas e uso-os normalmente com segundas intenções. Entre muitos, tantos, demasiados, o que mais me repele é o coitadinho/a. Ainda assim, há inhos e inhos, a começar  pelas palavras que efectivamente terminam assim.
Dizem que é um sufixo derivacional do grau diminutivo e só isto me faz pensar duas coisas: primeiro, como é que se pode gostar disto? Segundo, como é que a criançada vai amar o português? Seja como for o seu uso pressupõe uma manifestação de afectividade, ainda que a intenção seja outra e daqui ao desprezo é um pulinho.
Um bom livro, por mais pequeno que seja, nunca, mas nunca será um livrinho. Já um velho pode ser um velhinho, isto se gostarmos dele e, em idade avançada, quando são mudados para os lares, não saem de casa e sim da sua casinha. Cunhados quase todos podem ser, mas cunhadinho têm as invejosas e cunhadinha os expectantes.
Curiosamente, os outros dizem mentiras e nós, uma mentirinha, tão santinhos que somos. Da mesma forma, prestamos ajuda mas os outros só nos deram uma ajudinha, com frequência, uma mãozinha. As crianças estão doentinhas, os adultos doentes e embora progridam só afirmam estar melhorzinhos.
Não há alguém que, nem por só vez, não tenha andado devagarinho, mas não devia ir a caminho de uma rapidinha...
Ninguém quer um homenzinho, mas todos bebemos vinho, temos um vizinho, por vezes gordo que nem um toucinho.
Por me lembrar gente mafiosa não gosto da palavra padrinho e engalinho com uns certos focinhos. Nunca verbalizo a palavra golfinho e, juntamente com os meus sobrinhos, temos uma palavra de substituição... que não vou dizer qual é, faz parte dos códigos secretos!
Por falar em sobrinhos, os meus pintaínhos, gosto de lobinhos, que eu preferia a lobitos quando eles andavam nos escuteiros e as fardas os deixavam tão engraçadinhos...
Para terminar, e só desta vez, só desta... aqui ficam uns beijinhos.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Vai correr bem...

A voz tão simpática é de alguém da Maternidade Alfredo da Costa. Diz-me que a minha amiga está neste momento a ser operada. Não deixo de pensar na calma e suavidade da sua voz, seda pura, em contraste com o nervosismo da minha amiga, cuja operação tem sido adiada há anos, a pedido dela.
Tem medo. Medo das anestesias, medo dos hospitais, das facas e dos bisturis.
Mas chega a uma altura em que os médicos põem o ar sério, tipo mãe de criança pequena quando nos chama pelos dois nomes, e não há volta a dar, tem de ser.
Eu não tenho medo de operações, confio, acredito. Ainda assim, já liguei tantas vezes que dei por mim a pensar se a suavidade vocal da senhora seria normal ou era de propósito para mim. A bem da verdade, eu não tenho medo mas é das minhas operações.

Cartier

Fico a saber que o rei D. Carlos declarou a Cartier como Fornecedora Oficial do Reino. Fico a saber logo à saída do metro quando, meia gingona ao som de Sway pela voz de Dean Martin que me invade via auscultadores, paro repentinamente certa de me ter enganado na estação de metropolitano: escapou-me o Marquês de Pombal? Olha, saí em Hollywood!
A red carpet foi reinventada e está ao alto, do telhado para o chão, num encarnado forte, vivo, um encarnado... red carpet!
Fico a saber que trezentos convidados se vão aninhar no nº 240 da avenida da Liberdade e cá fora, encarnados misturam-se com dourados, onde (ontem?) havia um quiosque.
A agitação é muita e, com Sway nos ouvidos, não resisto a tirar uma fotografia, basta semicerrar os olhos para ter a certeza que estou na entrega dos Óscares, quase que atropelo um holofote, esbarro num senhor de fato e sinto-me despenhar da sandalete abaixo, logo hoje que trouxe uns saltinhos, sapato novo de pano velho, cortada a parte de trás são outros, fica tipo soca, deve ser por isso que ninguém me fala, não me reconhecem com calçado tão brega. Bolas, onde terei metido o convite?

