segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Em V

Vulgares vícios de virgens
Volúpia virtuosa de valentes valetes
Vivem as vítimas vencidas nos versos vaidosos
Vergam-se os vassalos do Verão
Vazias vaidades vasculham o vácuo
Vacinem a velhaca violência, vedem o vento
Vapores vagarosos varrem a vista
Velozes voos vagueiam vacilantes

sábado, 29 de janeiro de 2011

Em U

Urnas urbanas usufruem o Universo ululante, ufano
Ultrapassam as ungidas úlceras
Unguentos umbilicais ultimatam uniões
Urge urrar e urinar uniformemente
Usurparam as úteis utopias
Usaram as untadas unhas
Uníssono, do último ulmeiro

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Anjo da Guarda

Desde há muitos anos que me acontece sempre o mesmo: quando termino um trabalho sinto um vazio. Sinto a satisfação do dever cumprido, o brio profissional vai de fim-de-semana com calma e tranquilidade mas, há umas reticências a seguir ao mas que não consigo preencher. Quando se repete este momento, do fim dum trabalho, duma iniciativa, no caso concreto da organização dum evento científico, e o momento é agora quando escrevo, lembro-me da primeira tarefa que me foi dada neste âmbito.
Era arquivista numa Câmara Municipal da área metropolitana de Lisboa e o director do Departamento de Administração Geral e Finanças pediu-me que executasse uma tarefa que se verificou ter múltiplas vertentes: organizar a mudança do Departamento para outro edifício. Quando alguém perguntou se não havia outra pessoa sem ser a arquivista para fazer o trabalho, ele respondeu que a missão estava a ser dada à pessoa com maior capacidade de organização e, acima de tudo, maior capacidade de gestão do stress que ele conhecia. Fiquei contente ao saber do elogio e deitei mãos à obra.
À primeira vista poder-se-ia pensar que se tratava de organizar a mudança de meia dúzia de secretárias e muitos papéis; nada disso: em primeiro lugar havia que definir os espaços no novo edifício, prepará-los com arquitectos e engenheiros e electricistas e serralheiros e vidreiros e informáticos e decoradores e operários especializados das mais diversas áreas que me ensinaram imenso e a quem estou grata até hoje. Promoveram-se encontros com os responsáveis de cada secção para perceber o que faziam, como faziam, quem atendiam, com o objectivo de funcionalizar e modernizar cada uma, com novos modelos de gestão do espaço, de atendimento dos cidadãos, com (novas) tecnologias. Meses mais tarde é que se fez a mudança para um novo edifício, onde não faltou mobiliário novo, cuja escolha também passou por mim, com concursos públicos pelo meio. A inauguração foi em Maio com pompa e circunstância: no primeiro dia acorreram aos serviços centenas de pessoas, tanto mais que estiveram fechados nas 48 horas antes, para permitir a mudança total, com alguns inconvenientes para a população.
No fim desse dia corri aqueles corredores e aquelas salas como um fantasma: não havia pressas, não havia reuniões, não havia telefonemas, não havia gente a procurar-me nem eu procurava alguém. Estava só eu e o prédio e não conseguia ir embora, alguma coisa me prendia ali, talvez o próprio tempo que lá tinha passado a ver as entranhas das paredes, a passar fibra óptica, a arrumar móveis. A lembrança daqueles momentos é tão nítida que chega a ser assustadora.
A missão estava cumprida e eu perguntava-me inconscientemente, E agora? Onde vou ocupar as 30 horas do meu dia? O que faço para gerir esta tempestade de dinâmica que transporto? A presidência da Câmara nomeou-me responsável do Gabinete de Organização e Informática na esperança que eu introduzisse novos métodos de trabalho, que mudasse procedimentos, que uniformizasse processos documentais. Odiei. Foi o trabalho que menos gostei de fazer, de sempre. Porquê? Talvez por não ter uma data limite, por o desafio não ser efectivamente um desafio, por serem tarefas que corriam ao ritmo do trabalho dos serviços, languidamente…
Felizmente, pouco tempo depois decidiram investir na construção de raiz de uma grande Biblioteca Pública, inaugurada num Novembro soalheiro, e deram-me a tarefa de coordenar os trabalhos: AMEI!
Mais uma vez, depois duma inauguração pública com políticos e milhares (literalmente!) de cidadãos, naquela noite, noite bem avançada, percorri cada sala, cada canto e cada recanto, toquei em cada estante, em cada secretária, em cada sofá, nos computadores, nas antenas dos alarmes, nas maçanetas das portas, como se quisesse deixar a minha impressão digital naquele mundo que iria rapidamente ser abarcado pela realidade dos utilizadores e passar a ser nosso e não apenas meu.
Por esta altura já me tinham dado a organizar eventos como Feiras do Livro, encontros com professores, reuniões culturais, entre outros, e quando saí da Câmara, dois meses depois de ter inaugurado a Biblioteca e ter vindo assumir responsabilidades noutra Biblioteca (não pública), não tardou que me pedissem para organizar um evento, uma exposição. Depois disso vieram os encontros científicos internacionais, como o de hoje, que acabou há uma hora e me deixou exausta. Exausta mas feliz, pela forma como tudo correu. Satisfaço-me imenso interiormente ao passar a vista pelos questionários que pedimos aos participantes para preencher e verificar que consideraram a organização impecável, excelente e que, em termos científicos, as expectativas foram completamente superadas.
Num relance revejo o primeiro encontro com os promotores científicos da coisa, os primeiros e-mails a convidar conferencistas, as respostas, os pedidos de textos e toda a comunicação sequente, que vai num crescendo de trabalho até ao actual momento e por onde passam tarefas como gravação de CD’s com as comunicações, revisões de texto e aprovação das ementas para almoços e jantares, passando pela publicidade, criação de cartazes, publicação de anúncios em jornais, inscrições de participantes e mil pequenas grandes coisas pois, cada minúsculo pormenor pode transformar-se num grande problema se não for devidamente acautelado.
Sentada em frente à secretária a digerir o sucesso do evento já sinto o vazio característico da ocasião: cada conferencista, cada participante, transformou-se em parte de mim, como sempre, mas acaba por vir o afastamento. E agora? O que faço para ocupar as 30 horas do meu dia?
Felizmente, já há outro grande evento na calha e segunda-feira começam os novos trabalhos! Não trabalho sozinha, nunca o fiz e serei incapaz de o fazer, e quero aqui deixar um agradecimento a quem participou neste projecto e especialmente a quem funciona como minha sombra, lembrando-me de certas coisas, antecipando o que vou pedir para fazer, fazendo antes de eu o pedir, mostrando uma atenção a tudo o que sabe que para mim é essencial: Tudo! Mesmo quando eu fico intratável em momentos de stress há uma estrela que me dá sempre luz, nunca me abandona. Obrigada. No fundo, no fundo, não tenho luz própria, é ela que me faz brilhar.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Em T

Trevas transbordam no triste trajecto
Transportam tesouros e testamentos
Timbra o toque do tilintar tão temporário
Ténue terra, tentas ter o tempo
Tela tingida, tapete transcendente
Tríades testemunham os teatros temperamentais
Talham tangentes tardes em tendas
Tapetes torturados transformam-se
Torres torpedeiam tiros de tambores
Tementes tendem a tombar

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Adeus Tristeza

Na minha vida tive palmas e fracassos
Fui amargura feita notas e compassos
Aconteceu-me estar no palco atrás do pano
Tive a promessa de um contrato por um ano
A entrevista que era boa
E o meu futuro foi aquilo que se viu

Na minha vida tive beijos e empurrões
Esqueci a fome num banquete de ilusões
Não entendi a maior parte dos amores
Só percebi que alguns deixaram muitas dores
Fiz as cantigas que afinal ninguém ouviu
E o meu futuro foi aquilo que se viu

Adeus tristeza, até depois
Chamo-te triste por sentir que entre os dois
Não há mais nada pra fazer ou conversar
Chegou a hora de acabar

Na minha vida fiz viagens de ida e volta
Cantei de tudo por ser um cantor à solta
Devagarinho num couplé pra começar
Com muita força no refrão que é popular
Mas outra vez a triste sorte não sorriu
E o meu futuro foi aquilo que se viu

Na minha vida fui sempre um outro qualquer
Era tão fácil, bastava apenas escolher
Escolher-me a mim, pensei que isso era vaidade
Mas já passou, não sou melhor mas sou verdade
Não ando cá para sofrer mas para viver
E o meu futuro há-de ser o que eu quiser! (*)

Fernando Tordo
* A exclamação é minha!

