sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Razão de ser


Independentemente de aqui aparecerem textos novos todos os dias ou não, não se passa um dia sem que dê ao dedo. É uma coisa visceral, ler e escrever.
Já desisti de tentar editar seja o que for, e embora continue a escrever romances, guardo-os, como guardo as famosas botas que já correram mundo. Um dia ficarão para alguém que lhes dará o fim que entender e como escrevo como se fosse uma impressora das mais básicas, apenas de um dos lados, sempre se pode usar o outro lado como papel de rascunho.
Já esqueci as incitações dos amigos que me chagam para que edite a estória de Carmem, as colecções de mini contos, os livros infantis ou A rapariga que não gostava de livros com as capas dobradas, completo, do qual há por aqui vários capítulos.
Sobre esta matéria quero aproveitar para agradecer a todos os que me escrevem a pedir o final e informar que falta muita coisa pelo meio.
Porque se sente esta necessidade de partilha? De querer que outros estejam connosco nesta coisa que é escrever e ler? Neste casamento tão perfeito que até a perfeição o inveja?
A escrita é uma forma de dádiva, e não me refiro ao saber escrever, mas ao acto de dar aos outros. No meu caso, no deste blog em concreto, é uma necessidade de partilhar sim, mas também de rever o dia-a-dia, as relações entre as pessoas, de apanhar situações que me fazem rir, pensar e reflectir, reclamar, emocionar, recordar, e tudo em público, de forma aberta e partilhada.
Não deixo de me rir quando me dizem que o Areia às Ondas é um reality show com a diferença que não é em directo… Sim, é um diário que é lido aqui em Portugal, mas também em Macau e na Argentina, em Angola e no Brasil, na Noruega e nos Estados Unidos, em Israel e na Alemanha, na Dinamarca e na Coreia e, não sei dizer porquê, com imensas visitas originárias da Rússia.
Mencionei apenas os países que registam um maior número de pegadas neste areal, mas outros há, e que aqui não se leia qualquer desprezo, qualquer preferência da quantidade sobre a qualidade. Por exemplo, veio de Espanha a mensagem mais engraçada que já aqui recebi, da Venezuela um pedido para reproduzir textos, do Chile, ai o Chile, um dia vou ser tão feliz no Chile, um abraço enviado por que si, como dia o remetente.
Curiosamente, ou não, de Portugal vieram dois pedidos, dois, para retirar textos. Que não eram verdadeiros, que ofendiam, que devia ter cuidado com a prosa. Falo agora desde assunto pela primeira vez pois a importância que lhes dei foi nula e a única cosia que apaguei foi um comentário, de um amigo, que escreveu o meu nome e fez várias referências pessoais, desnecessárias na minha opinião, e assim lho comuniquei quando retirei o comentário.
Tem havido interacções directas com portugueses, que muito prazer me dão, desde logo com um certo ladrão de livros que se deu ao trabalho de vir a Lisboa conhecer-me; com um leitor a quem eu emprestei um livro meu – contra todas as minhas regras!; com autores de livros que leio; com pessoas simpáticas que me dão o prazer de enviar umas linhas – por exemplo a dizer Boas Festas.
De todos, realço uma visita quotidiana, uma amizade de muitos anos, uma pessoa que vive sempre comigo embora a sua natureza de cidadão de mundo, e o asco pelo Portugal que temos, o leve a constantes viagens por esse planeta fora, o V.
A todos agradeço o acompanhar neste percurso.

Amar ou odiar


Amar ou odiar
Ou tudo ou nada
O meio termo é que não pode ser
A alma tem de estar sobressaltada
Para o nosso barro sentir; viver
Não é uma Cruz que não se queira pesada
Metade de um prazer, não é um prazer!
E quem quiser a vida sossegada
Fuja da vida e deixe-se morrer!
Vive-se tanto mais quanto se sente
Todo o valor está no que sofremos
Amemos muito como odiamos já!
A verdade está sempre nos extremos
Pois é no sentimento que ela está.

Fausto Guedes Teixeira

Noite branca


Ontem à noite estava uma claridade inusitada. Fumando um cigarro à janela da cozinha vi pormenores do prédio em frente que nunca tinha visto em dias de sol. 
Chamei o meu filho que me disse que eu estava a alucinar.
A noite era branca, luminosa de tal forma que me deu medo. De quê? Nem sei, mas senti um arrepio de anormalidade.

Chico, grande abraço!