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Alzheimer, sem dó nem piedade

Encho-me de pavor com a descrição de como é que a minha interlocutora arranjou as nódoas negras que tem no braço. Foi a mãe, a quem o alzheimer deixou violenta e que não admite que lhe toquem com um dedo.
Encontramo-nos no centro de saúde e tenho ideia que conheço aquela cara, mas não sei de onde. A cara meia conhecida sorri-me e avança para mim, cumprimenta-me, pergunta-me pelos meus, elogia o meu bronzeado, compara-o com a alvura da sua pele. Aos poucos reconheço-a, há meia dúzia de meses era mais nova uma dúzia de anos.
A linha recta descendente que a doença da mãe tomou levou-ao aquele limite. Conta-me que os banhos e a higiene diária são feitos com grandes doses de sedação, de outra maneira não deixa que lhe toquem. Conta-me que grita com toda a gente, com o marido com quem vive, com ela, filha, com os netos, e já deixou de gritar com os vizinhos e outra família porque eles deixaram de lá ir a casa.
Está no centro de saúde a pedir receitas para medicamentos que ponham a mãe a dormir para que possam tomar conta dela, para que a protejam de si mesma.
A vida é mesmo irónica, sacana, cabra. Obriga-nos a passar por estas coisas, por estes infernos em vida; sob o nome de cuidados paliativos, e porque amamos aquela pessoa, matam-se famílias inteiras aos poucos, devagar, lentamente aplicam-se-lhe torturas, físicas e psicológicas. Mas será aquela pessoa que se ama? Ou a pessoa que viveu naquele corpo? Aquela nem nos conhece, nem sabe quem somos, não reconhece a vida que se partilhou, nem sabe que em tempos teve dores de parto para dar à luz os filhos a quem agora atira as jarras que vai encontrando no caminho.
A quem temos que fazer uma petição para deixarmos de estar doentes e passarmos a morrer uns anos mais cedo? A Deus não pode ser, ele que tudo vê, mantêm-se sossegado, já sossegado estava quando o filho foi crucificado, porque havia de interceder por nós?
Aquela mulher, bem mais jovem que eu e que parecia mais velha que a minha mãe, que carregava a tristeza, o desânimo, a frustração, a impotência, continua a viver, ou a fingir que vive, porque o papel que lhe coube em sorte não é vida, é o de trave, trave que suporta, que sustenta, que segura, que permanece, que aguenta. Até um dia, até ao dia em que o pensamento, que inconscientemente foi ficando vazio para dar espaço ao nada que não deixa o tique-taque do pensar avançar, estiver completamente branco e estéril.
Enquanto fala, ouço a respiração desta mulher calma, habituada, a contrastar com a minha, acelerada. Vendo bem as coisas não era a minha respiração, era o meu medo. 

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Vida depois da morte

As minhas sessões de cinema estão confinadas ao ecrã de televisão lá da sala. Nem sinto bem ser cinema, falta-lhe o tamanho da imagem, a luz ou a falta dela na sala o que permite usufruir da luminosidade do filme, o tal escurinho do cinema, como diz a Rita Lee, até o sair da sala, de barriga cheia, a sonhar, ou mesmo cheia de desapontamento.
Se tivesse sido no cinema, ontem traria o desapontamento. Vi Os Irmãos Grimm com um Matt Damon que não reconheci e prefiro esquecer - parado, de braços levemente arqueados ao longo do corpo que parecia atarracado - e um Heath Ledger que lembrarei sempre, só por ser ele.
O mundo de fantasia que o nome dos irmãos transporta - e que tem alguma ironia se pensarmos no seu nome em inglês com menos um M - é mais do que livre para ser usado e explorado, cada estória uma nascente de imaginação, pontos de partida e chegada a misturarem-se, na ilusão tudo se permite, efeitos especiais e tecnologias a nadar como peixe na água, todo o esplendor do seu protagonismo aqui em relevo.
Porém, ocorreu-me também que são as tecnologias que fazem a magia de nos trazer, de manter, Heath Ledger ali, vivinho da silva.
Durante muito tempo confiou-se no traço do pintor ou no escopro do escultor para manterem vivos rostos de gente famosa, reis e imperadores, rainhas, protegidas e endinheirados; depois a fotografia trouxe a verdade, sem enganos, sem jeitinhos para embelezar, sem aumentar tamanhos ou diminuir gorduras, a que os pincéis sempre se entregavam. Ali estavam eles, parados, um instante irrepetível da eternidade na nossa mão. Depois pôs-se tudo a andar com os Lumière e o passado ganhou vida, repete-se, leva-nos, vem até nós, deixa-nos voltar atrás, espiolhar.
Heath Ledger é apenas um de muitos que já não se deixam filmar mas que continuam a estar presentes, a tecnologia a garantir a vida depois da morte, para nosso espanto e prazer. E vê-lo é sempre um espanto e um enorme prazer...