Ai os verbos

- Bom dia. Queria um café, por favor.
- E o que o fez mudar de ideias?
- Como?
- O que o fez mudar de ideias?
- Mudar? Como assim? Não pedi mais nada, só o café…
-Mas disse ‘queria’ um café o que me levou a pensar que já não quer.
- Quero, quero, foi uma maneira de falar, eu quero um café!

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Em S

Silêncio, setentrional Sul
Soberbo, suga o sangue sedentário
Sementes sadias salivam sabores
Serpentes sofrem as surpresas do ser
Sosseguem sonos e sonhos soberanos
Sacerdotes soturnos soletram saradas sílabas
Sátiras sazonais salvam sinais
Saga saltitante, satélite sereno
Saudável selo, sextante salgado
Santos sacrifícios solares

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Eleições sem votos

O Presidente da Junta de Freguesia da residência dos meus pais confunde o meu pai com alguém e cada vez que se encontram fala-lhe como se ele fosse um Governador Civil ou exercesse qualquer cargo do género. O meu pai acha graça a tanto salamaleque e como o outro o cumprimenta sem mencionar qualquer nome, ele vai deixando a coisa arrastar-se.
Pouco antes do Natal encontraram-se numa peça de teatro onde os meus pais chegaram em cima da hora. O presidente da Junta assim que o viu, levantou-se e rearranjou a plateia de modo a que os meus pais ficassem em lugar de eleição. Como são ambos já de idade ninguém reclama, antes pelo contrário, todos sorriem e os ajudam.
Ontem na mesa de voto informaram os meus pais que não podiam votar pois os números não constavam das listas e disseram-lhes que ligassem para o Ministério da Administração Interna a fim de saberem onde deviam votar ou então que procurassem na internet. O vetusto ar do meu pai informou que não iria telefonar para sítio algum, que não sabia procurar na internet, que estava frio a mais da conta para dois velhotes andarem a fazer pingue-pongue entre o quentinho da sua casa e a mesa de voto, que estava ali para votar e que alguém, fizessem o favor, resolvesse a questão.
Ora, quem é que por ali andava? O Presidente da Junta! Assim que o viu disponibilizou-se logo para ser ele a ligar para o MAI, o que fez e em 10 minutos tratou do assunto, por entre desculpas, pedindo-lhes que fossem a outro lugar, que a partir de agora seria lá que votavam. Lá se deslocaram a uma escola secundária que, por feliz coincidência, fica mais perto da casa deles e finalmente exerceram o seu direito de voto.
À noite quando visitei os meus pais vimos na televisão a notícia que os problemas com os números de eleitor tinham abrangido o país em geral; a notícia era dada em rodapé e secundada por uma outra onde se falava em eleições na Tunísia, tendo o meu pai aproveitado para meter uma piada:
- Olha, olha! Na Tunísia também não puderam votar!
Ao que a minha mãe respondeu de imediato:
- Claro que não! Então não ouviste dizer que o problema era por todo o lado?

Há um Benjamim Button em cada doente com Alzheimer

Os doentes com Alzheimer transportam uma carga delicada, uma corcunda invisível ao primeiro olhar, como um bombista que carrega na mochila a bomba que irá armar. São um perigo ambulante, desconhecido, um veículo humano desgovernado, inimputável, e acima de tudo inútil.
A consciência da doença provoca uma dor sobrenatural onde se reza por todas as dores de dentes e de ouvidos, por cólicas pavorosas, por enxaquecas tão fortes que provoquem desmaios. Tudo é preferível a conversar com Caronte, enquanto navegamos na sua barca, ouvindo já ao fundo os latidos de Cérbero e sabendo que Hades nos reserva um lugar, o melhor com vista privilegiada para o que já fomos e não reconhecemos.
O desespero faz-nos acreditar que vai aparecer um Hércules que desvia toda esta gente da nossa frente, que os pontapeia ferozmente, dando voz à nossa raiva, à nossa fúria contra uma vida que decidiu, assim, sem mais nem menos, fugir de nós.
Estas pessoas são relegadas para a despensa social, ao lado de pacotes de massa e de arroz fora da validade mas que, por questões éticas e morais, não se podem deitar fora, ficam ali a ocupar espaço. A fazer gastar dinheiro. A fazer perder tempo. A criar problemas legais. A esgotar a paciência alheia.
Um livro lido há muitos anos, do qual depois fizeram um filme, que em português se chamava À Beira do Fim e foi editado numa colecção de ficção científica da Caminho, com o título original Soylent Green, colocava a acção num futuro, na altura longínquo, hoje às nossas portas, o ano 2022. Face a um planeta sobrelotado e à escassez de comida pagava-se a quem quisesse morrer e, se bem me lembro, havia duas espécies de pagamento: comida para a família e imagens do passado para o candidato a morto. Assim, num mundo metálico, negro, sujo e frio permitia-se que a última recordação que se levava da vida fossem montanhas com neve sob um céu azul, rios de águas cristalinas que corriam cantando as canções que a natureza decorara ao longo de milénios, apoiados por um coro de pássaros. Apesar de tudo, morria-se feliz, por se poder usufruir pela última vez aquilo que algum forreta conseguia guardar: memórias.
Os que transportam a carroça do Alzheimer, que fazem esforço suadouro sem saberem como nem porquê, quando ainda estão em estado consciente também pagariam para reaver as suas memórias e, não tenho dúvidas, muitos pagariam assinando um cheque com a própria vida.

O mês que não se diz

Reza a lenda que os naturais de Santo Aleixo da Restauração têm um mês de atraso. O meu pai, natural desta aldeia no Baixo Alentejo, não acha graça ao dito e apressa-se em explicar a razão: Abril sempre foi um mês instável, ora de muita chuva ora de Verão antecipado que dava cabo das colheitas e da esperança das pessoas. Assim, na sequência de vários infelizes meses de Abril, os populares começaram a evitar dizer o nome do mês que lhes estragava a vida, como hoje os alunos de Hogwarts não dizem o nome d’Aquele-Cujo-Nome-Não-Deve-Ser-Pronunciado. Assim, enumeravam-se os meses da seguinte forma: Janeiro, Fevereiro, Março, o mês que não se diz, Maio, e por aí fora. Ora o 25 de Abril calhou a calhar em Abril o que trouxe um inconveniente ao pessoal de Santo Aleixo que não teve outro remédio se não chamar os bois pelos nomes!
Hoje ouço na rádio a notícia que um qualquer investigador determinou que o dia 24 de Janeiro é o dia mais deprimente do ano!
A primeira reacção é perguntar-me quem é ele para determinar assim estas coisas? Depois concluo que, para mim, até tem razão, e mais, Janeiro, é todo ele um mês para esquecer: notícias tristes e mortes estúpidas na família parecem esperar atrás da porta da vida para se fazerem anunciar no primeiro mês do ano.
Qualquer um podia passar por cima deste dia, que é só um, escrever a data o menor número de vezes possível, ignorar o dia, se possível passá-lo a dormir, mas eu faço anos hoje e às 11 da manhã já atendi vários telefonemas a lembrarem-me o dia que deve ser comemorado! Saberão eles que é o dia mais deprimente do ano?
Para mim nunca o foi apesar das tristezas inerentes a acontecimentos dramáticos que marcaram o dia, como o funeral do Tó ou a morte do Chico, mas a partir de agora será e só não sei durante quanto tempo me lembrarei que é deprimente ou até que faço anos.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Em R

Redes repletas de romances
Ratoeiras recheadas de repulsa
Ruidosas rotinas reincidem regularmente
Responde a revolta responsável
Rezam risos reais
Rosas em ravinas, raízes de rastilhos
Raptos raspam rações
Radiantes e raros rebanhos
Rimam rábulas e reacções

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Em Q

Quadras qualificadas queixam-se
Quarentena de questões quebradas
Quadriga de quistos queimados
Quadrado questionável de quimeras
Quadrante de Quixote
Quilhas em quietude quantificam a química
Que quintas quadrilhas querelam

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Cultura (de ficção?) científica

O bioquímico António Piedade lançou um desafio aos leitores sobre a divulgação da cultura científica pedindo para responderem a questões como “…qual a opinião do leitor sobre o estado da cultura científica em Portugal? O que acha da divulgação de ciência que por cá se faz? Quem é que faz divulgação de ciência em Portugal? Qual a sua utilidade, quem beneficia com ela? Qual a sua relação com a divulgação de ciência que se faz noutros países?”
Agradeço-lhe a amabilidade de ter publicado a minha opinião hoje no De Rerum Natura. Fica também aqui.