Já ouvi dizer que ser-se chic é ser um aristocrata da aparência. Há quem esteja chic de vez em quando – eu, raramente, mas já aconteceu – e há quem seja chic, de maneira inata. A minha prima Natércia é, definitivamente chic, mesmo que esteja de ressaca, com enormes olheiras e com o cabelo todo revolto. Nunca a vi assim mas acredito piamente que mesmo nessas condições ela mantenha um ar elegante, um porte distinto e um estar refinado.
Ora chic é uma palavra estrangeira que aportuguesada dá, obviamente, Chico! Provas disso são várias.
Comecemos por um dos mais famosos Chicos portugueses, o Chico do Cachené, que não só usa o dito cachené, um chapéu às três pancadas como remata com calções à marialva. Não será isto chic? E como não havia ele de por o bairro em alvoroço?
Outro Chico bem conhecido, o Chico Esperto, é ainda mais português que o anterior e não há alma lusa que não partilhe um pouco desta chiqueza. Adoro pensar num Chico Esperto de meia branca, anel no mindinho, crucifixo estampado no peito e amor de mãe expresso a azul num braço.
Outra prova irrefutável encontra-se no filme a Aldeia da Roupa Branca. Os aldeãos vibram com a chegada de um conhecido que vem da glamorosa cidade. E como se chama o filho da terra que vem visitá-los, bem vestido e garboso? Chico, pois claro! Gritam em uníssono Chegou o Chico, chegou o Chico!, que não podia ter outro nome, evidentemente. Qualquer outra das personagens não era digna de chegar de parte alguma: Jacinto, Luís, Zé ou Simão? Nenhum tem aquele dobrar de língua das duas consoantes que abrem o célebre nome, Jacinto é nome de aldeão, Luís é suave a mais da conta, esbate-se na boca, Zé é muito curto e Simão rima com cão!
Como se isto não bastasse, veja-se o caso de Chica da Silva: escrava alforriada e senhora da sociedade de Diamantina, com influência e poder. As perucas e roupas europeias, os modos, as casas, enfim tudo, eram de uma chiqueza que não poderiam pertencer a uma Maria qualquer e não é por acaso que se chamava Chica!
Mas as provas não ficam por aqui. Chico era o nome de uma moeda, de ouro, pois claro, no tempo dos cruzados. Alguém se lembraria de fazer uma moeda Manel ou Jaquim? Ah pois é, mas havia uma Chico!
E quem não se lembra do Chico Fininho? O Chico não caminhava, repare-se, gingava! E lá por se meter nas retretes não perde fineza, lá está, pois para além de ser fininho, é Chico e ser-se Chico é ser-se refinado.
E que dizer da lenda de Chico Rei? Rei! Nem Conde nem Marquês, Rei!
E como de pequenino se torce o pepino, onde é que as pessoas de bem compram os produtos para os seus bebés, onde? Na Chicco! Os dois cês não são por acaso, destinam-se a ensinar a criançada a dizer as sílabas de forma separada, a marcá-las bem. Quando crescem largam as fraldas e deixam cair um cê.
Conclusão, digam lá o que disserem ser-se Chico é a essência e a nobreza do chic!

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Mãe é mãe


A minha tia R. tinha um filho que desde cedo quis ser médico. E foi, escolheu a ortopedia como osso do ofício, para além de ser adepto do fê cê pê dos quintos costados e filiado no pê cê pê com todos os ossos.
As minhas férias no Norte marcaram-me essencialmente por causa dele, uma das pessoas mais incríveis que já conheci, sabendo de tudo o que há no mundo, grande viajante – não turista, viajante mesmo – dono de um humor único e de uma enorme boa disposição, maior que ele, e se era grande com os seus cento e não sei quantos quilos e um bom metro e noventa de altura.
Numa ocasião o T., já casado, com filhos, com consultório e a dar consultas no hospital, apanhou anginas. Os meus tios tinham-me levado a jantar em casa dele e a tia R. assim que o viu disse-lhe que estava doente, apalpou-lhe a garganta, diagnosticou uma enorme camada de papeira e mandou-o para a cama, com toda a experiência e conhecimento que detêm as mães donas de casa, como ela.
O T. rindo-se disse-lhe que não sabia que a mãe era médica, que agradecia a consulta, mas já estava medicado e não havia problema.
O jantar decorreu entre mil conversas, quem melhor do que ele para fazer de uma fatia de pão com manteiga um opíparo jantar onde se engoliam as palavras e se saboreavam as histórias que tinha sempre para contar. De vez em quando e a propósito de nada a mãe lembrava-o que estava com papeira e ele retorquía  sempre calmo, que eram anginas.
Ao fim da noite, fomo-nos embora e ela ainda lhe gritou lá de fora que se metesse na cama para curar a papeira.
Quis o azar que o T. morresse cedo de mais para nós que aqui estamos, mas isto é só um pormenor porque força daquela não morre nunca dentro do nosso peito.
A minha mãe anda numa de tia R. e discorda da dieta que a nutricionista me recomendou: pão? Onde é que já se viu?
Explico-lhe – pela enésima vez – que como mil vezes ao dia e que o pão é o ingrediente principal logo de manhã para dar saciedade e que volto a comê-lo a meio da tarde. Ela não concorda e apesar de eu ter muitos quilos a menos, ainda podia ter mais, segundo ela, se me deixasse de gulodices.
Pergunto-lhe, como o T., se ela é nutricionista e diz-me, com falsa calma, que não, eu bem sei que não, mas mesmo os médicos e nutricionistas não sabem tudo, como eu também sei e se não sei devia saber! Sim mãe…
A senhora minha mãe, que é a elegância – e a vaidade… - em forma de gente, pesava 89 quilos quando tinha a bonita idade de 11 anos… Fazendo jus ao provérbio era considerada a rapariga mais bonita da aldeia e qualquer um - o meu pai, amigos ou amigas de infância e adolescência são todos unânimes -  reage quando brincamos e dizemos que ela era a única rapariga da aldeia… Não, não, era mesmo linda, dizem em coro.
Era muito estouvada também e pensamos que era a dose de loucura que lhe dava o brilho que todos confundiam com beleza, mas não se insiste. Um dia achou que era gorda – a sério, mãe? – e fez uma dieta que a enfiou num vestido de noiva cuja cintura se agarra com as mãos, e lindo de morrer, diga-se de passagem.
Nunca mais foi gorda e vive infeliz e de mal com os quilos a mais das filhas, principalmente com os meus que eram muitos. Agora anda satisfeita mas quer mais e mais depressa e bem a vi conter-se quando provei os sonhos e as azevias e por isso me receita que não coma pão.
Minto-lhe e digo que já não como pão? Imponho-lhe a vontade da nutricionista? Sigo o seu conselho e retiro o pão?
Não quero fazer nada irreflectidamente e o melhor é pensar com calma nesse assunto, por exemplo, enquanto como uma açorda.