Pantaleão e as Visitadoras

Imagino Mario Vargas Llosa a rir à gargalhada quando se inteirou da história que o levou a escrever sobre o Serviço de Visitadoras, criado e mantido por Pantaleão Pantoja, capitão do exército peruano. Imagino-o a correr para o papel e a caneta. Imagino-o a sentar-se e a parar de rir. Imagino-o a imaginar cada uma das personagens, a pensá-las, a entrar-lhes no corpo e na alma,  que isto é maneira de falar, não literalmente, apesar do tema não creio que deva ser lida à letra. Imagino que para Vargas Llosa, Pantaleão e as Visitadoras foi uma orgia!
Explico-me para não ser mal interpretada.
Nesta narrativa há o oito e o oitenta, a ingenuidade de Pocha e a experiência de Chuchupe, a fome de prazer dos soldados e a abstémia dos irmãos da Arca, a beleza da Brasileira e a natureza da Mamuda, a mudança do vento nas opiniões de Sinchi e dos generais, e Pantoja, Panta, Pantita, quase santo, livre de vícios e obrigado a viver no meio deles, a mentir à família, a enganar-se a si próprio, a mudar, a ir dos oito aos oitenta.
Quando afirmo que Vargas Llosa pensou em cada personagem e lhes entrou no corpo e na alma, tenho provas disso: os discursos que se cruzam, aparentemente fora da lógica, mas com mais lógica que tudo o resto, ou não falássemos nós e pensássemos em simultâneo, que em simultâneo falam as pessoas, principalmente se estiverem em diferentes contextos e locais, que mundo de mudos teríamos se cada vez que um falasse em Iquitos todos os outros em Iquitos e em Lima e em Lisboa e em todas as partes se calassem?
Com este discurso o autor não nos presenteia com um livro e sim com a realidade, que se cruza, que se mescla, que se ultrapassa, que se contradiz, que se revela (não consigo deixar de me lembrar de vários autores que deviam ler estes textos vezes sem conta para aprenderem alguma coisa sobre o que é escrever, José Rodrigues dos Santos seria um bom candidato).
Assim, Vargas Llosa dá-nos a totalidade das envolvências ao mesmo tempo, como se carregasse as personagens ao colo em simultâneo, uma espécie de Árvore das Mãos de Ruth Rendell, mas com pessoas e um autor.
A forma como o autor nos leva a movimentar dentro da narrativa é única, flutuamos pela selva, pela Amazónia, em Iquitos, damos toda a atenção aos relatórios militares, escutamos atentamente as emissões radiofónicas, assustamo-nos com o Doido no hidrovião e, pelo menos eu, revolto-me com o revisor do livro. Lamentavelmente não fixei o nome deste profissional do erro e da gralha, e o livro, emprestado, foi devolvido.
O Irmão Fransisco é mencionado dezenas e dezenas de vezes ao longo das páginas e há um tal de Irmão Francisco que aparece uma ou duas vezes...
Continuo a espantar-me - já não devia... - com as fichas técnicas que anunciam tradutores e revisores e depois há mais gralhas que gotas de água no mar. Quanto terão pago ao homem? O que dirá a sua consciência? Terá consciência?
Não apontei as gralhas e é raro ler até ao fim um livro com tanto buraco, que me obriga a tanta paragem que parece uma prova de obstáculos, mas Pantaleão falou mais alto.
Pantaleão e as Visitadoras, lido em edição da D. Quixote, a precisar de revisão urgentemente.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Vida social