É-me difícil acreditar na existência de cultura científica no país que detém os recordes de maior número de telemóveis por habitante, com trocas sistemáticas perseguindo upgrades, sempre na senda da propriedade da última moda, e que apenas os usa para as mais básicas tarefas. O mesmo país tem défices de leitura acentuados e os licenciados sabem ler e escrever deficientemente e, mais ainda, uns não têm esta consciência e outros não querem saber.
A divulgação da cultura científica de forma sistemática e coerente é feita pontualmente por algumas instituições onde se incluem alguns museus e parentes, como o pavilhão do conhecimento, e universidades que proporcionam encontros abertos ao exterior; os Centros de Ciência Viva, quando abrem, são uma boa surpresa mas depois pecam por não introduzirem novidades, por não criarem uma rotina mecânica de novidade, de mudança e acabam por ser sempre iguais. Há programas televisivos como o Falar Global ou um que dava na rtp2 com o Vasco Trigo, cujo nome não me recordo que 'falam' para as 'pessoas comuns' com linguagem acessível e, de alguma maneira, procuram, ou mostram, uma transversalidade em conteúdos e em públicos alvo. E depois há a internet em geral para curiosos e certos blogues para interessados. Não há literatura de divulgação científica para o cidadão comum, até porque o cidadão comum está mais interessado na divulgação desportiva...
A Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica não vai ao encontro dos cidadãos: quem precisa dela, por vários motivos, procura-a, ou seja, não há um efectivo relacionamento biunívoco.
A utilidade da divulgação científica nem se discute, está relacionada com o grau de comprometimento dos cidadãos com a ciência e as suas aplicações cujo beneficiário é o próprio cidadão. Discute-se (ou seria melhor dizer, fala-se?) muito hoje sobre tecnologia porque esta domina as nossas vidas: os jovens pais colocam um aparelhómetro ao lado do seu filho recém-nascido para o poderem ouvir à distância. É o primeiro gadget do novo homem. A seguir, a rua, e as actividades dela característica, foi substituída por playstations e os pequenos MacGyver's estão em vias de extinção. Todos queremos usufruir das maravilhas da nova era e se decorarmos palavrões como nanotecnologia é porque temos uma doença qualquer e lemos algures - na revista Super Interessante, por exemplo! - que a medicina se socorrerá dela para nos pôr chips a fazer maratonas no sangue que nos vão curar. É o milagre da técnica e da tecnologia ao alcance de todos, e será melhor alcançado ainda se usarmos ecobolas!
No norte e no leste da Europa há uma maior aproximação da ciência aos cidadãos que começa na escola, com programas com um equilíbrio e um modus faciendi diferente do nosso: a matéria dada em português nos anos que antecedem a (suposta) entrada na universidade é de loucos e com probabilidades de utilização iguais ou inferiores a zero (!). Ora se a própria língua é tratada assim, de tal forma que leva os alunos, hoje jovens, amanhã cidadãos adultos, a odiar regras gramaticais e conjunções verbais, como hão-de ter o mínimo gosto por equações? Se a própria língua, aquela que usam para se exprimir no dia-a-dia lhes surge com tanta prega e tanto alinhavo, como se aproximarão duma química ou das abstracções da física? Isto para não falar da preguiça natural... mas não entrarei por aí e conto com o seu perdão para a forma simplista como coloquei as coisas.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Em P

Pertinentes pedras povoam o pensar
Penitencio-me pacientemente da penhora
Peregrina prostituta
Presa no potente pulsar da prótese
Ponte, poleiro, puzzle da psique
Penduro o padrão de pau, pacto pacífico
Paleta pálida, pauta de palha
Pavoneia-se pavorosamente na paz.

Criança foge para a Lua

A propósito dum texto de hoje do De Rerum Natura, Uma aventura humana e na senda do meu texto de ontem sobre a primeira recordação que temos, lembrei-me do dia em que o homem foi à Lua (temos sempre esta conquista como se só tivesse sido feita uma vez, as seguintes já não tiveram o mesmo impacto e há muito boa gente que as desconhece).
Lá em casa não havia televisão mas os meus 3 anos sabiam que havia uma num café próximo onde o meu pai era cliente ocasional, de fim-de-semana.
Via a Lua com a frequência que ela se deixava ver e achava-a bela, belíssima. Ouvia dizer que o homem (qual homem? Seria um vizinho, um amigo ou colega do meu pai?) ia lá e que ia dar na televisão. Bom, então, o que havia de fazer sem ser pôr os pés ao caminho e ir sentar-me diante do aparelho do café? Até aí nada de especial, à excepção do pormenor: não avisei alguém, limitei-me a sair de casa.
Como garota sossegada que era a minha mãe não deu logo conta da minha ausência e quando se apercebeu que eu não estava correu a vizinhança de sobrolho carregado pronta para me descompor por ter ido brincar – talvez com o Tó Zé – sem lhe dizer nada. Mas as vizinhas e a sua filharada não sabiam de mim e não me tinham visto. Resultado, instalou-se a confusão em frente da Praceta da Palmeira! Chamaram-se homens, alguém telefonou, não sei de onde, para o meu pai que estava em Lisboa no trabalho, vieram os bombeiros, os vizinhos em total alvoroço em busca da menina, tão sossegadinha, que tinha desaparecido. Foram aos cafés mais próximos, à mercearia, à padaria e assim ia aumentando o rol dos que procuravam a menina.
Entretanto, puxemos a imagem para outro cenário, a menina estava sentada atenta a todos os pormenores duma imagem a preto e branco, tremida, com gente a falar e a dizer coisas que não percebia. Contam que o dono do café teria depois afirmado que me perguntara pelos meus pais e que eu respondera que já vinham, que me tinham dito que esperasse ali; era tramada, a miúda!
Com o perímetro de buscas a envolver Cacém e meio e a alargar-se, alguém lá chegou ao distinto estabelecimento onde eu estava a comer com os olhos o homem na Lua e deram a notícia do descobrimento, não da América, mas da Leninha.
Os meus pais choravam, abraçavam-me e diziam com ar furioso que estava proibida de voltar a fazer o mesmo. Parece que ainda argumentei em minha defesa que, afinal, tinha dito à minha mãe, vou ver o homem na Lua, mas ela deve ter achado que ia apenas mudar de posição pois, apesar de ser muito sossegada, nunca vivi efectivamente na Terra e uma parte de mim, ainda hoje, tem residência num qualquer satélite.
E é com base neste episódio que a minha família diz na brincadeira que eu fugi de casa aos 3 anos de idade. Não tenho dúvidas que foi por uma boa razão e, posso esquecer certos aniversários, mas lembro-me sempre de comemorar neste dia.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Recordações vindas de longe