Mensagem de Natal


No dia de Natal levantei-me cedo, vim para Lisboa para que o Duarte passasse o dia com o pai e com a sua família. Tendo o dia livre já me tinha disponibilizado para trabalho voluntário e acabei por fazer visitas no hospital a pessoas que não conhecia. Duas delas nem se aperceberam que ali estava alguém, que lhes aconchegou a roupa, falou com elas e lhes fez companhia.
O que mais me custou, o que me fez peso, um peso do tamanho do mundo, foi os olhares dos familiares e amigos dos outros doentes, os que tinham família e amigos que os foram visitar: olhavam-me como se eu fosse marciana e olhavam as pessoas a quem eu fazia companhia como se… é difícil explicar e posso estar enganada, mas olhavam-nas como se tivessem peste, como se não ter alguém que as visite de mote próprio fosse uma coisa terrível, uma doença contagiosa mais contagiosa que qualquer doença catalogada nos canhenhos médicos.
Confesso que não foi fácil. Não foi fácil sentir a solidão ali tão sólida, no corpo fraco e quebradiço de velhas mulheres, transformadas em fantasmas vivos daquilo que foram.
Uma delas sorria não sei a quem. Eu não sei, mas tenho a certeza que ela dirigia o sorriso de forma directa, a alguém que amava e que, provavelmente, esperava encontrar. Não sei, mas sei que ela sabe e isso chega-me.
Hoje recebi uma retribuição.
Não sei porquê perde-se informação importante que cai na caixa de spam. Foi o caso de uma mensagem de Natal muito especial: era dirigida a mim, a mim mesma, com explicação da razão de alguém desconhecido me enviar uma mensagem de Natal.
Adorei, pois claro!
Menciona esta pessoa que na sequência da leitura de Presépios para todos os gostos lhe ocorreu escrever-me, ou seja, não foi uma mensagem automática; não o fez porque, não sabendo como ocupar o tempo, resolveu gastá-lo assim; não o fez porque se sentiu obrigado; não o fez porque calhou; não o fez porque toda a gente faz.
Fê-lo porque quis, porque sentiu vontade de, apesar de não me conhecer, me desejar Boas Festas.
Isto não é magnífico? Uma mensagem genuína de estranho para desconhecido, sem dívidas nem deveres! Não, não é uma maçada receber mensagens de Natal de quem não se conhece, é um privilégio se elas nos são dirigidas com todas as letras!
É uma surpresa, das boas, com a qual não contamos, é um presente. De Natal ou de outra qualquer altura, mas é um presente.
Lembremo-nos que o passado já não existe e quando existia, era presente; que o futuro ainda está para vir e quando isso acontecer será presente, ou seja o presente é aquilo que realmente temos, é uma dádiva e por isso sinónimo de prenda, de oferta, de oferenda.
E acontecendo recebermos mensagens assim são diamantes puros feitos de alegria, são rubis com emoções, são esmeraldas cor-de-rosa, a cor dos sonhos. Obrigada. Escreva sempre. 

I Gave My Kids a Terrible Present


Assisti a um vídeo no Youtube que me deixou com vontade de pregar umas estaladas bem assentes.
A ideia era ver como reagiam algumas crianças quando lhes davam presentes de Natal que nada tinham em comum com o presente típico para uma criança. Assim foram desembrulhadas duas enormes batatas, uma banana meia podre, um frasco de gomas vazio, um desodorizante, um rapaz recebeu uma Barbie e um outro, uma camisola com uma qualquer boneca estampada entre outros na mesma linha.
Fiquei estupefacta com as reacções e algo me diz que os organizadores da brincadeira não ficaram e estavam à espera daquele resultado.
Os gaiatos gritam e berram, clamam que odeiam os pais, querem bater-lhes, choram baba e ranho em ataques de raiva que parecem cães a ser atacados por dores inacreditáveis de tal forma choram e gritam.
As estaladas anunciadas nas primeiras linhas não eram para as crianças mas para os paizinhos que as fizeram assim. A nenhum miúdo ocorreu que podia ser uma partida, uma brincadeira, evidenciando uma anormalidade assustadora.
A expectativa gorada não se manifestou em tristeza ou desânimo, mas antes em raiva pura, em descontrolo total, em manifestações de ódio gritado com as veias do pescoço em riste, numa fúria que os assemelhava a búfalos picados. As prendas são desprezadas e atiradas para longe para mostrarem o seu descontentamento.
Quem são estas crianças? Quem são os pais destas crianças que os criaram como lobos esfaimados que, à vista de uma peça de carne que afinal não se revela comida, reagem como animais irracionais mordendo tudo em seu redor?
Igualmente tomava balanço e pregava uma morraças em alguns dos comentadores como por exemplo num que afirma não gostar de ver estas coisas pois não gosta de ver crianças a chorar. Outro diz que não chega tê-los trazido ao mundo como também têm que lhes destruir o Natal e nesta frase está tudo, como é óbvio: o Natal é receber, receber, receber, prendas, prendas, prendas, muitas, muitas, muitas…
Pai Natal… eu nunca te pedi nada e agora que o vou fazer agradeço penhoradamente que acedas ao meu pedido: passa-lhes com o trenó e com as renas por cima! Ah, e não te esqueças de todos os que se estão a rir!