Apesar de tanta tecnologia que nos rodeia, de tanto telefone, de tanto correio electrónico – receptível até dentro de água! – as pessoas têm muita saudade umas das outras.
Neste pós-férias multiplicam-se as marcações para jantares de antigos alunos, combatentes, colegas, o que for; sucedem-se os telefonemas a combinar encontros, para comentar as fotos das férias já vistas e partilhadas no Facebook ou em qualquer outra rede social, descarregadas a cada passo durante a ausência.
A minha vida social é fraquita mas em Setembro atinge um pico que se repetirá no Natal, quando as saudades parecem voltar à carga, sem apelo nem agravo.
A coisa é de tal forma que fui convidada para três jantares no mesmo dia! Os convites vêm via Facebook e, reparando não ser a única naquela circunstância, liguei a uns amigos perguntando qual deles iam aceitar, por me ser grata a sua companhia e costumarmos ficar juntos. Fiquei banzada com a resposta: Vamos pelo menos a dois! Jantamos num, comemos a sobremesa noutro e se a malta for a qualquer sítio no terceiro encontro, nós ainda aparecemos lá.
Ri-me, não me ocorrendo mais nada para responder. Será a vida social deles ainda mais insignificante que a minha, tendo que se aproveitar todos estes convites? O que aproveitam em cada um? Não era suposto irmos para conversar? Estarão as redes sociais a ocupar tanto espaço, mas tanto mesmo que, mesmo presentes, somos notados pela ausência? Já cá esteve, deve estar a chegar, talvez venha… mas se lhe quiseres falar apanha-o no Face
Terão as conversas a mesma profundidade das mensagens que se debitam, a maior parte das vezes copiadas, nas redes sociais? A partilha é efectiva?
Um dos grupos que agora se planeia encontrar é constituído por pessoas que frequentaram a mesma escola secundária; um dos elementos, rapaz muito respeitado na altura, é agora alvo de chacota – simpática, mas chacota – por não ter Facebook. As primeiras vezes em que nos reunimos ele afirmou afirmativamente a sua negação em pertencer a redes sociais. O que terá pesado para agora o encontrar, alegre e dinâmico, a mandar piadas, a partilhar fotos e a anunciar o seu estado de espírito diário? Terá percebido que sem o Face perdia a sua antiga aura? Sentiu-se obrigado a arranjar este aliado?
Por outro lado, no primeiro fim-de-semana de Setembro organizou-se um encontro dos soldados que fizeram tropa em Beja, nos idos de 66. O meu pai, convidado, não pode comparecer, com imensa pena dele. Falando com os organizadores da coisa mencionou o Facebook alegando que era via através da qual podia ver depois as fotos que tirassem. Lá do outro lado perguntaram Ai tu tens isso?
Dias depois o meu pai recebeu no Facebook algumas imagens do jantar. Primeiro não percebeu quem era aquela gente que o contactava, depois fez-se luz: eram filhos e netos dos que tinham estado no convívio que, segundo consta, foi memorável, muitas recordações, muita conversa, muita vida.