Até onde somos capazes de viajar na nossa memória? Qual a primeira recordação que temos? Este é um exercício que faço com o meu filho e com o meu sobrinho e que dá pano para largas mangas, onde se escondem estórias de antigamente que lhes fazem brilhar os olhos.
A minha recordação mais antiga é dum vizinho que morava na casa por baixo da nossa, no primeiro andar, o Tó Zé. Por onde andarás rapaz?
A última vez que o vi foi num jantar para o qual fomos convidados alguns anos depois de termos saído do Cacém. Lembro-me que fui advertida por não estar a usar a colher da sopa em condições e ter pensado quando cheguei a casa, coitado do Tó Zé, que tinha que comer a sopa com regras e para mim bastava ser à colherada.
Lembro-me de chorar por causa do Tó Zé o que prova que desde cedo os homens me fazem chorar; além disso, ele foi o causador da cicatriz que tenho na testa, como se fosse antepassada do Harry Potter.
O choro deveu-se a um par de botas – vejo agora que a minha tara por botas vem de longe! – que eram dele e eu queria, à força. O sacana não mas deu e ainda hoje não recuperei…
A cicatriz não foi propositada, a menos que sejamos daqueles que vêm cabalas a torto e a direito: estávamos a brincar na rua, é verdade, antigamente brincava-se na rua, e vimos uma matilha de cães na entrada do nosso prédio. O que é que se faziam aos cães? Atiravam-se-lhes pedras! Ora, ou ele me confundiu com uma cadela ou precisava definitivamente de óculos, mas o certo é que uma pedra da calçada, afiada nas pontas paralelípepedas veio acertar no meio da minha testa. Lavada em lágrimas e em sangue fui operada na mesa da cozinha por um tio enfermeiro que estava de visita e me fez uns pespontos alinhavados cujo rasto ainda hoje cá mora. Quando vejo a cicatriz lembro-me do Tó Zé, ou seja, lembro-me constantemente duma pessoa que não vejo há anos.
De vez em quando vêm-me à memória cenas da infância há muito arrecadadas e quietas; há qualquer coisa que as faz mexer, que as tira do sítio e que as coloca na janela das recordações, o quê, não sei e por ora não quero saber. Sabem-me bem e chega.

Vida de cigana

Faz hoje anos que comprei a minha primeira casa. Memorizei a data porque faz hoje anos o pai do meu filho, só por isso, caso contrário, seria uma data que nada me diria.

Ao que parece fui a primeira neta da família a nascer num hospital, e o mais perto calhou a ser o de Moura, onde a Irmã Florinda me puxou das entranhas da minha mãe, enquanto outra Irmã cujo nome desconheço puxava um cigano das entranhas da mãe dele num quarto ao lado, cuja família também morava no Sobral da Adiça e, provavelmente, seria o primeiro da sua família a nascer num hospital, como eu, não sei, apenas sei que como nascemos no mesmo dia, durante anos, sempre que nos encontrávamos tínhamos que nos cumprimentar com beijinhos. Ora eu não sou muito de beijoroquices, nem a ciganos nem a ninguém, e assim que o vislumbrava ao fundo da rua, atalhava por outro caminho só para não ter cumprir o ritual dos beijos ao rapaz que, se não me engano, gostava daquilo tanto como eu, mas naquela altura uma ordem maternal era uma ordem para se cumprir e lá tinha que ser, da parte dele e da minha.
Quando vim do hospital fui para uma casa que seria minha décadas mais tarde e que já vendi. E aí vai uma. Passado pouco tempo mudei-me para a casa grande dos meus avós, na Rua Longa, (e aí vão duas) e aos dois anos e meio os meus pais imigraram para Lisboa.
Dizer que vinham para Lisboa era apropriado para informar quem ficava na aldeia e dava-se a informação tomando o todo pela parte pois, na verdade, fomos morar para o Cacém, essa grande metrópole, com a Praceta da Palmeira (que ainda existe) em frente à janela da sala. E aí vão três. A casa era duns tios que estavam em África e quando regressaram não tivemos outro remédio senão mudar, tendo sido eleito um prédio duas ruas acima, mais novo mas mais longe da estação.
É nesta casa que guardo as melhores lembranças do meu Tio João que estava internado no Júlio de Matos e vinha de vez em quando passar uns dias a casa connosco. É também desta casa que guardo lembrança da Milu, a cadela pastor alemão arraçada de leão da Rodésia, um monstro assustador que o meu tio recém-chegado de Angola tinha trazido e que um dia, a propósito duma deslocação não me lembro onde, deixou à guarda da minha mãe com a recomendação que ela a passeasse. Nunca cheguei a concluir quem passeou quem, pois a minha mãe chegou a casa sozinha, em pranto, esfolada da cabeça aos pés, a sangrar dos joelhos, das mãos e dos braços, vítima da atitude impulsiva da Milu, que vira um amigo qualquer, correra para ele e arrastara a minha pobre mãe pela calçada mal feita daquele subúrbio, sem que conseguisse largar a trela! A safada da Milu apareceu horas mais tarde à porta do legítimo dono e lá ficou à espera dele assustando os moradores do prédio, enquanto a minha mãe dava largas à lástima e a raiva, duas ruas acima. E aí vão quatro.
Por esta altura o meu pai teve conhecimento dumas casas fantásticas a duas estações de comboio de distância numa localidade chamada Mercês. Lembro-me de discutirem por a minha mãe achar a casa uma fortuna: 252 contos, em moeda antiga, hoje pouco mais do que 1250 euros. Lá embarcaram na aventura de comprar a casa e foi o poiso onde estive mais tempo, quase 16 anos, rente à linha do comboio, no número 12 da Rua A. E aí vão cinco.
Mais uma volta, mais uma viagem no carrossel da vida familiar e os meus pais decidiram ir morar para a Amadora. Porém, - ai, belos tempos – venderam a casa tão depressa que não deram tempo aos acabamentos da casa da Amadora e por isso, temporariamente tivemos que ficar numa casa alugada no pior local onde já morei, a Quinta da Barroca, nos fundos do Cacém (outra vez!) onde, para se chegar a casa, tínhamos que passar diante duma escola e toda a rua estava pejada de bandas de alcatrão com uma altura que competia com a Serra da Estrela o que nos fazia demorar horas a ir e voltar a qualquer local pois era impensável passar ali sem ser à velocidade do caracol. E ai vão seis.
Finalmente mudámos para a Amadora, mesmo ao lado do liceu, hoje Escola Secundária da Amadora, onde eu nunca andei. Desta casa guardo lembranças de muito trabalho: trabalhava muito e estudava nas horas vagas, de tal forma que o meu namorado ia fazer-me a visita e ficava a conversar com a minha mãe porque eu adormecia no sofá e só acordava quando me mandavam dormir e eu ficava muito admirada por ele já lá não estar! E ai vão sete.
Mais voltas da vida levaram-nos recambiados para a Serra das Minas, perto das Mercês novamente. Desta casa saí para me casar. E ai vão oito.
Casada fui morar na Casa Azul, propriedade dos meus sogros e onde estive quase 10 anos e saí com o meu filho numa mão e um saco com meia dúzia de coisas na outra e fui viver com os meus pais. Ai vão nove.
O meu marido ponderou sobre os motivos que me levaram a sair de casa, concordou comigo e, por incrível que pareça, foi também viver na casa dos meus pais! Ai vão dez.
Passado pouco tempo, a 18 de Janeiro, comprei a minha primeira casa, minha, minha. Adorava-a e o meu filho também. Tinha uma configuração pouco habitual, era espaçosa e estava desarrumada, sinal que tem vida e cheia de móveis mandados fazer à medida para arrumar os meus livros, já na altura em quantidade considerável. Infelizmente demos conta que os feitios não se adequavam de todo, divorciámo-nos, o meu filho voltou a dar-me a mão e saímos de casa. Ai vão onze.
Fomos para casa dos meus pais que na altura viviam fora de Lisboa e ficámos cerca dum ano. Ai vão doze. Comprei a minha segunda casa, minha, minha, em Rio de Mouro, perto da escola que ele frequentava na altura e ali ficámos até ele terminar o nono ano. Ai vão treze.
Hoje moramos na Amadora, curiosamente no mesmo prédio onde morei há anos atrás, ao lado do liceu, onde o meu filho estuda. Ai vão catorze.
Para além da experiência em mudanças, em carregar frigoríficos, máquinas de lavar e encaixotar livros, esta vida de ciganos, que devo ter herdado por osmose com o ciganito no dia em que nasci, não acaba aqui com certeza porque não sou apegada a casas, ainda menos a cortinados ou decorações. A minha casa é o local onde eu estou e, principalmente, o local onde estão as pessoas que eu amo e se vivesse num quarto de hotel seria fantástico, desde que houvesse uma biblioteca ao virar da esquina.
O meu querido ex-marido faz anos hoje e desejo-lhe um dia feliz. Já conta 48 anos, contará mais discernimento? Espero bem que sim, a bem da nação familiar que quer se queira quer não, existe até que a morte nos separe.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Aquele senhor alemão, o Alzheimer

