sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Trabalhos de grupo

Os meus desenhos são lendários. Normalmente as pessoas associam-nos àquele dia em que fizeram xixi pelas pernas abaixo de tanto se rirem. Dizem que filho de peixe sabe nadar e assim é: consta que a minha mãe foi elogiada numa ocasião pela sua professora primária pela árvore que desenhara. A senhora professora franziu os sobrolhos quando soube que não era uma árvore e sim uma cafeteira.
aqui falei da minha total incapacidade em produzir um simples risco e do que aconteceu na escola Visconde de Juromenha quando fui obrigada a fazer parte dum grupo, e consegui, não fazendo rigorosamente nada, que o prémio de melhor trabalho fosse dado ao meu grupo. Puro golpe de sorte que me ajudou a não ser ostracizada para todo o sempre pela escola inteira, e ainda saí da sala quase em ombros, qual toureiro em Las Ventas.
Já na Secundária de Santa Maria, em Sintra, um certo trabalho de grupo de três pessoas, teve participação efectiva de duas e a terceira ficou muito admirada quando apareceu no dia da apresentação oral do trabalho e constatou que o seu nome não constava. A fúria deu-lhe para fazer queixa de nós ao professor, alegando injustiça! Quando nos perguntaram porque tínhamos feito aquilo, respondi com outra pergunta dirigida ao elemento faltoso:
- Que parte do trabalho é que fizeste?
Não havendo resposta, o caso ficou por ali e eu livrei-me dos monos da turma que deixaram de querer fazer trabalhos comigo, segundo eles por eu ter mau feitio…
No primeiro ano da faculdade fomos organizados em grupos de dois e calhou-me um rapaz que nunca vira e com quem nunca tinha trocado uma palavra. Como mantivemos a distância e o silêncio, apresentei o trabalho só com o meu nome. Ainda o guardo pois a nota foi magistral: PÉSSIMO, em maiúsculas, não fosse eu baralhar-me na leitura. Contudo, o professor mencionou a coragem de ter enxotado o parasita e ter enfrentado a coisa a solo.
Sempre que podia fazia trabalhos sozinha, atitude que se alargou aos estudos posteriores. Adoptei uma táctica que consistia em escolher a primeira data de apresentação dos trabalhos, sabendo eu que todos queriam a última; conclusão, poucos queriam trabalhar comigo.
Agora ouço uma amiga queixar-se que anda a fazer trabalhos de grupo… sozinha. Dou-lhe na cabeça, é claro, e incentivo-a a inscrever apenas o seu nome.
Os aproveitamentos surgem porque há duas espécies de pessoas: os aproveitadores e os aproveitados… Está muito mais na mão destes o fim destes relacionamentos desequilibrados e injustos, do que dos primeiros que, tenho a certeza, por si só nunca desaparecerão.

O que faz uma pessoa deixar-se injustiçar numa situação como esta? O que tem em dívida para com o outro, para o deixar colocar-se no pedestal do lucro fácil sem o denunciar através da omissão do seu nome? Que medo é este? O que é necessário para se passar do trabalho de grupo para o trabalho em equipa?Um grupo não é sinónimo de equipa. Uma equipa trabalha conjuntamente, cada um com uma missão, por mais pequena que seja, para se atingir o bem comum. Nos grupos há quem trabalhe para o bem dos outros e os outros nem se dignam agradecer.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Raro, raro, raríssimo…

De passeio pelo matagal que é a bloga visito amigos e desconhecidos. Encontro coisas que devem ser realçadas, atitudes raras, muito raras. Não me surpreendo porque conheço a pessoa em questão e sei que não são palavras vãs: ter trabalho é ganhar o euromilhões. É verdade.
Por outro lado, a  revolta contra comportamentos vizinhos, diários, tão próximos que são quase nossos, salve seja!, que nos puxam como um íman, querendo que também nós façamos parte de clubes de facilitismos, de deixa andares, de descomprometimento, de falta de empenho, e muitos eteceteras.
Estes comportamentos, mais do que tristes, são irresponsáveis e devem ser apontados a dedo! Não são só da classe professoral, antes pelo contrário, escavemos e encontramo-los nas raízes das vivências de quase todos os que conhecemos.
E depois… depois chega a ser cómico ouvir falar de cansaços e de actividades extenuantes.
Felizmente há quem não se canse e Sorria Sempre.

