terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Recordações vindas de longe

Até onde somos capazes de viajar na nossa memória? Qual a primeira recordação que temos? Este é um exercício que faço com o meu filho e com o meu sobrinho e que dá pano para largas mangas, onde se escondem estórias de antigamente que lhes fazem brilhar os olhos.
A minha recordação mais antiga é dum vizinho que morava na casa por baixo da nossa, no primeiro andar, o Tó Zé. Por onde andarás rapaz?
A última vez que o vi foi num jantar para o qual fomos convidados alguns anos depois de termos saído do Cacém. Lembro-me que fui advertida por não estar a usar a colher da sopa em condições e ter pensado quando cheguei a casa, coitado do Tó Zé, que tinha que comer a sopa com regras e para mim bastava ser à colherada.
Lembro-me de chorar por causa do Tó Zé o que prova que desde cedo os homens me fazem chorar; além disso, ele foi o causador da cicatriz que tenho na testa, como se fosse antepassada do Harry Potter.
O choro deveu-se a um par de botas – vejo agora que a minha tara por botas vem de longe! – que eram dele e eu queria, à força. O sacana não mas deu e ainda hoje não recuperei…
A cicatriz não foi propositada, a menos que sejamos daqueles que vêm cabalas a torto e a direito: estávamos a brincar na rua, é verdade, antigamente brincava-se na rua, e vimos uma matilha de cães na entrada do nosso prédio. O que é que se faziam aos cães? Atiravam-se-lhes pedras! Ora, ou ele me confundiu com uma cadela ou precisava definitivamente de óculos, mas o certo é que uma pedra da calçada, afiada nas pontas paralelípepedas veio acertar no meio da minha testa. Lavada em lágrimas e em sangue fui operada na mesa da cozinha por um tio enfermeiro que estava de visita e me fez uns pespontos alinhavados cujo rasto ainda hoje cá mora. Quando vejo a cicatriz lembro-me do Tó Zé, ou seja, lembro-me constantemente duma pessoa que não vejo há anos.
De vez em quando vêm-me à memória cenas da infância há muito arrecadadas e quietas; há qualquer coisa que as faz mexer, que as tira do sítio e que as coloca na janela das recordações, o quê, não sei e por ora não quero saber. Sabem-me bem e chega.

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