Todas as doenças são más, mas há umas piores que outras e as mais cruéis são as que nos matam em vida, são as que apontam para um morto vivo que se vislumbra a pouca distância e nos dizem, aquele és tu. Quando assim falam, sorriem, um sorriso de escárnio, atroz e pavoroso que não nos deixa dormir, que nos acorda em banhos de transpiração a meio da noite, que nos conduz por pesadelos infinitos, que nos faz ter vontade de fugir, mas nunca se tem para onde. Transporta-se, mais que um corpo doente, uma mente em vias de extinção, uma memória que vai pingando para dentro do esquecimento, como se fosse água que se escoa dentro dum ralo, uma cavidade mal tapada, um conhecimento de nós próprios que se vai esfarelando, uma inexistência dos outros que se vai consolidando.
E não há diques nem barragens que nos protejam, não há alpendres nem telhados suficientemente fortes para bater este betão armado que sobre nós se abate. Cada dia é um passo na direcção do tornado que se torna mais denso, mais palpável, mais visível, horrorosamente mais palpável e mais visível para, dentro em breve se perder a noção dele, a visibilidade do que agora temos como certo e amanhã, quando nos apreender deixarmos de o sentir. Que ironia deste destino mais marcado que a canção dum fado.
Entretanto, o que fazer? Dar festas e comemorar a amizade? Dizer aos amigos que nos aproveitem enquanto é tempo? Viajar enquanto podemos guardar memórias? Contar todos os nossos segredos a alguém, para que não se percam? Viver com a pena alheia e com a palavra coitadinha a ecoar das bocas de cada um? Guardar o dinheiro para… não sabemos o quê?
Daquilo que me é dado ver, não há equilíbrio nesta barca do inferno, não há razão, nem decisões bem ou mal tomadas, não há verdades que se busquem nem vidas futuras que se conquistem. Há o aqui e o agora, o sorrir hoje, enquanto sabemos porque sorrimos. Há uma urgência de vida, uma pressa que me lembra um filme antigo onde uma personagem cujo nome fixei, não sei porquê, Dorothy Malone, pergunta a um condenado como pode ele querer que ela lhe dê a vida inteira numa noite. É isso que se quer quando ainda se tem consciência, quando ainda se está no princípio do corredor da morte.
Este corredor é mais negro e sujo que o que percorrem os condenados à morte física, cujo fim sabem próximo e será seguido de romaria ao cemitério a mudar as flores por parte dos outros; eles foram retirados de cena, quando muito sobreviverá a sua lembrança; mas este corredor tem fantasmas de carne e osso que não sabem de onde vieram nem para onde vão, precisam da ajuda de alguém, de muitos alguéns, que façam muito mais do que mudar a água das flores: alguém que os vista e os alimente, que os lave e os limpe, alguém que lhes faça a manutenção.
Há doenças que transformam as pessoas em máquinas sem razão de existir, como se fossem um carro antigo que para mais nada serve a não ser para alguém ocupar o tempo; mas porque são pessoas há quem se obrigue a regá-las diariamente, sabendo que dali não nascerá nada, nem flores, nem folhas, nem frutos, é madeira seca e estéril, que se torna mais e mais oca a cada dia.
Há dias mais fáceis e dias mais difíceis, há dias em que apetece falar com toda a gente e outros em que não apetece sair da cama e encarar o mundo que nos vai continuar a ver sem que possamos devolver esse olhar.
Repiso a palavra urgência: por vezes tudo é urgente, até se respira mais depressa, para se poder anunciar que ainda se respira, que temos consciência disso mesmo, dessa coisa tão simples e básica à qual nunca prestámos atenção a não ser num mergulho quando já não aguentamos mais debaixo de água e voltamos à superfície, saciados de saudade do Verão, da água do mar, do cheiro a maresia, da areia suculenta, da espuma sedosa. Breve, breve deixaremos de o fazer e, pior, deixaremos de nos lembrar como é bom, como é saudável, como vivemos meses de inverno na expectativa que o Verão nos traga novos mergulhos em águas azuis ou verdes. Recordar é viver, não tenho dúvida, e é isso que certas doenças nos tiram, deixando-nos apenas o momento de inspirar e expirar e nem disso temos consciência.

Em O

Oculto a ordem oficial
Obedeço ao óbvio olhar
Oceanos de ondas olímpicas
Oscilam obrigados no ofuscar do Outono
O ouro oferece o ódio e ocupa, oco, a opinião
O odor do orvalho é operado
Obsoletos orgãos orientam os orgasmos
Orquestras ornamentadas obsequiam os oráculos
O óxido optou pelo óleo
Oxalá o ópio do orgulho se opalize

sábado, 15 de janeiro de 2011

Em N

Naturalmente, a natureza navega
Nomeia o norte
Nutre nocturnas novelas em nós
Nobre negócio de noivado
Nega e neutraliza o negligenciar
Naco de nirvana, ninharia de névoa
Nuvem de nicotina, neurótico nascer
Néctar necessitado, namoro nervoso
Nadar nisto, não é novidade

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A ciência da meia-de-leite

Na casa comprida da Rua Longa do Sobral da Adiça, assim que o meu avô se levantava punha logo o café ao lume. Por lume não se entenda um fogão, mas sim aquilo a que a maioria das pessoas chama lareira e que sempre ouvi designar, simplesmente, lume: madeiros e galhos acesos por baixo duma chaminé que também tinha um nome engraçado, chupão, por ter a importante tarefa de chupar o fumo.
Desde muito pequena que bebo café, feito naquela peça que só muito mais tarde percebi que não se chamava escolatêra e sim cafeteira, preta do lume, sem restos do azul original com pintas brancas. O café era espumoso, compacto, de sabor forte e protagonizava pequenos-almoços e lanches inesquecíveis com bolos do cozido que eram partidos aos bocadinhos, metidos lá para dentro e comidos à colherada, havendo sempre o cuidado de não deitar o café todo até ao fim para não despejarmos as borras na caneca, sim, na caneca, que lá não se usavam chávenas e talvez daí este hábito que temos de beber, mesmo água, preferencialmente, por uma caneca e não por copos.
Não sendo nada esquisita com o que como ou bebo, há coisas com as quais compenso as esquisitices e sou muito exigente, e o café é uma delas. Há sítios manhosos onde vou de propósito porque adoro o café, há outros onde consumo outras coisas mas não café.
Rio-me da quantidade de variações que o pedido dum simples café pode ter, desde a bica lisboeta, ao café curto, longo ou cheio, pingado, com cheirinho, em chávena fria, em chávena escaldada, duplo, sem princípio, fraco ou carioca, italiana, curto e devo estar a esquecer-me de algum. Escusado será dizer que os descafeinados têm as mesmas versões. Para mim é café, ponto.
Ora toda esta conversa serve para introduzir uma coisa onde o café é essencial e que se chama meia-de-leite e para que conste uma chávena de café com leite não é uma meia-de-leite! Longe disso, muito longe!
Escolho os locais para tomar o pequeno-almoço em função da maestria em fazer meias-de-leite: o pão pode ser duro, a manteiga rançosa, os empregados mal encarados, o chão estar seboso, desde que saibam fazer meia-de-leite, têm-me como cliente.
A meia-de-leite deve ter espuma como o café, suave, com não mais de dois ou três milímetros de espessura e não se apresentar como se fosse um capuccino, com espuma a fazer cagulo, como se diz no Alentejo, ou seja, com ar de miniatura de Monte Branco. Mais ainda, a espuma não deve ser branca, do leite e sim castanha, do café; deve ser sedosa e uniforme e não ratada e esburacada como um véu.
O pior de tudo é quando me dão uma meia-de-leite fria e decidem resolver o assunto colocando o manípulo do vapor dentro da chávena para aquecerem o líquido! Aí estraga-se em definitivo a essência da meia-de-leite e passa a ser uma chávena de leite com café, sem espuma ou com espuma que parece ter sido tirada dum alguidar de lavar loiça! Uma receita de culinária não tem preceito sobre os ingredientes? Não se colocam primeiros uns e só depois outros? E se a coisa for feita ao contrário, o resultado não fica, quantas vezes, um desastre? Pois aqui sucede o mesmo, e estranho que as pessoas que trabalham nos cafés não saibam o básico sobre a matéria.
Quando entro num sítio pela primeira vez não peço logo a meia-de-leite e tento ver se alguém está a beber o mesmo, para que possa ver como a fazem e só depois faço o pedido ou opto por um simples café.
Mas a grande especialista de meias-de-leite é a minha mãe, para quem é difícil arranjar poiso certo para os pequenos-almoços nas férias, quando chegamos a qualquer lado que desconhecemos e andamos, literalmente, a experimentar meias-de-leite até acertarmos com aquela que gostamos. Há quem nos goze, quem nos ache snobs, quem nos chague o juízo, enfim, quem não compreenda como uma simples meia-de-leite pode condicionar a nossa boa disposição dum dia inteiro.
Manias.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Dias de nevoeiro