Trigo limpo, farinha Amparo!

Ontem à noite fui às compras e depois de as arrumar deliciei-me – há gente para tudo – a arranjar o peixe. Se eu trabalhasse num supermercado seria na peixaria e atenderia os clientes que querem o peixe amanhado…
A meio de escamar um pargo ouço a voz da Madalena Iglésias na rádio a dizer que sabia quem ele era, era um bom rapaz, um pouco tímido e tal e comecei a acompanhá-la prestando, pela primeira acho eu, atenção à letra. De mangas arregaçadas, faca numa mão e rabo do pargo na outra, conclui que o amor já não é o que era: um homem que chora se ela não vem? Objecto de Museu! Se ela não vem, ele arranja outra!

Sei quem ele é
Ele é bom rapaz
Um pouco tímido até
Vivia no sonho de encontrar o amor
Pois seu coração pedia mais,
Mais calor
Ela apareceu
E a beleza dela
Desde logo o prendeu
Gostam um do outro e agora ele diz
Que alcançou na vida o maior bem,
É feliz.
Só pensa nela
A toda a hora
Sonha com ela
P´la noite fora
Chora por ela
Se ela não vem
Só fala nela
Cada momento
Vive com ela
No pensamento
Ele sem ela
Não é ninguém

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O assalto

Se há coisa que as férias ainda não aprenderam foi a caminhar, sempre a galope, qual cavalo selvagem. Aquelas não eram excepção. Mesmo assim, corriam mais lentas que nos dias de hoje pois ainda não existiam telemóveis.
A casita alugada não tinha telefone fixo, pois claro, e tomávamos lugar na fila para a cabina na praça central e fazíamos o dever do telefonema à família. A conversa era sempre a mesma, Que sim, que estava tudo bem, a praia estava óptima e do outro lado anunciavam-se saudades, como se estivéssemos emigrados nas Franças e não víssemos a família há meses.
Um dia disse ao meu marido que fossemos a meio da tarde fazer o telefonema da ordem para evitarmos a fila nocturna e os sucessivos telefonemas para a Alemanha, Dinamarca, Espanha e todos os países de origem dos turistas que chegavam primeiro que nós ao telefone.
Se mais cedo tivéssemos ido mais cedo regressaríamos a Lisboa: do outro lado, a voz da minha mãe mostrou-se ansiosa com um ainda bem que telefonaram, e cautelosa lá nos disse que a nossa casa fora assaltada. Aparentemente não faltava nada, mas só nós é que podíamos ter essa certeza. A polícia esperava pela informação, a Judiciária, precisou ela. A Judiciária? Desde quando é que tomavam conta de assaltos? Que estranho…
Tarecos no Fiat Uno, estrada acima, muito curiosos e expectantes com o que faltaria pois, de certeza, os ladrões deviam ter levado qualquer coisa, mas o quê?
Nessa altura morávamos naquela que ficou para a história como a Casa Azul: uma vivenda pintada com um azul piscina tão fascinante que numa ocasião em que fui de táxi para casa e dei a referência ao taxista, o cruzamento que ficava diante da casa, ele disse saber onde era, ficava mesmo ao pé daquela casa azul, horrível. Pelo caminho ainda dissertou sobre o que levaria as pessoas a escolher cores como aquela, e pensei o que me responderia ele se lhe desse o número de telefone do meu sogro para que perguntasse…
A Casa Azul era enorme: nós morávamos no rés-do-chão e os meus sogros e cunhada no andar de cima. Tinha um enorme quintal nas traseiras e uma garagem onde cabiam quatro carros. Na frente, o metro quadrado de terra com umas tímidas plantas tinha o nome pomposo de Jardim.
Quando chegámos já o vidro da janela por onde os meliantes entraram estava substituído, tarefa a que o meu sogro se entregou na manhã seguinte ao assalto.
Os assaltantes eram três, pularam o muro, dirigiram-se às traseiras, partiram o estore e o vidro e entraram em casa. Primeira tarefa: abrir as janelas todas, à excepção de uma que dava para a vivenda do lado esquerdo, um lar de idosos. Todas as outras, num total de seis janelas, foram escancaradas. Mesmo as que davam para o lado oposto ao lar, outra casa com características semelhantes, mas desabitada pois estava a sofrer obras profundas.
Como é que o meu sogro sabia que eram três? Alguém os viu?
Acontece que a casa do lado estava desabitada, de facto, mas não a garagem… Então o que aconteceu?
Os nossos vizinhos estavam não só a remodelar a mansão, mas também a fazer a bela da piscina. O quintal, não, eles tinham jardim, quintal tínhamos nós, o jardim estava cheio de máquinas e o homem lá achou por bem contratar alguém para ficar de olho nelas. Esse olheiro dormia na garagem, coisa que ninguém sabia.
Naquela noite acordou com vidros a partirem-se e foi espreitar sorrateiro. Viu logo os nossos belos cortinados da sala a quererem fugir com o vento pela janela de vidros em cacos e percebeu que a casa estava a ser assaltada. Viu as outras janelas a serem abertas, enquanto se manteve em silêncio. Ficou a pensar que tinha que fazer alguma coisa, mas o quê? E se o tipo fosse violento? Não pensou em usar o telemóvel pois, como já se viu, ainda não tinham sido inventados… pensou, pensou, pensou, até que teve uma ideia, e boa, diga-se de passagem. Se ele não via o ladrão, ou ladrões, era muito provável que eles também não o vissem. Foi buscar as chaves do seu próprio carro, arriscou-se a sair da garagem, encostou-se ao muro comum às duas casas e avançou agachado rente ao muro até ao portão, que abriu com mil cuidados. Chegou ao carro e começou a abaná-lo com força. Foram precisas três abanadelas para o alarme começar a tocar.