Love is in the air

Os relacionamentos amorosos entre duas pessoas de idades muito diferentes estão no capítulo da desconfiança no manual de comportamentos da maior parte das sociedades. Um homem com um pé nos setenta e uma jovem pouco mais velha que Cristo quando morreu, são alvos de olhares, de comentários, de fraca aceitação social.
Ainda assim, as pessoas comentam, mas não se chocam, olham mas não condenam, sorriem à velocidade de pensamentos comuns sobre aquelas que acreditam ser as verdadeiras motivações de um e de outro, bastas vezes financeiras, da parte do elemento feminino da relação. O que vê ela nele? É pergunta que se repete, com interesse científico na resposta ou, com frequência, com alguma inveja?
Seja como for os exemplos andam por aí, o amor não é discriminatório, não escolhe idades, raças, credos políticos, clubistas, religiosos, acontece. Ao fim de algum tempo, habituamo-nos, esquecemos o assunto.
Mas… e se já tiverem passado setenta primaveras por ela e pouco mais de trinta por ele? Aí o caso muda radicalmente de figura! A velha é uma maluca, o rapaz é muito novinho para saber o que faz, coitado, em conclusão, a culpa é dela.
A culpa, esse fortíssimo peso da herança cristã, presente com todo o seu arcaboiço em qualquer acção da nossa vida, a culpa, que ganharia o primeiro prémio, fossem os sentimentos materializáveis.
Sabendo de um caso assim, interesso-me, quero saber pormenores, não por curiosidade mas por querer perceber onde vão buscar coragem para enfrentar a sociedade. No bolo que é a vida de cada um, a fatia da sociedade é muito mais pesada que a familiar ou qualquer outra. É a sociedade que dita as regras e seria a sociedade de uma vila tipicamente portuguesa, de tamanho médio, que torceria o nariz a um relacionamento de uma branca com um preto, a um relacionamento de duas mulheres, mas que condena de dedo em riste e definitivamente um casal em que a mulher tem mais que o dobro da idade do homem.
Ele, profissionalmente activo, vê uma multidão de adoradores das suas competências e desempenhos questionarem o que até aqui eram só certezas sobre a sua performance no trabalho; afinal, o seu relacionamento atípico cai numa certa amoralidade e, se ele tem aquela atitude, que outras igualmente fora dos cânones sociais – leia-se, condenáveis – será capaz de perpetrar?
Ela, profissionalmente não activa, sente na pele um afastamento das amizades que não querem dar-se com alguém que devia ter idade para ter juízo, e sentem, ainda que inconscientemente, que foram traídas, como é que ela foi capaz? eu nunca suspeitei de nada… pensava que ela era uma mulher normal… que desrespeito à memória do marido, Deus o tenha no céu em descanso…
O silêncio impõe-se nos restaurantes e cafés quando um deles entra. Há quem se ajeite na cadeira para ficar de costas, o empregado ao balcão rosna a querer saber o que querem. Os poucos que aparentam aceitar esta situação fazem-no para saber pormenores que, podendo, venderiam a todos os outros, cuja curiosidade imensa se esconde numa capa de nojo, doentiamente ansiosos por todos os detalhes e a sofrerem dores alheias, nem quero imaginar o que sentem os pais dele, e mesmo a família dela, que vergonha…
Grande, enorme diria mesmo, é a probabilidade de ela lhe ter feito qualquer coisa, introduzindo-se o elemento mágico para explicar a relação, sim, ela deve ter-lhe dado qualquer coisa a beber ou a comer, é definitivo, todos sabem, todos acreditam.
A ninguém ocorre sorrir ao pensar numa relação sexual activa, onde se glorifica o facto de, aos setenta, uma mulher ser tão ou mais poderosa que uma de trinta. Dá vómitos. Vómitos de inveja, não assumida, é claro. O escárnio é partilhado e quem se ponha de fora, também não é normal.
Conheci o casal. Ele parece ter muito mais idade, ela aparenta muito menos. Percebe-se que há uma comunhão rara de entendimento nas conversas, até no discordar são melodiosos e suaves, numa palavra, exemplares. Ele ganha o ordenado mínimo, ela recebe o mesmo de reforma.
Perguntam-me se concordo. Não há que concordar ou não. Perguntam-me o que sentiria se fosse com o meu filho. A bem da verdade, não sei responder. As pessoas são todas diferentes e é precisamente a necessidade premente da sociedade em catalogar, em arrumar em determinados sítios, em pôr em caixinhas pré-eleitas para cada situação que provoca a falta de abertura para situações diferentes, situações que não encaixam.
A nossa mente, pré-formatada, aceita o que conhece, o que é normal, o que é natural. Na biblioteca não conseguimos fazer um tratamento documental standard aos trabalhos de arquitectura: três dimensões, grandes, desformatados – cá está – e que nos dão uma trabalheira dos diabos. É tão mais fácil quando são de economia, de direito ou qualquer outra matéria, onde a catalogação, indexação e arquivo é quase automática. Mais do mesmo.
Na vida passa-se mais ou menos o mesmo.
Contam-me a reacção da filha dela, mais velha que o actual companheiro da mãe. Não gostou, mas aceitou, quer a felicidade da mãe mas, é honesta, avança que lhe é mais fácil por não viverem na mesma terra e apenas ser a mãe que a visita, ela, o marido e os filhos vão à pequena vila só quando o rei faz anos e nós não vivemos numa monarquia. Ama a mãe, mas não deixou de dar voz ao incómodo sentido.
Se o amor é lindo, a sua vivência pode ser horrível, carregada de sentimentos confusos – o assumir o sentimento já foi duro, assumir a relação um inferno, afinal, ela própria pertence ao grupo da culpa e confessa não saber o que teria feito e pensado há um ano atrás, se os protagonistas fossem outros.
Perguntaram-me o que faria se fosse eu. Pergunta difícil, confesso, à qual respondi com a verdade: não sei. Disse-lhes que vivessem um dia de cada vez.
A sociedade, a família, o trabalho, os diversos contextos onde vivemos e convivemos são feitos de moldes onde nos adaptamos, não eles a nós. As relações inter-raciais ou a homossexualidade ainda têm muito caminho a percorrer, porque ousaram pôr em causa este equilíbrio. 
A manutenção do respeito do caminho de vida, crescer, casar, ter filhos, por aí fora, é uma espécie de último bastião social, onde não se aceitam intérpretes que não possam seguir o caminho previamente alcatroado. Ainda assim, um homem velho pode dar filhos a uma mulher nova, mas uma mulher velha não serve para isso. Quereremos dizer, não serve para nada? 