Para além de ser uma palavra bonita – nevoeiro – a sua menção ou lembrança levam-me numa viagem no tempo até aos idos de 70 e aos corredores cinzentos da Escola Visconde de Juromenha, hoje uma EB 2+3, onde andei 5 anos. A proximidade da serra de Sintra (eu gosto de pensar que era por isso…) trazia uns nevoeiros tão densos que não nos víamos dum lado ao outro dos corredores. Dias de nevoeiro eram dias de brincar às escondidas e de… namorar! Quando a nuvem densa e opaca descia a abraçava a escola havia mais faltas que em dias de sol que pediam praia ou em momentos de jogos com outras escolas que, por vezes, se realizavam em horário de aulas.
Ao abrigo do nevoeiro eram dados beijos inflamados, abraços memoráveis e feitas juras de amor eterno, a maior parte delas, esquecidas assim que o sol voltava a brilhar.
As janelas da escola pareciam ter sido feitas para garantir uma certa cumplicidade pois eram metidas para dentro da parede, como que escondidas, e da altura ideal para um se sentar e o outro se encostar, como quem se entrega com confiança.
Quantas mãos exploraram a anatomia humana pela primeira vez, sentadas nas reentrâncias das janelas e com a bênção dum dia de nevoeiro? Nesses dias nem se procurava a pacatez das traseiras do ginásio da escola, para quê?, se o nevoeiro estava do nosso lado?
Já casada, uma das sensações mais estranhas que já experimentei foi também com o nevoeiro como protagonista: em Vila Nova de Cerveira, depois de metermos os pés no rio Minho, fomos a um ponto alto, cujo nome não me lembra. De repente, o nevoeiro abateu-se sobre nós, de tal forma que esticávamos os braços fora da janela do carro e não se viam as mãos. Ficámos parados dentro do carro, com luzes e piscas acesos, esperando que ninguém se atrevesse a andar por ali, caso contrário pararia só quando nos batesse. Ao fim duns longuíssimos vinte minutos, o nevoeiro amainou e continuamos a marcha, ainda com a imagem do que se vê, sente-se, mas não se agarra para se afastar, como se tivéssemos estado vinte minutos noutra dimensão onde a qualquer momento pudesse aparecer o Merlin, a Morgana ou o próprio D. Sebastião.
Mas nevoeiro é, antes de tudo, sinónimo de Visconde de Juromenha, de vida fácil e descontraída da adolescência, de sonhos por realizar, mas com certezas absolutas que um dia seriam realidade. No fundo, certezas de nevoeiro, que se desfazem.

Em M

Melodia de mármore
Marfim mestiço
Mãe, muralha de movimento e mistério
Mezinha mutante e murmurada
Margem morena e móvel
Murcha a mitologia mirrada, míope
Meridiano de mesclas
Miscigenação miserável e mesquinha
Macabro músculo de míudo
Maçã mastigada na memória
Muda o mundo, museu de misturas
Mestre, mata o monstro
Mutila-se a multidão, a mulher e a música

Destroço

Enquanto aguardo o inevitável, tento, como um camaleão, transformar-me em arco-íris
Mas o abutre já cheirou o putrefacto e vejo-o picado, condenando-me
Animais recém nascidos aguardam o meu féretro.
Lanço uma imprecaução e ofereço-me ao estraçalhar
Impressiona-me que queiram este destroço.

A abundância da fome

A abundância da fome
Que calmamente desespera
Senta-nos numa viagem inquietante
A um vazio repleto de nadas
O seco deserto de árvores verdes
Embacia o ar pesado
Prescutado pelos cegos.
Brancos, pretos, caminham, avançam
A guerra e a paz almoçam juntas
E juntas decidem quando será de noite

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Cortei–me no dedo da mão

Cortei–me no dedo da mão
Lambi o sangue, gota a gota
Estava morno e era doce, são
Era mel vermelho
Suguei-o com sofreguidão
Toma, prova-me e vais ver
Devagar, com lentidão
Não me deixes perder
Depois de ti, outros virão

Em L

Lábios de lã lançam lágrimas
Lancinantes leis lascam a liberdade
Leio as letras lógicas do luto
Luta a lembrança da ladaínha
Lavrada na latitude da linguagem
Lumes levantam a luxúria
Latrinas a luzirem lustrosas
Linhas de leitura lisonjeadoras
Lunetas levam ao lúgubre lugar
Louvado o lúcido luar

Ginástica forçada

Como o carro não trabalhava o meu pai chamou o reboque para o levar à oficina. O rebocador (será este o nome do profissional que opera estes reboques?) com o cabo de aço da maquineta abriu um rasgo na chapa do carro. Conclusão, o que se esperava ser qualquer coisa de rápida resolução na mão do senhor mecânico, acabou por ser uma espera que ainda decorre, com substituição de placas metálicas e sei lá mais o quê. Face a isto emprestei-lhe o meu carro e agora, para além das sessões de ginástica nocturna, tenho uma caminhada de cerca de dois quilómetros de manhã e outra à noite, que me serve de aquecimento para o ginásio.
Chego em brasa ao trabalho, encharcada em transpiração, parecendo que não tomo banho há três quinze dias! À noite chego ao ginásio estafada e custa-me fazer subir barras de ferro, empurrar pedais de bicicleta e pôr um pé adiante do outro na passadeira. Mas não desisto. A cada esforço penso no bem que me faz e em como aquele tempo serve de espaço de reflexão na minha cabeça.
Isto até chegarem as minhas amigas, é claro. Aí comentamos em surdina os rabos dos outros ginastiqueiros, elogiamos quem faz flexões com a facilidade de quem bebe copos de água e invejamos a forma física de outros que se penduram por um braço e sobem e descem de varas de metal elevando o próprio corpo enquanto conversam, da mesma forma que eu converso quando vou a conduzir segurando o volante.
Ando com dores no corpo todo e hoje fiz o caminho de casa até à estação de metro quase no dobro do tempo do costume. Consolo-me em pensar que dentro de dias terei o carro de volta e o corpo também já se terá habituado, mas até lá, ando com os olhos semicerrados durante o dia, e encontro dores em sítios do corpo que nem sabia que existiam.
Na segunda-feira, se tudo correr bem, já terei carro e, mesmo arrastando-me, não deixo de pensar que bom, bom, era ter o carro e conseguir continuar a fazer o mesmo percurso de manhã e à noite. Ou se calhar não. Não exageremos.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Frasco de veneno

