Faz hoje anos que comprei a minha primeira casa. Memorizei a data porque faz hoje anos o pai do meu filho, só por isso, caso contrário, seria uma data que nada me diria.
Ao que parece fui a primeira neta da família a nascer num hospital, e o mais perto calhou a ser o de Moura, onde a Irmã Florinda me puxou das entranhas da minha mãe, enquanto outra Irmã cujo nome desconheço puxava um cigano das entranhas da mãe dele num quarto ao lado, cuja família também morava no Sobral da Adiça e, provavelmente, seria o primeiro da sua família a nascer num hospital, como eu, não sei, apenas sei que como nascemos no mesmo dia, durante anos, sempre que nos encontrávamos tínhamos que nos cumprimentar com beijinhos. Ora eu não sou muito de beijoroquices, nem a ciganos nem a ninguém, e assim que o vislumbrava ao fundo da rua, atalhava por outro caminho só para não ter cumprir o ritual dos beijos ao rapaz que, se não me engano, gostava daquilo tanto como eu, mas naquela altura uma ordem maternal era uma ordem para se cumprir e lá tinha que ser, da parte dele e da minha.
Quando vim do hospital fui para uma casa que seria minha décadas mais tarde e que já vendi. E aí vai uma. Passado pouco tempo mudei-me para a casa grande dos meus avós, na Rua Longa, (e aí vão duas) e aos dois anos e meio os meus pais imigraram para Lisboa.
Dizer que vinham para Lisboa era apropriado para informar quem ficava na aldeia e dava-se a informação tomando o todo pela parte pois, na verdade, fomos morar para o Cacém, essa grande metrópole, com a Praceta da Palmeira (que ainda existe) em frente à janela da sala. E aí vão três. A casa era duns tios que estavam em África e quando regressaram não tivemos outro remédio senão mudar, tendo sido eleito um prédio duas ruas acima, mais novo mas mais longe da estação.
É nesta casa que guardo as melhores lembranças do meu Tio João que estava internado no Júlio de Matos e vinha de vez em quando passar uns dias a casa connosco. É também desta casa que guardo lembrança da Milu, a cadela pastor alemão arraçada de leão da Rodésia, um monstro assustador que o meu tio recém-chegado de Angola tinha trazido e que um dia, a propósito duma deslocação não me lembro onde, deixou à guarda da minha mãe com a recomendação que ela a passeasse. Nunca cheguei a concluir quem passeou quem, pois a minha mãe chegou a casa sozinha, em pranto, esfolada da cabeça aos pés, a sangrar dos joelhos, das mãos e dos braços, vítima da atitude impulsiva da Milu, que vira um amigo qualquer, correra para ele e arrastara a minha pobre mãe pela calçada mal feita daquele subúrbio, sem que conseguisse largar a trela! A safada da Milu apareceu horas mais tarde à porta do legítimo dono e lá ficou à espera dele assustando os moradores do prédio, enquanto a minha mãe dava largas à lástima e a raiva, duas ruas acima. E aí vão quatro.
Por esta altura o meu pai teve conhecimento dumas casas fantásticas a duas estações de comboio de distância numa localidade chamada Mercês. Lembro-me de discutirem por a minha mãe achar a casa uma fortuna: 252 contos, em moeda antiga, hoje pouco mais do que 1250 euros. Lá embarcaram na aventura de comprar a casa e foi o poiso onde estive mais tempo, quase 16 anos, rente à linha do comboio, no número 12 da Rua A. E aí vão cinco.
Mais uma volta, mais uma viagem no carrossel da vida familiar e os meus pais decidiram ir morar para a Amadora. Porém, - ai, belos tempos – venderam a casa tão depressa que não deram tempo aos acabamentos da casa da Amadora e por isso, temporariamente tivemos que ficar numa casa alugada no pior local onde já morei, a Quinta da Barroca, nos fundos do Cacém (outra vez!) onde, para se chegar a casa, tínhamos que passar diante duma escola e toda a rua estava pejada de bandas de alcatrão com uma altura que competia com a Serra da Estrela o que nos fazia demorar horas a ir e voltar a qualquer local pois era impensável passar ali sem ser à velocidade do caracol. E ai vão seis.
Finalmente mudámos para a Amadora, mesmo ao lado do liceu, hoje Escola Secundária da Amadora, onde eu nunca andei. Desta casa guardo lembranças de muito trabalho: trabalhava muito e estudava nas horas vagas, de tal forma que o meu namorado ia fazer-me a visita e ficava a conversar com a minha mãe porque eu adormecia no sofá e só acordava quando me mandavam dormir e eu ficava muito admirada por ele já lá não estar! E ai vão sete.
Mais voltas da vida levaram-nos recambiados para a Serra das Minas, perto das Mercês novamente. Desta casa saí para me casar. E ai vão oito.
Casada fui morar na Casa Azul, propriedade dos meus sogros e onde estive quase 10 anos e saí com o meu filho numa mão e um saco com meia dúzia de coisas na outra e fui viver com os meus pais. Ai vão nove.
O meu marido ponderou sobre os motivos que me levaram a sair de casa, concordou comigo e, por incrível que pareça, foi também viver na casa dos meus pais! Ai vão dez.
Passado pouco tempo, a 18 de Janeiro, comprei a minha primeira casa, minha, minha. Adorava-a e o meu filho também. Tinha uma configuração pouco habitual, era espaçosa e estava desarrumada, sinal que tem vida e cheia de móveis mandados fazer à medida para arrumar os meus livros, já na altura em quantidade considerável. Infelizmente demos conta que os feitios não se adequavam de todo, divorciámo-nos, o meu filho voltou a dar-me a mão e saímos de casa. Ai vão onze.
Fomos para casa dos meus pais que na altura viviam fora de Lisboa e ficámos cerca dum ano. Ai vão doze. Comprei a minha segunda casa, minha, minha, em Rio de Mouro, perto da escola que ele frequentava na altura e ali ficámos até ele terminar o nono ano. Ai vão treze.
Hoje moramos na Amadora, curiosamente no mesmo prédio onde morei há anos atrás, ao lado do liceu, onde o meu filho estuda. Ai vão catorze.
Para além da experiência em mudanças, em carregar frigoríficos, máquinas de lavar e encaixotar livros, esta vida de ciganos, que devo ter herdado por osmose com o ciganito no dia em que nasci, não acaba aqui com certeza porque não sou apegada a casas, ainda menos a cortinados ou decorações. A minha casa é o local onde eu estou e, principalmente, o local onde estão as pessoas que eu amo e se vivesse num quarto de hotel seria fantástico, desde que houvesse uma biblioteca ao virar da esquina.
O meu querido ex-marido faz anos hoje e desejo-lhe um dia feliz. Já conta 48 anos, contará mais discernimento? Espero bem que sim, a bem da nação familiar que quer se queira quer não, existe até que a morte nos separe.
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