Deixou-se ficar escondido pelo carro e foi aí que viu três homens vestidos de negro da cabeça aos pés a saírem por três janelas diferentes. Dois deles lavavam coisas nas mãos. Fugiram a pé. O homem meteu-se no carro e foi avisar a polícia. Estavam os meus sogros a entrar com o carro na garagem quando chegaram os agentes acompanhados do homem. Ainda nem tinham dado conta do que acontecera.
Lá entraram todos, o homem a penalizar-se pelo medo e pela idade que o impediram de correr atrás deles.
O pé de cabra com que entraram ficou na sala. Começou aí a sucessão de coisas estranhas que fez com que chamassem a Judiciária: os candeeiros da sala eram aquilo a que se chama plafonds, e estavam cuidadosamente colocados nos sofás.
Em cima da mesa do escritório estavam lado a lado, com minúcia de distância entre eles: livros de cheques, uma caixa com fios e brincos de ouro e aquelas pulseiras de Lembrança da Madrinha que ambos guardávamos, entre outras quinquilharias e um pote cheio de moedas que eu guardava como mealheiro. Não faltava nada. Duas das caixas dos estores estavam abertas, mostrando toneladas de pó e cotão. 
A casa de banho tinha o autoclismo dentro da parede, mas ainda tinham retirado a maçaneta do dito, mostrando o buraco na parede. Mas a coisa mais esquisita eram as fotografias de casamentos e baptizados, por assim dizer, espalhadas no chão do escritório e os álbuns fotográficos em cima das cadeiras. Que raio era aquilo?
Lá demos volta à casa e vi que faltavam algumas das minhas malas, das que costumava usar no Inverno, assim como as que costumava usar em casamentos e baptizados, e que estavam guardadas dentro dum armário, nada mais. As malas que usava no Verão, penduradas num cabide à entrada da porta, estavam todas no seu lugar.
Enquanto deixávamos a estranheza tomar cada vez mais conta de nós e nos perguntávamos repetidamente, mas que raio…?, lá fomos à polícia dar conta das malas roubadas e o que eles tinham para nos dizer parecia um filme: aparentemente tinha havido um engano e os ladrões assaltaram a casa errada.
Quiseram saber se tínhamos alguma jóia especial. Se a pergunta tivesse sido colocada aos meus pais, tenho a certeza que a resposta do meu pai seria que a única jóia da vida dele era a minha mãe. Nós respondemos ambos que não. Então explicaram-nos que tudo indicava que os assaltantes procuravam uma determinada jóia, uma peça valiosa daquelas que não se guarda no guarda-jóias, mas antes se esconde bem escondida, por exemplo nos apliques dos candeeiros, nos autoclismos ou em qualquer outro local de difícil acesso, mas que podem ser inúmeros pois, por norma, estamos a falar de coisas pequenas, um anel, um pregador ou algo do género.
A coisa tinha sido estudada pelos profissionais do roubo: sabiam que estávamos de férias; sabiam a que horas chegavam os meus sogros; sabiam que a casa da esquerda estava habitada – o lar – por isso não abriram a janela desse lado; abriram todas as outras janelas para poderem ter pontos de fuga imediatos em caso de necessidade; apenas não sabiam que dormia alguém na garagem do lado…
As gavetas não estavam reviradas pois o tipo de coisa que procuravam não se esconde em gavetas; levaram as malas pois não tendo encontrado o que procuravam, era provável que estivesse guardado numa delas, principalmente em duas com características de serem usadas apenas em dias especiais.
As fotografias espalhadas no chão do escritório ajudavam à tese: em que ocasiões se usam jóias? Nas festas. Não tendo encontrado o que procuravam, deram uma vista de olhos nas fotografias procurando ver a dita jóia. A meio de todas estas tarefas o homem que guardava a maquinaria da casa do lado pô-los em fuga.
Semanas mais tarde telefonaram-me da escola de línguas onde andava a ter aulas de alemão: alguém os contactara dizendo ter encontrado umas malas numa pedreira a poucos quilómetros da zona onde morava. Dentro duma delas estava o cartão da escola com o meu nome. O senhor que as encontrara deixara o seu telefone para que eu lhe ligasse. Assim fiz e encontrei-me com o homem que disse andar a passear o cão quando deu com as malas. Estranhou estarem todas em bom estado e serem várias. Vasculho-as e encontrou aquele contacto. Foi assim que recuperei a única coisa que os ladrões levaram.
Quando o meu filho era pequeno contei-lhe a história do assalto. A parte melhor da narrativa foi a observação dele:
- Então eles não chegaram a encontrar a jóia! Onde é que vocês a tinham escondida? Mostra-ma!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A margem de Churchill