Hoje estou envenenada, da cabeça aos pés. O culpado é o V. que me visitou ontem, em carne e osso, ao contrário do que acontece ultimamente, em que os contactos são por telefone ou por escrito. Sinto-me acetinada e a flutuar, nuvem invisível que afasta o ar ao passar.
O V. tinha-se feito anunciar horas antes e chegou em cima dum compromisso já assumido e que não podia mesmo desmarcar. Que tristeza, queria ter estado com ele com vagar, ouvi-lo dissertar acerca do que lê, do que descobriu em novos velhos alfarrábios encontrados em alfarrabistas e sebos espalhados por esse mundo que é dele, por que o percorre com os pés e o apreende com os sentidos e o critica com o raciocínio e o aprecia com a alma que ele diz que não tem.
Ele senta-se diante de mim e eu sinto-me sentada à mesa do rei, ou como uma criança a quem é permitido assistir ao baile. E ele, moreno e sorridente, fala e muda de conversa mas não saindo nunca daquela linha de gente que sabemos, mas sabemos mesmo, que é superior, que sabe tudo, que numa palavra contém o mundo e no-lo transmite, de forma clara e esclarecida.
É como se o V. fosse feito de muita gente, que já morreu e muita outra por nascer, o que dá no presente um homem extraordinário, que deixa rasto e se projecta. Também tem defeitos, e ainda bem, pois assim sei que é humano.
O último defeito que lhe descobri foi ter-me envenenado, via senhor Christian Dior, com um frasco de Poison, que hoje usei abundantemente e me faz sentir uma pecadora.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Filhos do Algarve

Fez um ano este fim-de-semana que dei início a este espaço. Não o assinalei no dia exacto por ter que cumprir o ingrato dever de acompanhar o funeral do pai dum grande amigo, casado com uma grande amiga, de infância, de vida, de tudo.
O funeral foi em Vila Boim, perto de Elvas e levei os pais dela comigo, pessoas que conheço desde sempre, que sempre me acarinharam e algumas vezes me deitaram olhares de reprovação, como se deitam a quem se quer bem e não se quer ver ir por maus caminhos.
Parte da minha adolescência foi passada na casa deles onde eu adorava escrever à máquina, pondo folhas de papel químico atrás de folhas. A última vez que dormi naquela casa foi na véspera do casamento da minha amiga, onde partilhámos a cama, motivo de gozo e riso até hoje.
Ele é o mais novo de três irmãos, muito mais novo que os outros dois, tendo nascido por acidente como se dizia. Conheci os pais dele quando tinha uns quatro ou cinco anos e eles tinham uma mercearia por baixo da casa duns grandes amigos dos meus pais onde passávamos a vida. Ia à mercearia e, não me lembro se conscientemente ou não, passava à frente de toda a gente, ou seja, chegava e pedia o que queria sem olhar a quem estava. A D. Maria de Jesus, mãe daquele que seria o marido da minha grande amiga, ralhava-me e punha-me no meu lugar! O contacto com os irmãos mais velhos foi superficial e acontecia mais quando eles, já casados, davam festas lá em casa e nos encontrávamos todos, com a D. Maria de Jesus a repetir cenas minhas passadas na mercearia. O marido, António, era mais reservado mas era protagonista de filmes que nos faziam sempre rir, como quando tinha que passar na portagem da ponte 25 de Abril, Salazar, na altura e, não dominando a embraiagem do carro e temendo parar e não conseguir voltar a andar, levava as moedas na mão, ia desacelerando e à passagem da portagem e sem parar, atirava as moedas para dentro da casinha onde estava o portageiro!
Das muitas férias que passámos juntos, quer com os pais dele quer dela, lembro umas em particular em que os pais dele estavam algures também em férias e tinham combinado que o filho lhes ligaria todos os dias. Assim, todas as noites depois do jantar dirigíamo-nos à cabina telefónica da praça central de Albufeira e ele dava um dedo de conversa com a mãe. Uma noite, depois de termos estado na fila com estrangeiros das mais diversas origens e numa altura em que, claro, não havia telemóveis, lá chegou a nossa vez de telefonar; os pais dele não estavam, tinham saído não me lembro para onde e para evitar termos que estar na gigantesca fila outra vez, ele deixou mensagem, mensagem que ficou célebre e cujas iniciais ainda hoje constam gravadas no alumínio ao lado da campainha deles, FA:
- Então por favor diga-lhes que falaram os filhos do Algarve.
A partir daí e para sempre os Filhos do Algarve dão sessões de riso, de conversas à volta de memórias de Verões quentes, tranquilos, onde o meu ex-marido também estava presente.
Foi no meio destas recordações que, antes do funeral, quando fomos almoçar, a mãe dela nos contou que tinha recebido uma prenda de Natal que odiara! Todos os que a conhecem e com ela convivem com uma certa familiaridade sabem que tem pavor de dentaduras e qualquer outro parente de dentes postiços. Então, um familiar armado em engraçadinho ofereceu-lhe uma dentadura em chocolate! Branco, ainda por cima, para aumentar a sensação de realidade. A forma como ela contou a coisa, usando a típica linguagem da sua terra natal perto de Chaves, foi hilariante e inesquecível, de tal forma que os Filhos do Algarve, reduzidos ali a três, uma vez que o meu ex-marido não foi ao funeral, perceberam que a dentadura de chocolate passará a fazer parte das nossas vidas e principalmente, das nossas gargalhadas.
É engraçado como temos ligações fortes, de sangue, com pessoas sem qualquer ligação sanguínea. São ligações de vida, que nem a vida permite que se extingam.

Insiste, insiste, insiste

Comecei na semana passada um programa de ginástica. Não na televisão, foi mesmo no ginásio. Somos três amigas que estamos decididas a correr, andar de bicicleta, esticar dum lado, puxar do outro e deixarmo-nos ver em posições ridículas e, ainda por cima, insistir, insistir, insistir!
Entre cada exercício, dois dedos de conversa, com conhecidos e não só, tendo-se a bicicleta revelado um ‘local’ onde se discute a actividade dos filhos. Quem diria! Na primeira sessão ainda pensei levar um livro para ler durante aqueles vinte minutos onde as pernas estão em actividade mas os braços descansam e o olhar tem duas opções: ou contempla o espelho em frente ou vai dando volta ao ginásio, observando a actividade geral. Mas agora que constatei haver conversa durante aquele ‘passeio’ vou optar por dar à língua, garantir-lhe igualmente uma sessão activa.
Há máquinas que me parecem estranhas e nas quais não sou capaz de dar ao pedal mais que cinco minutos e mesmo assim, com dificuldade. O monitor diz-me que devagar se vai ao longe e eu concordo.
Não irei às segundas-feiras, único dia em que o meu filho está em casa à noite, de modo que continuaremos a estar juntos.
Nos intervalos dos exercícios espreitamos o pavilhão de desportos em baixo, através dum grande vidro. Conhecemos toda a gente pois aquela hora há treinos de andebol e os praticantes são antigos colegas de clube do Duarte, e muitos deles são actuais colegas de escola. Com frequência vão até lá acima onde estamos a fazer maratonas de transpiração e vêm dar-me um beijinho, provocando uma paragem de meio minuto nos meus exercícios, que muito aprecio!, embora lhes diga que me estão a interromper! Rimo-nos todos pois sabemos qual é a verdade…
Hoje é dia de descanso mas, felizmente, estou ansiosa que chegue amanhã!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O cheiro da Oriflame