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

For me, for me, formidable

A canção das férias, transportada no meu telefone e ouvida e cantada até à exaustão por mim, pela minha irmã e pelos gaiatos, sempre dedicada uns aos outros. A música é maravilhosa, o Charles Aznavour é maravilhoso, a brincadeira de línguas é maravilhosa.
Além do mais, para mim, foi treinar um francês no qual estou completamente à vontade para dizer Je ne parle pas français…Correndo o risco de ter erros... aqui fica.

You are the one for me
For me, for me, formidable
You are my love very
Very, very, veritable
Et je voudrais pouvoir un jour enfin te le dire,
Te l'crire,
Dans la langue de Shakespeare
My Daisy, Daisy,
Daisy, desirable
Je suis malheureux
D'avoir si peu
De mots
À t'offrir en cadeau
Darling I love you, love you
Darling I want you
Et puis c'est peu prs tout
You are the one for me
For me, for me, formidable
You are the one for me
For me, for me, formidable
But how can you see me,
See me, see me, si minable
Je ferais mieux d'aller choisir mon vocabulaire
Pour te plaire
Dans la langue de Molière
Toi, tes eyes, ton nose,
Tes lips adorables
Tu n'as pas compris
Tant pis
Ne t'en fais pas et..
Viens tombe dans mes bras
Darling I love you, love you
Darling I want you
Et puis le reste on s'en fout
You are the one for me
For me, for me, formidable
Je me demande meme
Pourquoi je t'aime
Toi qui te moque de moi et de tout
Avec ton air canaille,
Canaille, canaille,
How can I love you

Obrigadinha, sim?

Nos meus ouvidos mora um zumbido desde há alguns meses. Desconheço o que o levou a instalar-se e que tão boas condições encontrou – arrendamento zero… - que por aqui ficou.
Muitas consultas e tratamentos depois, o médico sugere uma intervenção cirúrgica. Falo com a companhia seguradora, enviam-se papéis de parte a parte, redigem-se relatórios, fazem-se e atendem-se telefonemas, até que a companhia, três meses depois, diz que sim, que autoriza – “… de acordo com os elementos disponíveis, encontra-se a cirurgia aprovada”.
Porém “… fica a cargo do cliente uma franquia de 2.500.00€, cujo valor é superior à presente despesa. Assim, deverá a Pessoa Segura liquidar a totalidade da despesa”.
Leio várias vezes a cartinha para perceber o que raio é que afinal aprovaram… 