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Garreia de cães


Por vezes esqueço-me do livro e não tenho outro remédio senão ir a olhar para as pessoas no Metro. Outras vezes levo o livro mas as pessoas falam de tal maneira que não tenho outro remédio senão ouvi-las. 
Eu ouço-as, as pessoas que vão ali nas redondezas ouvem-nas, a carruagem inteira as ouve, mas garanto que elas não se ouvem a elas próprias.
Qualquer um pensará que são surdas ou velhotas. Errado.
Há dias iam três senhoras, pela conversa professoras do primeiro ciclo, todas na casa dos trinta e tal anos e, literalmente, todas a falar ao mesmo tempo, sem esperar resposta e sem interrupção. Aquilo sim merecia ser filmado.
Às tantas percebi que não eram professoras, eram lunáticas fugidas de um hospício. Talvez já tivessem sido professoras ou talvez quisessem ter sido professoras, qualquer coisa do género, mas serem professoras, não podiam ser.
Uma atenção bem atenta e concentrada revelava que falavam da mesma coisa, da mesma escola, diziam os nomes dos mesmos miúdos e referiam-se aos pais desses miúdos, mas tudo ao mesmo tempo como se estivessem num concurso para ver quem falava mais e mais depressa.
Nesse dia eu levava um livro, que seguia fechado, e ia fascinada pelo trio professoral, cada qual com sua louca oração de sapiência, apressada e desprovida de sentido.
A coisa era de tal forma que de repente uma delas disse a outra que já tinham passado o Colégio Militar, estação onde a amiga devia ter saído. Ela calou-se uns milésimos de segundo, parecendo estar a processar a informação, voltou a encarrilar no solilóquio e nem deu resposta à outra que, por sua vez, fez a mesma coisa.
Duas ou três estações mais adiante saíram as três em permanentes e paralelos monólogos, virando a cara sucessivamente, como para dar a ideia que falavam umas para as outras, e o comboio continuou a sua marcha.
Um velhote que seguia sentado frente a mim olhou-me e disse:
- Livra, parecia uma garreia de cães!
Desatei a rir pela oportunidade da expressão mas também pela lembrança, pois era uma coisa que o meu avô dizia muitas vezes. 