Há dois dias na entrada do Metro deram-me um pequeno catálogo de produtos de beleza da Oriflame, que meti na mala, tal como meto na carteira todos os folhetos e panfletos que me dão seja onde for.
Embora não faça qualquer intenção de consultar qualquer astrólogo africano ou proveniente de qualquer outro continente, recebo com um bom dia os papelinhos que me entregam nos passeios de Lisboa, assim como outros com informação sobre dentistas, explicações e aulas de grego e latim, contactos de electricistas, canalizadores, limpa-chaminés, ginásios, restaurantes das mais diversas nacionalidades, sapatarias entre mil outras coisas. Os das sapatarias são os que ficam mais tempo na mala porque penso duas vezes se não hei-de lá ir, atacada por este amor por sapatos que tenho desde sempre, acabando por também seguirem o curso dos outros: lixo.
Porém, o catálogo da Oriflame acabou por dormir na mala duas noites e ontem finalmente tirei-o e enquanto terminava as refeições para hoje dei-lhe uma vista de olhos. Vernizes e géis de banho, perfumes e sombras para os olhos, sabonetes e rimeis, condicionadores para o cabelo e cremes voluptuosos, à primeira vista nada tinha de diferente de qualquer outro catálogo com produtos semelhantes.
Chamou-me a atenção um círculo que havia em algumas das páginas contendo a seguinte informação: ‘Raspe na embalagem para cheirar’.
Primeiro pensei que aquilo era idiota pois onde tinha eu a embalagem para raspar? Depois pensei se não podiam ter arranjado outro verbo? Raspar? Mas eu sou algum gato? E finalmente, como se cometesse uma palermice tremenda, e pensando, vá lá, não está alguém a ver!, atrevi-me a raspar com a unha em cima da imagem e levei o dedo ao nariz constatando que cada fotografia de cada produto dos assinalados com o círculo tinha um cheiro diferente que facilmente se associava aos frutos ou aos produtos que se anunciavam como componentes de cada embalagem!
Não sei se isto é comum – como dizia uma tia minha, desde que o homem foi à Lua, nada me espanta - mas foi a primeira vez que vi tal coisa e fiquei a sorrir sozinha. Acabei por voltar ao início do catálogo e um minuto bastou para ficar com os dedos mesclados de vários perfumes que já não conseguia distinguir. Mas uma vez que raspei o catálogo todo, se encostasse o nariz a cada página podia discernir os cheiros de forma individual. Gostei da criatividade e da forma de realce que leva à atracção dos nossos sentidos.
Com uma vida passada a cheirar papel, e a gostar desse cheiro, fiquei surpreendida pela novidade, tão adequada a um catálogo de produtos de beleza. Se os produtos são bons ou não, não sei, mas esta façanha fez-me gravar o nome: Oriflame.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

As múltiplas nacionalidades do meu pai

Janeiro é um mês profícuo em aniversários de gente minha conhecida, começando dia 1 com comemorações desta natureza. Ontem, dia 4, fazia anos o meu avô Gualdino, hoje dia 5, é a vez do meu pai, a meio faz o pai do meu filho e lá para o fim, faço eu. Se os comemorasse a todos deixava de ter férias no Verão e mudava-as para Janeiro! Isso acontecerá quando me mudar para o Brasil para aproveitar a estação quente, não antes, livra!
O meu pai, o Sr. Bento, Bentinho ou, a preferida do neto, Bento do Cabo, como era conhecido em garoto por ser filho do Cabo da Guarda, completa hoje 67 anos e percebe-se porque nos fartamos de rir quando a irmã mais velha lhe chama o meu caçula!
Resquícios de vários AVC’s deixaram-lhe a fala ligeiramente distorcida, o que provoca a aparência dum certo sotaque estrangeiro, sem que alguém consiga decidir com exactidão de onde é. Assim, passa frequentemente por finlandês, ilusão que ele alimenta e que compõe contando a história da criação de leões-marinhos, e mais não sei quantos outros animais, que tem num lago na Finlândia. Os garotos divertem-se e os adultos são muitas vezes enganados. Já foi ucraniano, francês, russo, brasileiro e afinal é alentejano. O cabelo, completa e invulgarmente branco, onde uma pequena poupa teima em permanecer, ajuda a criar estas brincadeiras das quais nos rimos e que são repetidas ou reinventadas à medida da assistência.
Desde que o neto começou a jogar andebol tornou-se num afamado especialista da modalidade e algo me diz que agora vamos ter adjunto de treinador de pólo aquático, uma vez que o outro neto é praticante. Resta saber se dará em estilista para acompanhar a vaidade da neta…
Desde que foi operado à vista deixou de usar óculos mas não abdica dos pequeninos, pendurados na ponta do nariz, até aqui para ler. Agora usa-os mais frequentemente para abrir a internet e martelar, verbo que usa como sinónimo de teclar, e que lhe ficou dos tempos em que trabalhava no Diário de Notícias, na altura em que os processos foram informatizados e ele dominava no Macintosh.
Dentro de dias começará uma formação em informática – no momento da inscrição ficarão à espera que lhes soletre o nome estrangeiro, como sempre! – e ao fim dum mês temos Mestre, não de Risco, como um dos seus antepassados, que era uma espécie de arquitecto, daí o nome, mas da net. Daí a ser um pirata, vai um passo! Estamos à espera!
Parabéns Pai!

sábado, 1 de janeiro de 2011

O primeiro beijo

Há muitos anos no dia de hoje a na hora de agora estava numa garagem a festejar a chegada do Ano Novo quase a beijar aquele que havia de ser meu marido. Quando o fizesse marcaria o primeiro beijo. Porém, a nossa ansiedade, as nossas conversas, os nossos olhares, os nossos devaneios foram interrompidos pela chegada da notícia da morte duma familiar. O estado de espírito decompôs-se e a única coisa que consegui naquela primeira noite gelada de Janeiro foi que ele arrancasse uma azeda que sobrevivia ao frio encostada a um muro e ma oferecesse. Fiquei tão feliz como se me tivesse levado a viajar. O primeiro beijo havia de chegar no Carnaval seguinte, dois dias antes do Dia dos Namorados. Naquela altura tudo se fazia com outras velocidades, andávamos de bicicleta e não em naves espaciais como hoje, em que a sociedade da rapidez domina as relações que eram e já não são e mudam a velocidades superiores às dos cometas.
Onde andarão a rapariga e o rapaz que se amavam tanto naquele Carnaval, que construiram uma vida em comum? Que é feito dos planos deles? Os planos, mesmo sendo planos, existiam e devem estar numa ilha não assinalada nos mapas com as personagens dos livros que já lemos a brincarem às escondidas com o Elvis e o Jim Morrison.
Há um filme que tem imensos primeiros beijos dados sempre pelas mesmas duas pessoas: 50 First Dates, na versão portuguesa, A Minha Namorada Tem Amnésia. Fruto dum acidente a rapariga sofre de amnésia mas ele reconquista-a dia após dia após dia e ela nunca se lembra de nada. O filme em si não é nada de especial, a história é duma ternura sem limites, causadora duma inveja incontabilizável: para um é sempre tudo novo, para o outro, tudo se repete a cada dia. Onde está o amor? Na repetição ou na novidade? Na repetição por poder antecipar vontades e desejos, por conhecer o outro e melhor poder encaixar-se. Na novidade pela fuga da rotina que consubstancia, pela paixão que a surpresa sempre comporta, árvore que dá frutos com sabor a vida por viver, a descobrir.
Não sendo adepta de grandes festas e confusões, embora por vezes goste de lhes sentir o gosto, desde há muitos anos que fico sossegada nesta data e a cada 1 de Janeiro lembro-me que a Teresa faz anos, que morreu a Tia e que recebi uma azeda. Ponho-me a pensar no nome da flor e sorrio à possibilidade de ser um presságio, desde esse longínquo dia. Naquele momento era apenas uma flor, para a qual nunca olhei como cadáver adiado, destino que o relacionamento tomou. Hoje estou convicta que lhe fiz um favor no dia que pedi o divórcio, tal como se obriga uma criança a lavar os dentes ou a comer a sopa, acções que se tornarão bons hábitos que mais tarde serão agradecidos. Não deixo de o lamentar, sempre. A razão diz-me que fiz bem, o coração birrento continua a queixar-se. Mas o que é o amor senão querer o bem do outro, o bem incondicional, mesmo que a pessoa não o entenda ou demore anos para lá chegar?