A tioria do bigue bangue

Leonard, Penny, Sheldon, Wolowitz e Koothrappali são as figuras principais de uma série que adoro, The Big Bang Theory.
Faz-me rir, é inteligente, simples numa aparente complexidade e com actores de quem gosto bastante, longe de mediatismos das grandes estrelas.
Para não perder episódios gravo-os e vejo-os quando tenho tempo, por vezes dois e três de seguida, enquanto passo a ferro, sentindo-me uma super heroína que tem o disfarce de dona de casa mas na verdade é… não posso dizer, é ultra secreto.
Cada protagonista interpreta um estereótipo brilhante e de forma luminosa, com destaque para o obsessivo Sheldon, e parabéns ao guionista, não tanto pela imaginação, mas pela forma de captar cada detalhe de expressão corporal, cada pormenor da expressão linguística, cada momento de humor, que se movem numa cadeia onde até as repetições – Sheldon batendo à porta de Penny – não cansam e parecem renovar-se.
A cada novo episódio pergunto-me o que diria o Dr. Sheldon Cooper se soubesse que as legendas na tradução portuguesa são um desastre.
Para além de ser uma série com múltiplas referências a dinâmicas americanas – outras séries televisivas que não passam cá, nomes de produtos, etc. – cujo contexto é traduzido à letra, deixando o sentido muito a desejar, ontem fui brindada com a tradução de ‘light’ por ‘lite’. Todos os dias há uma destas e fico sempre a pensar nas crianças do primeiro ciclo que devem ter contratado para fazer aquele trabalho. 
É uma pena, mais uma para juntar a um grande colchão para o qual contribuem todas as estações de televisão. 

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A caverna de Alibaba

Uma produtora francesa fez um documentário sobre o gigante capaz de produzir tudo, mas literalmente tudo, para o mundo inteiro e que dá pelo nome de China.
Passava eu a ferro a meio das férias quando, no descanso momentâneo do electrodoméstico, entre uma passa no cigarro e uma mudança de canal, apareceu esta pérola.
As equipas de filmagens acompanhavam dois ou três - não vi desde o princípio mas acho que foram deixando o melhor para o fim - representantes de empresas francesas em viagem de negócios pela China, visitando fábricas, falando com responsáveis, acertando compras em grande escala, sempre com um intérprete.
Logo aqui é curioso verificar que há tantos chineses a falar inglês, e francês, mas os europeus não falam chinês. Serão eles mais espertos que nós? O 'espertos' em vez de inteligentes ou capazes, foi propositado.
Com tanto metro quadrado que há para lá fico sempre com a ideia que, por mais séria que seja a intenção de quem planeia e concretiza estas imagens, será enganado sempre que os anfitriões queiram. Mostram imagens de fábricas que vão de complexos industriais como os conhecemos na Europa, até um andar num prédio de habitação. Com uma excepção breve, não se viam crianças a trabalhar e quase não se falou do assunto, ao contrário, por exemplo, dos tapetes no Norte de África onde a garotada é mostrada descaradamente e, magia, o ónus vem para cima de nós uma vez que, quando perguntamos porque são crianças a fazer aquele trabalho, nos dizem que nós gostamos mais do ponto apertado por mãos pequenas. Gostamos? Sempre a aprender.
Nesta visita a um país de alma comunista e espírito capitalista a equipa visitou uma cidade onde a comunidade se impõe: o responsável local do partido explicou bem a coisa. Bem... o que ele dizia não sei, o que era traduzido nas legendas em português era o que a intérprete traduzia do chinês. Seria uma boa intérprete? Lamentavelmente esqueciam-se de mostrar o certificado de habilitações da senhora com as respectivas notas.
Num supermercado da dita cidade chamava-se à atenção para as fardas das empregadas: uniformes do exército vermelho que, como é óbvio, não se haviam de deitar fora e foram aproveitados. As mesmas empregadas começavam o dia a cantar, alinhadas no que parecia ser um parque de estacionamento do supermercado. Ora, será que lá, como cá, se usa o provérbio de quem canta seus males espanta? A letra aludia à comunidade e em como é bom trabalhar para ela e deve ser mesmo bom pois uma boa maquia do ordenado vai directamente para os seus cofres.
Mostravam-se todos os cantos de uma casa, dada pela comunidade a uma trabalhadora, ligou-se até a televisão para que se visse o programa que estava no ar e realçou-se que todos podiam ver aquele programa. Magnífico, nem precisavam de comando de televisão, pois alguém solucionava essa questão, de uma só vez para toda a cidade. Cozinhas e lavagens de roupa comunitárias, casas para famílias inteiras - equivalentes a um quarto nas nossas medidas - e sempre com observações muito positivas dos utilizadores, de acordo com a tradução.
Um dos empresários procurava tinteiros reciclados e quando viu que todo o trabalho era feito manualmente sem luvas ou máscaras chamou a atenção do responsável para os perigos envolvidos naquelas tarefas. A resposta foi polida que nem uma prata em casa de membro da fidalguia, inconclusiva e eventuais alterações foram chutadas para o futuro. O empresário encolheu os ombros, a sua parte estava feita, o que podia fazer mais? Acusado de silêncio não podia ser.
Todo o documentário é objecto de reflexão, pleno de curiosidades e espantos como a própria China. Datang é a capital mundial das meias, uma cidade que se especializou nesta peça de vestuário e que tem um salão de apresentação com nove mil meias diferentes: de homens, mulheres, crianças e bebés, para animais de estimação, para todos os desportos e mais os que ainda não foram inventados, fabricados com mil tecidos e têxteis diferentes, de algodão, vidro, mousse, fibra, caxemira, seda e quejandos, pézinhos, curtas, até ao joelho, de meia perna, collants,  para passeio, para trabalho, para russos - bem quentes - para  europeus - anti-bacterianas, seja isto o que for - com dedos e sem dedos, para diferentes estações do ano, festivas, de Natal, aniversários, estampadas e lisas, ou coisas estranhas, pelo menos para mim, como por exemplo, peúgas do dedo do pé do laço de Terry, alguém que me explique o que é isto.
Abordou-se a mega empresa Alibaba, de quem a Yahoo tinha participações que voltaram recentemente à caverna por muitos milhões de dobrados em ouro, e mostraram-se imagens do maior centro comercial do mundo, uma coisinha com lojas na ordem da quase dezena de milhar, sendo cada uma delas a cara de uma fábrica e onde se tem uma pequena amostra do que as fábricas produzem e vendem.
Ali encontram-se pessoas de todo o mundo que compram tudo, até um guineense que foi à procura de artesanato típico da Guiné, estátuas em pau preto, em pau ferro, de todas as formas e dimensões, fruto do labor de pequenos artesãos, assim como também produtos de arte maconde, pura? Não, feitos por chineses. O entrevistador queria saber o que procurava o guineense em particular e ele dizia a verdade, tudo o que se pedir, eles fazem, barato e bom.
E contra isto, batatas? Não, só se for arroz chau-chau.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