Ouvi falar da edição da Texto de Memórias da II Guerra Mundial, de Churchill. Vou comprar, pensei.
Chegou hoje um exemplar à Biblioteca, que abri cobiçosa. A primeira impressão, aberto o livro ao acaso, foi de faltar ali qualquer coisa… num segundo relance, percebi o que era: o livro não tem margens! A escassa meia dúzia de milímetros foi opção? Financeira? Estética não foi com certeza… Nem um centímetro de margem? Nem um??
O livro é obra para interessados que pagariam o excesso de certeza; no meu caso, a compra vai ser declinada.
A opção da gramagem do papel é aceitável face às 1071 páginas do livro, mas as margens? Ao segurarmos o livro temos sempre várias impressões digitais em cima da mancha gráfica que enche a página e faz o livro parecer os antigos acetatos, escritos de cima abaixo, sem qualquer noção de espaço, de comunicação, de apresentação, ou aquelas fotocópias mal tiradas em que as linhas de baixo são comidas pela fotocopiadora ou, em linguagem honesta, pela falta de jeito de quem tira fotocópias.
As margens nos livros servem para muito mais que centrar as letras, por exemplo, para não dar a sensação, na leitura, que caímos da página abaixo, que se transforma numa quase dúvida: faltará ali texto? Isto para não falar das imprescindíveis anotações.
Por outro lado, Denis Kelly, aparece na Nota (de introdução) como tendo feito o resumo de várias obras de Churchill, que deram origem ao presente volume. É pois o Editor Literário. O facto de não se mencionar na ficha técnica é esquecer o trabalho importantíssimo desta figura.
Denis Kelly foi assistente literário de Churchill nas suas memórias de guerra e antes tinha integrado a equipa do político como arquivista.
Surpreende-me o facto de não constar como co-autor deste livro em concreto, ou Editor Literário, aquela personagem que escolhe, que selecciona, que sugere, que decide o que eu, leitora, vou ler.
As palavras do maior líder da guerra, o resumo de The Second World War, no original, fica assim deficiente no parentesco e na metragem do enquadramento do texto. Até Churchill daria mais margem ao inimigo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Os meus estragos

