segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Aquele senhor alemão, o Alzheimer

Todas as doenças são más, mas há umas piores que outras e as mais cruéis são as que nos matam em vida, são as que apontam para um morto vivo que se vislumbra a pouca distância e nos dizem, aquele és tu. Quando assim falam, sorriem, um sorriso de escárnio, atroz e pavoroso que não nos deixa dormir, que nos acorda em banhos de transpiração a meio da noite, que nos conduz por pesadelos infinitos, que nos faz ter vontade de fugir, mas nunca se tem para onde. Transporta-se, mais que um corpo doente, uma mente em vias de extinção, uma memória que vai pingando para dentro do esquecimento, como se fosse água que se escoa dentro dum ralo, uma cavidade mal tapada, um conhecimento de nós próprios que se vai esfarelando, uma inexistência dos outros que se vai consolidando.
E não há diques nem barragens que nos protejam, não há alpendres nem telhados suficientemente fortes para bater este betão armado que sobre nós se abate. Cada dia é um passo na direcção do tornado que se torna mais denso, mais palpável, mais visível, horrorosamente mais palpável e mais visível para, dentro em breve se perder a noção dele, a visibilidade do que agora temos como certo e amanhã, quando nos apreender deixarmos de o sentir. Que ironia deste destino mais marcado que a canção dum fado.
Entretanto, o que fazer? Dar festas e comemorar a amizade? Dizer aos amigos que nos aproveitem enquanto é tempo? Viajar enquanto podemos guardar memórias? Contar todos os nossos segredos a alguém, para que não se percam? Viver com a pena alheia e com a palavra coitadinha a ecoar das bocas de cada um? Guardar o dinheiro para… não sabemos o quê?
Daquilo que me é dado ver, não há equilíbrio nesta barca do inferno, não há razão, nem decisões bem ou mal tomadas, não há verdades que se busquem nem vidas futuras que se conquistem. Há o aqui e o agora, o sorrir hoje, enquanto sabemos porque sorrimos. Há uma urgência de vida, uma pressa que me lembra um filme antigo onde uma personagem cujo nome fixei, não sei porquê, Dorothy Malone, pergunta a um condenado como pode ele querer que ela lhe dê a vida inteira numa noite. É isso que se quer quando ainda se tem consciência, quando ainda se está no princípio do corredor da morte.
Este corredor é mais negro e sujo que o que percorrem os condenados à morte física, cujo fim sabem próximo e será seguido de romaria ao cemitério a mudar as flores por parte dos outros; eles foram retirados de cena, quando muito sobreviverá a sua lembrança; mas este corredor tem fantasmas de carne e osso que não sabem de onde vieram nem para onde vão, precisam da ajuda de alguém, de muitos alguéns, que façam muito mais do que mudar a água das flores: alguém que os vista e os alimente, que os lave e os limpe, alguém que lhes faça a manutenção.
Há doenças que transformam as pessoas em máquinas sem razão de existir, como se fossem um carro antigo que para mais nada serve a não ser para alguém ocupar o tempo; mas porque são pessoas há quem se obrigue a regá-las diariamente, sabendo que dali não nascerá nada, nem flores, nem folhas, nem frutos, é madeira seca e estéril, que se torna mais e mais oca a cada dia.
Há dias mais fáceis e dias mais difíceis, há dias em que apetece falar com toda a gente e outros em que não apetece sair da cama e encarar o mundo que nos vai continuar a ver sem que possamos devolver esse olhar.
Repiso a palavra urgência: por vezes tudo é urgente, até se respira mais depressa, para se poder anunciar que ainda se respira, que temos consciência disso mesmo, dessa coisa tão simples e básica à qual nunca prestámos atenção a não ser num mergulho quando já não aguentamos mais debaixo de água e voltamos à superfície, saciados de saudade do Verão, da água do mar, do cheiro a maresia, da areia suculenta, da espuma sedosa. Breve, breve deixaremos de o fazer e, pior, deixaremos de nos lembrar como é bom, como é saudável, como vivemos meses de inverno na expectativa que o Verão nos traga novos mergulhos em águas azuis ou verdes. Recordar é viver, não tenho dúvida, e é isso que certas doenças nos tiram, deixando-nos apenas o momento de inspirar e expirar e nem disso temos consciência.

3 comentários:

  1. A minha mãe trocou-me por ele, há já uns anos. E o mais grave, é que nem isso sabe

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  2. Não há palavras, é como ser enterrado vivo, mas ao contrário, é como existir noutra dimensão, é uma existência sem vida, arrastada, cruel.

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  3. Mas também há coisas bonitas - sim, bonitas - trazidas pela net

    http://nemsemprealapis.blogspot.com/2011/01/porque-net-fornece-um-novo-dia_16.html

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