sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Anjo da Guarda

Desde há muitos anos que me acontece sempre o mesmo: quando termino um trabalho sinto um vazio. Sinto a satisfação do dever cumprido, o brio profissional vai de fim-de-semana com calma e tranquilidade mas, há umas reticências a seguir ao mas que não consigo preencher. Quando se repete este momento, do fim dum trabalho, duma iniciativa, no caso concreto da organização dum evento científico, e o momento é agora quando escrevo, lembro-me da primeira tarefa que me foi dada neste âmbito.
Era arquivista numa Câmara Municipal da área metropolitana de Lisboa e o director do Departamento de Administração Geral e Finanças pediu-me que executasse uma tarefa que se verificou ter múltiplas vertentes: organizar a mudança do Departamento para outro edifício. Quando alguém perguntou se não havia outra pessoa sem ser a arquivista para fazer o trabalho, ele respondeu que a missão estava a ser dada à pessoa com maior capacidade de organização e, acima de tudo, maior capacidade de gestão do stress que ele conhecia. Fiquei contente ao saber do elogio e deitei mãos à obra.
À primeira vista poder-se-ia pensar que se tratava de organizar a mudança de meia dúzia de secretárias e muitos papéis; nada disso: em primeiro lugar havia que definir os espaços no novo edifício, prepará-los com arquitectos e engenheiros e electricistas e serralheiros e vidreiros e informáticos e decoradores e operários especializados das mais diversas áreas que me ensinaram imenso e a quem estou grata até hoje. Promoveram-se encontros com os responsáveis de cada secção para perceber o que faziam, como faziam, quem atendiam, com o objectivo de funcionalizar e modernizar cada uma, com novos modelos de gestão do espaço, de atendimento dos cidadãos, com (novas) tecnologias. Meses mais tarde é que se fez a mudança para um novo edifício, onde não faltou mobiliário novo, cuja escolha também passou por mim, com concursos públicos pelo meio. A inauguração foi em Maio com pompa e circunstância: no primeiro dia acorreram aos serviços centenas de pessoas, tanto mais que estiveram fechados nas 48 horas antes, para permitir a mudança total, com alguns inconvenientes para a população.
No fim desse dia corri aqueles corredores e aquelas salas como um fantasma: não havia pressas, não havia reuniões, não havia telefonemas, não havia gente a procurar-me nem eu procurava alguém. Estava só eu e o prédio e não conseguia ir embora, alguma coisa me prendia ali, talvez o próprio tempo que lá tinha passado a ver as entranhas das paredes, a passar fibra óptica, a arrumar móveis. A lembrança daqueles momentos é tão nítida que chega a ser assustadora.
A missão estava cumprida e eu perguntava-me inconscientemente, E agora? Onde vou ocupar as 30 horas do meu dia? O que faço para gerir esta tempestade de dinâmica que transporto? A presidência da Câmara nomeou-me responsável do Gabinete de Organização e Informática na esperança que eu introduzisse novos métodos de trabalho, que mudasse procedimentos, que uniformizasse processos documentais. Odiei. Foi o trabalho que menos gostei de fazer, de sempre. Porquê? Talvez por não ter uma data limite, por o desafio não ser efectivamente um desafio, por serem tarefas que corriam ao ritmo do trabalho dos serviços, languidamente…
Felizmente, pouco tempo depois decidiram investir na construção de raiz de uma grande Biblioteca Pública, inaugurada num Novembro soalheiro, e deram-me a tarefa de coordenar os trabalhos: AMEI!
Mais uma vez, depois duma inauguração pública com políticos e milhares (literalmente!) de cidadãos, naquela noite, noite bem avançada, percorri cada sala, cada canto e cada recanto, toquei em cada estante, em cada secretária, em cada sofá, nos computadores, nas antenas dos alarmes, nas maçanetas das portas, como se quisesse deixar a minha impressão digital naquele mundo que iria rapidamente ser abarcado pela realidade dos utilizadores e passar a ser nosso e não apenas meu.
Por esta altura já me tinham dado a organizar eventos como Feiras do Livro, encontros com professores, reuniões culturais, entre outros, e quando saí da Câmara, dois meses depois de ter inaugurado a Biblioteca e ter vindo assumir responsabilidades noutra Biblioteca (não pública), não tardou que me pedissem para organizar um evento, uma exposição. Depois disso vieram os encontros científicos internacionais, como o de hoje, que acabou há uma hora e me deixou exausta. Exausta mas feliz, pela forma como tudo correu. Satisfaço-me imenso interiormente ao passar a vista pelos questionários que pedimos aos participantes para preencher e verificar que consideraram a organização impecável, excelente e que, em termos científicos, as expectativas foram completamente superadas.
Num relance revejo o primeiro encontro com os promotores científicos da coisa, os primeiros e-mails a convidar conferencistas, as respostas, os pedidos de textos e toda a comunicação sequente, que vai num crescendo de trabalho até ao actual momento e por onde passam tarefas como gravação de CD’s com as comunicações, revisões de texto e aprovação das ementas para almoços e jantares, passando pela publicidade, criação de cartazes, publicação de anúncios em jornais, inscrições de participantes e mil pequenas grandes coisas pois, cada minúsculo pormenor pode transformar-se num grande problema se não for devidamente acautelado.
Sentada em frente à secretária a digerir o sucesso do evento já sinto o vazio característico da ocasião: cada conferencista, cada participante, transformou-se em parte de mim, como sempre, mas acaba por vir o afastamento. E agora? O que faço para ocupar as 30 horas do meu dia?
Felizmente, já há outro grande evento na calha e segunda-feira começam os novos trabalhos! Não trabalho sozinha, nunca o fiz e serei incapaz de o fazer, e quero aqui deixar um agradecimento a quem participou neste projecto e especialmente a quem funciona como minha sombra, lembrando-me de certas coisas, antecipando o que vou pedir para fazer, fazendo antes de eu o pedir, mostrando uma atenção a tudo o que sabe que para mim é essencial: Tudo! Mesmo quando eu fico intratável em momentos de stress há uma estrela que me dá sempre luz, nunca me abandona. Obrigada. No fundo, no fundo, não tenho luz própria, é ela que me faz brilhar.

Sem comentários:

Enviar um comentário