Serviços de limpeza Faça Você Mesma


A limpeza e arrumação do mau vasto palacete são feitas por mim e pelo Duarte com uma ajuda da minha mãe. Não foi sempre assim, e tempos houve em que tinha uma empregada que passava a ferro e limpava a casa. As casas onde tenho morado ultimamente têm diminuído de tamanho, éramos três e agora só somos dois e, acima de tudo, não há dinheiro, pois se o houvesse, pagaria a alguém para fazer o que detesto: arrumações.
A primeira pessoa que contratei com este objectivo andou lá por casa o tempo que demorou até descobrirmos por que razão a conta do telefone era de vários contos de réis, quando nós nunca estávamos em casa.
Quando, finalmente, a Companhia nos enviou uma lista de números para os quais alguém ligava durante o dia, e durante hora e meia seguida!, verificou-se pertencerem todos à mesma aldeia de onde era a senhora, sendo muitos dos telefonemas para casa dos pais e vários outros para a restante família.
Para não haver confusões o dinheiro pago ao final do mês era sempre dado em mão e fui a casa dela, não pagar-lhe, mas pedir-lhe o que faltava face à factura do telefone que levava na mão. O marido da dita correu comigo aos gritos com um sortido de palavras pouco simpáticas, faltando-lhe apenas a espada em defesa, não sei se da sua amada ou da sua reduzida conta telefónica durante os meses que a esposa trabalhara na minha casa.
A segunda era a D. Maria e esteve connosco vários anos apesar de uma enorme incompatibilidade entre as mariquices que eu tinha em cima dos móveis e a sua própria natureza e hábitos: a D. Maria era uma pessoa do campo e limpava o pó olhando gulosa para o quintal que lhe dirigia um chamamento silencioso para que o fosse cavar. E ela ia com alguma frequência, fazendo a lida da casa em velocidade acelerada e tratando do quintal com esmero de mãe e muitos mimos.
Numa ocasião visitei o Teide e carreguei com umas pedras de 3700 metros acima do nível do mar até casa, que muito trabalho me deram a manter durante a viagem. Aterraram em cima da lareira durante uma semana e foram parar dentro da lareira assim que a D. Maria lhes pôs a vista em cima! Quando perguntei pelas pedras ela não sabia de nada, mas depois lembrou-se de qualquer coisa: sim, de facto estavam uns carvões em cima da pedra da lareira, com certeza fora o Duarte, que ainda era pequeno, que ali os pusera, mas eu que não me preocupasse que ela tinha limpo tudo... 
A D. Maria morava perto de mim, numa casa isolada com uma cerca de arame a toda a volta, arame que ninguém saltava a menos que quisesse travar amizade com a meia dúzia de cães que lá moravam também, todos de dente afiado e doidinhos por morderem alguma coisa ou alguém. À pala deles apanhei grandes molhas à espera que a D. Maria, o marido ou uma das filhas ouvissem a campainha, descobrissem as chaves, percorressem a distância até à porta e atravessassem a pradaria que ficava entre a casa propriamente dita e a cerca que punha os intrusos à distância, para lhe pagar.
Muitas das vezes, lá do alto de uma janela que abria para ver quem era, gritava-me que entrasse, que o portão estava no trinco. Entrar? Eu? Tá quieta!
A D. Maria era excelente pessoa mas fraca empregada e começou a acontecer vezes a mais da conta eu ter que limpar o que estava supostamente limpo; assim, com grande dificuldade face a tantos anos de relacionamento e aproveitando as queixas de cansaço dela, disse-lhe que prescindíamos dos seus serviços. Felizmente não houve dramas e com surpresa minha fiquei a saber que ela própria queria deixar o trabalho, mas não sabia como havia de me dizer.
Depois contratei uma senhora que era o oposto da D. Maria e recantos da casa houve que foram lavados e limpos pela primeira vez na vida. A casa andava um esplendor, as horas semanais eram pouquíssimas e pagas mais baratas que as da D. Maria. Um mistério.
Um dia cheguei mais cedo e a senhora ia a sair. Por mero acaso reparei que tinha acabado de passar uma camioneta e ofereci-me para lhe dar boleia pois a minha casa ficava afastada de tudo e qualquer pão tinha que ser comprado de carro. A senhora agradeceu disse que não era preciso pois ela ia e vinha sempre a pé. A pé? Mais uma razão para lhe dar boleia. Fui levá-la no meio de muitos agradecimentos e antes de a deixar em casa já tinha mentalmente decidido aumentá-la e pagar-lhe o passe da camioneta: demorei cerca de vinte minutos a chegar a casa dela e percebi que aquele percurso era feito a pé quatro vezes por semana, com chuva ou com sol.
Na semana seguinte deixei-lhe uma mensagem num papel, para não a constranger com conversa, dizendo que ali ficava um adiantamento em dinheiro para os bilhetes até ao fim do mês e que se fosse inteirar do valor do passe, que eu pagava. Nessa noite lá estava a mensagem e o dinheiro em cima da mesa da cozinha tal como os tinha deixado. Porque não os teria aceitado? Bom, falaria com ela no fim do mês. Assim, uma semana e meia depois cheguei mais cedo propositadamente e perguntei por que razão não aceitara a minha oferta. Qual oferta…?
Ela vira o dinheiro e a mensagem mas como não sabia ler nem lhe passou pela cabeça que fosse para ela.
Esclarecida a coisa, voltei a levá-la a casa onde a deixei feliz com um aumento inesperado e com dinheiro para andar de camioneta. Quem ficou infeliz fui eu quando, meses mais tarde, ela nos disse que se ia embora pois o marido arranjara emprego no Algarve, para onde se iam mudar. No último dia de trabalho fiz questão de estar em casa para me despedir dela. Quando cheguei toquei à campainha, ela abriu e chamou um homem que estava dentro de um carro parado à minha porta. Era o marido que vinha dar-se a conhecer e despedir-se também, agradecendo muito e manifestando pena em irem-se embora.
Depois veio uma senhora muito tímida que me disse que estava com muito azar uma vez que estivera poucas semanas nas duas últimas casa onde trabalhara: começava e o casal divorciava-se! Esteve três meses lá em casa comigo e não sei ao certo se ficou mais tempo ou não porque… sai de casa. Nunca deixei de me rir com esta coincidência e sempre imaginei que a senhora tinha começado a fazer terapia logo a seguir.
Depois de termos decidido viver juntos de novo, e depois de um interregno em casa dos meus pais, comprámos uma casa nossa e arranjámos outra empregada, a mais divertida de todas!
Ligava-me para o telemóvel de um telefone fixo e dizia:
- Já estou em sua casa, quer que passe a ferro ou que arrume a casa?
- Mas… tem a certeza que está em minha casa?
- Sim, por que pergunta?
- É que eu não tenho telefone fixo e aqui no visor aparece o número da sua casa…
A lata e as estratégias para aumentar as horas de trabalho não ficavam por aqui:
- Olhe, estou aqui no café por baixo da sua casa a beber um cafézinho antes de subir, quer que faça alguma coisa em especial?
Verificado o número de telefone era do café sim, mas de um ao lado da casa dela e não da minha.
Este namoro durou apenas mês e meio e terminou no dia que cheguei a casa e estava um monte de lixo à entrada da cozinha. Telefonei-lhe a saber se tinha havido uma qualquer urgência que a tivesse levado a sair de repente e fiquei a saber que não, apenas tinham acabado as horas combinadas e já não tivera tempo de apanhar o que varrera…
Face a esta resposta perguntei-lhe quando lhe devia e disse-lhe que o dinheiro estava disponível imediatamente. Ainda não tinha decorrido uma hora quando a filha tocou à campainha  tendo anunciado que viera buscar o dinheiro da mãe. Não lho dei e mandei o recado que apenas lho daria a ela própria e na frente de alguém. Não quis e acabou por me pedir que o entregasse à minha amiga que a tinha sugerido e em casa de quem também trabalhava, e ainda hoje trabalha, sem queixas nem reclamações, pois que queixas e reclamações se têm de alguém que até para o estrangeiro nos leva de férias?
A última, a derradeira, foi a Teresa, com quem ainda hoje tenho excelentes relações. A Teresa trabalha numa padaria, entra às quatro da manhã e sai à uma da tarde, tarde que tem livre e durante a qual tem várias casas para limpar. Trabalha que nem uma moira, sempre de sorriso na cara, mesmo com problemas, por vezes graves. 
Começou a ajudar-nos ainda eu era casada e depois ainda passou para outras duas casas onde estivemos  sendo que, na terceira, com imensa pena minha, tive que lhe dizer que não podia pagar-lhe. Ela percebeu, perdi uma empregada e ganhei uma amiga, uma simpatia de pessoa, brincalhona e sempre com uma palavra amável para dar. Visito-a bastantes vezes e vou à padaria só para a cumprimentar e receber um sorriso que sei ser generoso e amigo, puro.
Foi para a Teresa o meu primeiro pensamento quando pensei em contratar alguém para fazer uma limpeza específica lá em casa. O tecto da casa de banho e de uma parte da varanda estão a começar a bronzear-se de tal forma que, ali sim, se aplica uma frase que antigamente ouvia com frequência no fim do Verão, aplicada à minha pessoa e na sequência de bronzeados intensos: estás preta que nem um chouriço!
Pois que nem chouriços estão a começar a ficar aqueles que eram albinos e dando luta às tonturas e a um certo síndroma de Ménière ainda me empoleirei em cima de um escadote mas nada feito.
O Duarte também já pincelou os tectos com um esfregão com lixívia, tarefa onde levou negativa. 
A Teresa mora longe e perguntei à dona do café por baixo da minha casa se conhecia alguém que tivesse disponibilidade para me ajudar, já que durante tantas e tantas vezes que ali estou, a ouço dizer que vai ali toda a gente à procura de trabalho. Que ia saber, disse-me. Três semanas depois desistiu.
Indaguei junto das senhoras que fazem limpezas na empresa onde trabalho, se alguma estaria disponível,  explicando que será trabalho para uma manhã ou tarde, explicação um tanto enfiada pois tenho bom corpo para trabalhar e sinto-me um bocado anormal ao fazer o pedido. Nada. Uma tem uma neta de quem toma conta nas horas vagas, a outra mora do lado de lá do rio, a outra tem uma dor nas costas agora não pode, uma outra - que mora em Odivelas - acha que a Amadora fica muito longe. Ofereço-me para a ir buscar e levar, agradece e reforça o não, diz que não quer incomodar... 
Oh minha senhora, por quem é!, eu é que não a quero incomodar a si!
Isto é o que dá viver em alturas das chamadas vacas gordas! A bem da verdade eu é que não estou a ver bem a coisa e vou fazer como o homem que comprou um carro e passada uma semana foi devolvê-lo alegando que queria um novo pois aquele tinha os cinzeiros cheios. Não vou gastar tempo em limpezas e vou comprar uma casa nova!

