Os doentes com Alzheimer transportam uma carga delicada, uma corcunda invisível ao primeiro olhar, como um bombista que carrega na mochila a bomba que irá armar. São um perigo ambulante, desconhecido, um veículo humano desgovernado, inimputável, e acima de tudo inútil.
A consciência da doença provoca uma dor sobrenatural onde se reza por todas as dores de dentes e de ouvidos, por cólicas pavorosas, por enxaquecas tão fortes que provoquem desmaios. Tudo é preferível a conversar com Caronte, enquanto navegamos na sua barca, ouvindo já ao fundo os latidos de Cérbero e sabendo que Hades nos reserva um lugar, o melhor com vista privilegiada para o que já fomos e não reconhecemos.
O desespero faz-nos acreditar que vai aparecer um Hércules que desvia toda esta gente da nossa frente, que os pontapeia ferozmente, dando voz à nossa raiva, à nossa fúria contra uma vida que decidiu, assim, sem mais nem menos, fugir de nós.
Estas pessoas são relegadas para a despensa social, ao lado de pacotes de massa e de arroz fora da validade mas que, por questões éticas e morais, não se podem deitar fora, ficam ali a ocupar espaço. A fazer gastar dinheiro. A fazer perder tempo. A criar problemas legais. A esgotar a paciência alheia.
Um livro lido há muitos anos, do qual depois fizeram um filme, que em português se chamava À Beira do Fim e foi editado numa colecção de ficção científica da Caminho, com o título original Soylent Green, colocava a acção num futuro, na altura longínquo, hoje às nossas portas, o ano 2022. Face a um planeta sobrelotado e à escassez de comida pagava-se a quem quisesse morrer e, se bem me lembro, havia duas espécies de pagamento: comida para a família e imagens do passado para o candidato a morto. Assim, num mundo metálico, negro, sujo e frio permitia-se que a última recordação que se levava da vida fossem montanhas com neve sob um céu azul, rios de águas cristalinas que corriam cantando as canções que a natureza decorara ao longo de milénios, apoiados por um coro de pássaros. Apesar de tudo, morria-se feliz, por se poder usufruir pela última vez aquilo que algum forreta conseguia guardar: memórias.
Os que transportam a carroça do Alzheimer, que fazem esforço suadouro sem saberem como nem porquê, quando ainda estão em estado consciente também pagariam para reaver as suas memórias e, não tenho dúvidas, muitos pagariam assinando um cheque com a própria vida.
A consciência da doença provoca uma dor sobrenatural onde se reza por todas as dores de dentes e de ouvidos, por cólicas pavorosas, por enxaquecas tão fortes que provoquem desmaios. Tudo é preferível a conversar com Caronte, enquanto navegamos na sua barca, ouvindo já ao fundo os latidos de Cérbero e sabendo que Hades nos reserva um lugar, o melhor com vista privilegiada para o que já fomos e não reconhecemos.
O desespero faz-nos acreditar que vai aparecer um Hércules que desvia toda esta gente da nossa frente, que os pontapeia ferozmente, dando voz à nossa raiva, à nossa fúria contra uma vida que decidiu, assim, sem mais nem menos, fugir de nós.
Estas pessoas são relegadas para a despensa social, ao lado de pacotes de massa e de arroz fora da validade mas que, por questões éticas e morais, não se podem deitar fora, ficam ali a ocupar espaço. A fazer gastar dinheiro. A fazer perder tempo. A criar problemas legais. A esgotar a paciência alheia.
Um livro lido há muitos anos, do qual depois fizeram um filme, que em português se chamava À Beira do Fim e foi editado numa colecção de ficção científica da Caminho, com o título original Soylent Green, colocava a acção num futuro, na altura longínquo, hoje às nossas portas, o ano 2022. Face a um planeta sobrelotado e à escassez de comida pagava-se a quem quisesse morrer e, se bem me lembro, havia duas espécies de pagamento: comida para a família e imagens do passado para o candidato a morto. Assim, num mundo metálico, negro, sujo e frio permitia-se que a última recordação que se levava da vida fossem montanhas com neve sob um céu azul, rios de águas cristalinas que corriam cantando as canções que a natureza decorara ao longo de milénios, apoiados por um coro de pássaros. Apesar de tudo, morria-se feliz, por se poder usufruir pela última vez aquilo que algum forreta conseguia guardar: memórias.
Os que transportam a carroça do Alzheimer, que fazem esforço suadouro sem saberem como nem porquê, quando ainda estão em estado consciente também pagariam para reaver as suas memórias e, não tenho dúvidas, muitos pagariam assinando um cheque com a própria vida.
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