Há muitos anos no dia de hoje a na hora de agora estava numa garagem a festejar a chegada do Ano Novo quase a beijar aquele que havia de ser meu marido. Quando o fizesse marcaria o primeiro beijo. Porém, a nossa ansiedade, as nossas conversas, os nossos olhares, os nossos devaneios foram interrompidos pela chegada da notícia da morte duma familiar. O estado de espírito decompôs-se e a única coisa que consegui naquela primeira noite gelada de Janeiro foi que ele arrancasse uma azeda que sobrevivia ao frio encostada a um muro e ma oferecesse. Fiquei tão feliz como se me tivesse levado a viajar. O primeiro beijo havia de chegar no Carnaval seguinte, dois dias antes do Dia dos Namorados. Naquela altura tudo se fazia com outras velocidades, andávamos de bicicleta e não em naves espaciais como hoje, em que a sociedade da rapidez domina as relações que eram e já não são e mudam a velocidades superiores às dos cometas.
Onde andarão a rapariga e o rapaz que se amavam tanto naquele Carnaval, que construiram uma vida em comum? Que é feito dos planos deles? Os planos, mesmo sendo planos, existiam e devem estar numa ilha não assinalada nos mapas com as personagens dos livros que já lemos a brincarem às escondidas com o Elvis e o Jim Morrison.
Há um filme que tem imensos primeiros beijos dados sempre pelas mesmas duas pessoas: 50 First Dates, na versão portuguesa, A Minha Namorada Tem Amnésia. Fruto dum acidente a rapariga sofre de amnésia mas ele reconquista-a dia após dia após dia e ela nunca se lembra de nada. O filme em si não é nada de especial, a história é duma ternura sem limites, causadora duma inveja incontabilizável: para um é sempre tudo novo, para o outro, tudo se repete a cada dia. Onde está o amor? Na repetição ou na novidade? Na repetição por poder antecipar vontades e desejos, por conhecer o outro e melhor poder encaixar-se. Na novidade pela fuga da rotina que consubstancia, pela paixão que a surpresa sempre comporta, árvore que dá frutos com sabor a vida por viver, a descobrir.
Não sendo adepta de grandes festas e confusões, embora por vezes goste de lhes sentir o gosto, desde há muitos anos que fico sossegada nesta data e a cada 1 de Janeiro lembro-me que a Teresa faz anos, que morreu a Tia e que recebi uma azeda. Ponho-me a pensar no nome da flor e sorrio à possibilidade de ser um presságio, desde esse longínquo dia. Naquele momento era apenas uma flor, para a qual nunca olhei como cadáver adiado, destino que o relacionamento tomou. Hoje estou convicta que lhe fiz um favor no dia que pedi o divórcio, tal como se obriga uma criança a lavar os dentes ou a comer a sopa, acções que se tornarão bons hábitos que mais tarde serão agradecidos. Não deixo de o lamentar, sempre. A razão diz-me que fiz bem, o coração birrento continua a queixar-se. Mas o que é o amor senão querer o bem do outro, o bem incondicional, mesmo que a pessoa não o entenda ou demore anos para lá chegar?
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