Depois de avariar um estore, um microondas, meia dúzia de biberões e um esterilizador na casa da minha irmã, abalancei-me para um curto-circuito na minha própria casa, seguido duma avaria da panela eléctrica! Estou em grande!
Claro que vizinhos, família e amigos andam com pavor da minha pessoa e só falta acenderem e apagarem as luzes à minha passagem para me poupar a esse incómodo
Nunca fui de partir pratos ou copos, de encalhar teimosamente nos móveis como a minha prima N., ou de avariar coisas, mas parece que estou a mudar.
Aguardo que a minha pele se esverdeie, qual Hulk, ou talvez seja melhor como a Fiona, e quando chego a casa descalço-me e conto os dedos dos pés que, por ora, ainda não se tornaram como os da Dama de Herculano, mas é só esperar…
Será azar? Temo vir a ser o bode expiatório do concelho caso se verifiquem apagões, inundações ou vendavais, engarrafamentos, quedas de granizo ou nevões.
Ando mais devagar, verifico as ligações antes de carregar nos botões e, embora não sendo fatalista, mas estou à espera da próxima, que será dada nas notícias com a abertura do costume, notícia de última hora, onde se contará a história duma mulher que, de repente, deu em versão moderna de Midas, mas ao contrário: tudo o que toca transforma em despesa…

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Honestidade

Vou com O Complexo de Portnay nas mãos e nos olhos, alheia aos senta e levanta do metro, aos desculpe que se seguem aos empurrões. Vou alheia mas sei que existem.
Às tantas entra uma mãe com duas crianças e duas pessoas levantam-se, uma dá lugar à mãe com um bebé ao colo e a outra dá lugar ao garoto, quatro ou cinco anos de esperteza concentrada.
Porém, os lugares não são lado a lado. A mãe, do lado de lá de rabos encasacados, atira ao miúdo:
- Então, o que é que se diz?
Quando se pensava que o garoto levantasse a cara e agradecesse à senhora que se levantara para lhe dar o lugar, ele vira-se para a mulher sorridente a seu lado e diz:
- Podes levantar-te para a minha mãe se sentar ao pé de mim?
O brilho da resposta mostra uma honestidade que tende a perder-se com a idade. Uma pena.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Os meus sobrinhos, a Islândia e a Ética