Em pinturas


A meio do Verão passado fui coagida pela minha vaidade e curiosidade a usar gelinho nas unhas.
O cor-de-rosa encarniçado durou perfeito duas ou três semanas, mesmo a lavar a loiça e a fazer tudo com as mãos. O problema começou quando me fartei daquilo, tanto mais que, dado o crescimento das unhas, a cor vai avançando dando a ideia não que temos as unhas pintadas, mas que temos as pontas dos dedos cheias de sangue.
Tirar aquilo revelou-se um enorme desafio e passei as férias com manchas ou pintas, conforme o tamanho, nas unhas, que iam saindo à força de fazer pressão com as outras unhas. Aí em meados de Agosto aquela porcaria saiu toda e eu jurei que nunca mais faria semelhante coisa!
E não fiz… conscientemente…
Há dias comprei dois vernizes verdes com o propósito de fazer sessões de pintura de unhas com a minha sobrinha durante as mini férias de Natal. Quando fui pagar a senhora disse-me que quem levasse dois produtos tinha direito a um terceiro gratuito; voltei ao mostrador de vernizes e conclui que tinha as cores praticamente todas, tendo ficado indecisa. Acabei por aceitar a sugestão da senhora que me indicou um frasco com líquido transparente e cheio de minúsculas bolinhas encarnadas e azuis. Ela abriu o frasco e passou uma camada numa das suas unhas e achei aquilo encantador, com a certeza que a miúda ia adorar.
Porém, aquilo que já se sabe provou-se mais vez: a gaiata é mais esperta que eu e, inexplicavelmente, não quis usar o verniz das pintinhas coloridas. Para a convencer usei-o eu mas nem mesmo assim ela quis experimentar. Ainda lhe sugerir, oh ignorância, oh estupidez, que pintássemos as mãos como fazem no norte de África com henna, mas ela recusou.
Assim andei estes dias com as unhas pintadas às bolinhas e ontem à noite sentei-me diante da televisão com a caixa da manicura para apagar o ar festivo dos dedos, mas quem é que diz que as pintas me saem das unhas? Tal e qual como o gelinho do Verão estavam agarradas que nem lapas e nem com a lima se dignaram largar a unha.
Ok, não vão a bem, vão a mal! Usei um dos verdes escuros, três camadas bem dadas, grossas e luzidias e adeus pintas coloridas. Adeus, até nunca mais!