De regresso

Um mês inteiro com chinelos de enfiar no dedo só podia dar nisto: no primeiro dia de trabalho tenho os pés em ferida e só fui de casa para o trabalho. Seria das sandálias? Do trabalho? Efeitos secundários desconhecidos de Setembro? Não sei, mas estou muito mal, tão mal, ai mas tão malzinha...
Para este tão grande desconforto contribuíram de certeza várias coisas: os cartazes das autárquicas, alguns dos quais com toques monárquicos, onde há uma auréola de quem parece abdicar em favor de outro alguém, mas empresta - aluga? - a cara e/ou o nome para mostrar apoio ao candidato, querendo mostrar que eu é que ainda sou o presidente da junta, seja a propaganda para a câmara, a assembleia ou a junta, e seja a junta a de freguesia ou a de bois.
Os meus pés também ficaram varados quando souberam que há um desporto que se chama Óquei e nem a cabeça lhes soube explicar a que acordo ortográfico se recorreu para esta mudança, mas provando que a informação que roda em rodapé - ai que giro, fui eu que inventei! - nos ecrãs dos canais de televisão é... expressiva; o que querem expressar, não sei.
Por outro lado, entrou em vias de extinção o budget para gasolina e tenho corrido seca e meca a pé, seca e meca como forma de expressão pois, embora a minha sobrinha ache que sou muçulmana, nunca fui a Meca nem a pé nem a cavalo.
Por outro lado ainda, na gloriosa manhã do terceiro dia de férias, a minha querida irmã perdeu a chave do carro na praia e ficámos apeados. Podia ter sido numa praia de rochas, podia ter sido numa praia de areia branca ou mesmo de grão grosso, mas não, foi numa de seixos negros, pequenos, aquadrazados, tal e qual como a forma da chave do carro e nem todos os visitantes juntos daquela praia de rabo para o ar a conseguiram encontrar, tendo ficado para sempre perdida nas ondas da praia de Illas e tendo-nos deixado com a roupinha que tínhamos no corpo. Conclusão, muito quilómetro se fez a pé naquelas paragens até que a chave suplente chegou de Portugal até àquele cantinho escondido onde estávamos.
O fim das férias foi, definitivamente, a razão maior para toda eu me queixar.