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Robinas dos Bosques


A minha sobrinha e eu estamos vestidas como Robin dos Bosques e João Pequeno, que todos sabemos, era bem grande: com collants a fingir que são calças.
As dela são azuis escuras, as minhas um pouco mais claras e salpicadas com cristais swarovski, puros e verdadeiros, ou seja, as minhas pernas valem uma fortuna e sobre esta riqueza ambulante já nos rimos os três, eu e os meus patinhos, até dizer chega.
A melhor proposta dos gaiatos sobre as minhas valiosas calças sherwoodianas foi vender-me bem cara, guardar o dinheiro e, a seguir, raptar-me! Pergunto-me se eles terão visto Trinitá e as vendas sucessivas do cavalo…
As calças de ganga absolutamente banais que ele tem vestidas contrasta violentamente com o nosso glamour mas, afinal, as miúdas são assim… 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O Derby


Os meus conhecimentos de futebol resumem-se a saber que uma mão cheia de gente anda a correr atrás de uma bola para tentar marcar golo. Equipas, conheço-as de nome, pois é impossível não conhecer os três grandes, e não, não me refiro, a Pessoa, Eça ou Camilo, uma vez que os noticiários abrem com notícias da bola, as manchetes dos jornais mostram as caras de jogadores e treinadores e os programas de rádio vibram com a dinâmica do esférico.
Ontem fui ver o jogo entre o Sporting e o Benfica com duas amigas, ambas conhecedoras, cada uma a torcer por seu clube e eu ali, de árbitro. O local escolhido foi uma tasca maravilhosa cujos clientes davam para fazer um filme e que será objecto de um texto em altura oportuna.
Com um jarro de vinho e uns petiscos ocupámos a melhor mesa do distinto estabelecimento e posso dizer que adorei o jogo cujo resumo aqui deixo:
A menina sportinguista continha-se para não gritar, a benfiquista estava mais calma; a malta da mesa à minha frente também se dividia por preferências e um dos ocupantes, de brinco na orelha, era bem giraço – gosto de homens com brincos porque me fazem lembrar os piratas…
Marcaram-se alguns golos, mas eu só vi um porque o meu jogo continuava na esplanada da tasca onde uma família… diferente, digamos assim, jantava enquanto o elemento mais novo fazia os trabalhos de casa, ajudada pela mãe.
Perto do intervalo entrou um sem-abrigo, aparentemente já conhecido. Ao balcão alinhavam-se curiosos do jogo e que repartiam essa curiosidade com a sportinguista que estava na minha mesa, levando-me, em conjunto com a benfiquista, a grandes gargalhadas e chamadas de atenção, que passaram despercebidas pela equipa contrária. Não se marcou golo…
Ao intervalo foi tudo fumar lá fora.
A segunda parte decorreu ainda com mais animação, e percebi quem tinha ganho pela cara de tristeza da minha amiga sportinguista: foram os de encarnado!
Com pena de uma alma que estava ao balcão, em pé, com certeza com imensas dores nas pernas, convidei-o a sentar-se diante da minha triste amiga, que ele tentou animar lendo-lhe coisas maravilhosas na palma das mãos. Golo!
Não querendo ser mal-educado acabou por ler também as nossas linhas e disse-me o que eu já sabia: que sou uma pessoa sem interesse e não há nada de relevo na minha vida. A benfiquista teve mais sorte e ele lá vislumbrou duas ou três coisas positivas para lhe dizer, mas nada que se comparasse com a sorte e saúde em barda que previa para a sportinguista, ou seja, uma grande jogada, cheia de compaixão e boa disposição.
O jogo acabou com a benfiquista a entrar em casa, o nosso companheiro de ocasião a debandar e a sportinguista e eu a apanhar um táxi.
Foi um belo jogo!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

'A nova ordem industrial no Estado Novo'


Conheci o mítico Rogério de Moura há vários anos por intermédio de amigos que eram autores na Editora que dirigia. Assistir a conversas entre Rogério de Moura e um dos meus amigos, ou com José-Augusto França, por exemplo, situação que também tive o privilégio de presenciar, era um fenómeno, uma viagem sem tempo nem espaço, projectada para o passado, reflectida no futuro, profundamente presente.
A determinada altura, a Editora onde eu própria trabalhava fez uma co-edição com os Livros Horizonte e foi na primeira pessoa que reuni com ele, que o vi trabalhar o que, com Rogério de Moura, era sinónimo de viver ou respirar.
Numa sala ampla, onde recordo a madeira como elemento muito presente, dispunham-se manuscritos de várias qualidade e feitios, bem como o temperamento do Editor que, parafraseando Coetzee, era a parte mais dura do seu corpo.
Semicerrava os olhos e exalava conhecimento, abria-os de curiosidade como um gaiato, não se limitava a ouvir, mas escutava bem para responder melhor. A este propósito, nunca os problemas de audição, de que sofria, se mostraram invasores das capacidades de apreciação do Editor.
Era impossível não respeitar Rogério de Moura, assim como era muito difícil, principalmente para alguém na minha área, não o invejar.
Há dias comprei um livro da sua editora e apanhei um baque. Quem conhecesse Rogério de Moura saberia que algo ia mal no reino da Dinamarca ao ver o livro, que nos apresenta uma outra Livros Horizonte, outra no sentido de vulgar, de denúncia da ausência do seu criador.
Tendo amigos e conhecidos ligados à CUF, sempre me interessei pela matéria nas suas mais variadas vertentes e, sempre que possível, acompanho o que se faz, o que se produz, o que se escreve. Assim, fui ao lançamento de A nova ordem industrial no Estado Novo: da fábrica ao território de Lisboa: 1933-1968 e comprei o livro.
A obra é o resultado de uma tese de doutoramento e a orientadora usou, abusou, violou, gastou à exaustão a palavra perseverança e toda a sua família, para se referir à sua orientanda, num discurso curto mas grosso de perseverações.
Ainda não o li, mas um livro é fonte de informação rica e variada mesmo sem ser lido de fio a pavio e, em duas penadas de vistoria, fico desanimada com várias coisas.
Na ficha técnica aparece uma tradutora! Assim se delineia a versão de mistério do livro: o que terá traduzido?
Não há notas de rodapé: a informação está alinhada no final do livro, de forma incómoda, com total prejuízo do leitor.
A bibliografia parece uma árvore de Natal… quer fazer-se tanto e depois sai um aglomerado de informação que, junto, perde o nexo, o norte, o sentido. A informação constante no livro pode ser preciosa para outros investigadores mas o código com que está apresentado, digno da CIA ou da Mossad, torna as referências bibliográficas, as pistas e os caminhos num labirinto difícil de percorrer.
Terá a autora querido alcandorar a sua obra à vastidão de uma enciclopédia? Se não quis, parece, e caiu no ridículo.
O capítulo das Fontes e Bibliografia tem divisões com critérios duplos imperceptíveis: de suporte e temática. Assim, por exemplo, temos uma secção de Periódicos e logo a seguir de Industrialização. Há uma secção de Indústrias, Implementação e Ideário e outra de Indústrias. Esta está ainda dividida, alfabeticamente por empresas. Ou seja, a árvore de Natal ganha consistência debaixo de tantas fitas e bolas.
Por falar em alfabeticamente… bem, se calhar é melhor saltar este aspecto…
Enfim, o carrossel do costume para os autores que querem mostrar, mostrar, mostrar, e não se centram em provar de forma clara e transparente os documentos a que recorreram e ponto final.
Com uma bibliografia tão pormenorizada, aparentemente, não faltaria nada, mas há notas a remeter para um autor e uma data, e quando, garimpando com vigor e paciência, dermos conta da referência na Bibliografia verifica-se que o dito autor tem mais que uma obra da mesma data. Em que ficamos, qual delas é?
Escrever livros não é difícil, fazer investigação também não, fazer investigação séria é um osso duro de roer e a falta de pormenor e rigor na Bibliografia é um dos aspectos que denunciam a falta de seriedade da investigação.
No final há um índice onomástico mas vários autores foram eliminados, esquecidos, obliterados, a começar pela própria autora do livro.
Depois não se encontram referências a quem é batido na CUF, verificando-se uma ausência por exemplo do biógrafo dos últimos senhores da CUF, Miguel Figueira de Faria.
Das fontes impressas da Fundação Calouste Gulbenkian só uma está identificada, as outras têm autor, um deles mal referenciado, e título, nada mais. Editoras e datas estão em branco; calhando, apareceram de geração espontânea.
As páginas das Fontes e Bibliografia são elas próprias uma fonte, um rio, um mar de disparidades, disparates que não deviam acontecer num trabalho de doutoramento.
Se cada um de nós começar a interpretar os sinais de trânsito à sua medida, se eu pintar de azul o sentido proibido que está numa das pontas da minha rua, muita confusão vai nascer, garantidamente.
As Bibliografias são mapas que devem ser precisos e fiáveis, mas há quem os codifique e este é um desses casos. Porém, a codificação de uma bibliografia pode acontecer propositadamente ou por desconhecimento, por desleixo e desleixo é a palavra certa para alguém que faz um doutoramento e desleixa tão importante parte do seu trabalho.
Não se percebe o critério da utilização de maiúsculas e minúsculas; não se percebem as vírgulas ou a falta delas – o que faz com que, entre muitos outros, Raquel Henriques da Silva apareça como RAQUEL HENRIQUES DA DIRC SILVA.
A falta de precisão leva a que títulos espanhóis estejam escritos em português (como por exemplo o de Sobrino Simal) e que se aportuguesem títulos franceses, como o de Michel Rautenberg.
Por outro lado, a páginas tantas a Bibliografia desdobra-se em Bibliografia Específica, onde têm lugar, novamente, secções como 5.2 -Indústria, implementação e ideário; 5.3 – Indústrias e 5.4 – Exposições industriais e outras; contudo a primeira secção é 5.1 – Artigos, e pergunta-se, é específica de quê?
AAVV, que remete para autores vários, já não se usa, e é recurso de ignorância ou facilitismo. A NP 405 indica que as obras com mais do que três autores devem entrar pelo primeiro, seguido da expressão [et. al] e não et. all, que parece querer inglesar a expressão original.
Nas notas usa-se o sistema Autor-data e na Bibliografia não, o que me leva de volta ao exemplo dos sinais de trânsito: quando vejo um 100 dentro de uma placa quererá dizer que não posso baixar a velocidade daquele limite?
No índice onomástico Le Corbusier entra no L mas na bibliografia entra em C…
Os Júniores entram por Júnior ignorando a regra do parentesco.
Fico-me por aqui. Guardarei a leitura do livro em si para quando se esbater a surpresa negativa que o primeiro embate me provocou. Mantenho a esperança de poder gostar da leitura, porque, como é sabido, é a última a morrer.
Deolinda Folgado - A nova ordem industrial no Estado Novo: da fábrica ao território de Lisboa: 1933-1968. Lisboa: Livros Horizonte, 2012.