Regressei. Em termos profissionais estive de férias. Na verdade estive a trabalhar, assumindo o meu papel de Pato Donald, tomando conta dos meus sobrinhos, que ai vão três.
Neste curto espaço de tempo consegui dar cabo do microondas, queimar os biberões (que plural tão feio…), estragar o estore da sala e, parecendo não ficar contente, cheguei a casa e provoquei um curto-circuito, razão pela qual tenho os candeeiros de pé alto da sala espalhados pela cozinha e casa de banho.
Foi uma semana desastrosa, nesse aspecto. Felizmente outros houve em que as coisas correram muito bem: o caminho até Évora de mão dada com a minha esguia sobrinha; os jogos de pólo aquático do meu sobrinho; os mimos no sofá da sala; mas acima de tudo, os risos e as gargalhadas. O mais novo ainda não se manifesta mas não é por falta de incentivo nosso, é simplesmente por ainda nem ter um mês.
As dinâmicas nas terras de interior são completamente diferentes das da cidade e eu que faço o meu filho com 17 anos andar acompanhado, vejo que em Coruche qualquer vizinho trará os gaiatos da escola e com um telefonema arranjam-se várias soluções para colmatar qualquer falha de horários: a avó de um amigo leva-os, o pai de outro trá-los, uma mãe leva-os à natação, alguém os leva a casa depois dos escuteiros. Para além disto, um café e um pastel de nata custam 75 cêntimos… setenta e cinco cêntimos, café e pastel, os dois juntos!
Com tamanha crise ando a pensar emigrar e pedi ajuda ao meu sobrinho que abriu um determinado livro com uma breve descrição de todos os países para escolhermos um. Não podia ser muito longe, mas tinha que nos dar boas perspectivas de vida. Escolhemos a Islândia. No dia seguinte, como nos filmes onde os sonhos se realizam enquanto dormimos, acordámos na Islândia! Percebemos isso quando saímos de casa em direcção à natação, eu encasacada como se a piscina ficasse num glaciar. Os outros adultos, embora habituados, mas vestidos de bonecos de neve e os miúdos, que nunca se queixam, a correrem com cachecóis pendurados. Combinámos riscar a Islândia e escolher outro sítio, não que eu não aguente aqueles gelos, mas como sou uma rapariga elegante, os casacos em cima de casacos fazem de mim um fardo de palha daqueles redondos e se calhar a cair dou em rebolar e só me apanham a meio do Atlântico Norte…
Além disso intensificámos a nossa pesquisa e descobrimos que foi em 1939 que se registou a mais alta temperatura do ar – 30,5º - o que nos deu logo vontade de rir, mais ainda quando lemos que os invernos são amenos! Achávamos nós que sabíamos o que quer dizer ‘ameno’…
Posta de lado a Islândia não chegámos a qualquer outra conclusão embora o meu sobrinho me tenha dado outra sugestão: Coruche…
Geografias à parte, sexta-feira fui dar uma conferência sobre ‘Ética na Gestão’ e o meu sobrinho acompanhou-me. Éramos duas pessoas e eu fui a segunda a intervir. Enquanto a primeira falou o gaiato sentado ao meu lado apanhou-lhe os tiques de linguagem e expressão corporal e tive que o mandar calar duas vezes, no meio de risos contidos, tal era a precisão das suas observações sussurradas ao meu ouvido. No final disse-lhe que tinha sido pouco ético da sua parte fazer aquilo e ele disse-me que talvez, mas que tinha sido muito divertido…

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O Último Bandeirante

Gosto muito de romance histórico, e este tem a particularidade de ter uma boa construção de personagens, elemento essencial para qualquer narrativa, mas ainda mais neste tipo de literatura onde, com frequência, há autores que se abrigam nas descrições da época fragilizando as personagens, conferindo-lhes um estatuto de fantasma, tal a fragilidade com que nos aparecem.
Não me canso de elogiar um livro que me convença através deste aspecto: quando lemos e ‘reconhecemos’ as acções ou os pensamentos, é como se conhecêssemos aquela pessoa. Isto é trabalho do Autor, enquanto pai, escultor que não despreza mínimos detalhes que ajudam a fazer o puzzle das personagens.
Por outro lado, o Autor não toma posição a favor de bandeirantes ou missionários: dá-nos a dimensão dos factos históricos, riquíssimos, como quem mostra uma fotografia. Dá-nos a informação mas sem opiniões, sem julgamentos, nem o poderia fazer sem insultar a História.
Nunca escrevi nada que roçasse sequer o romance histórico mas até acredito haver uma certa tentação para, no mínimo, se usarem adjectivos que acusem o nosso ponto de vista, palavras traiçoeiras que façam os outros perceber que concordamos com isto mas não com aquilo ou, pior ainda, muito pior, quando se analisam as situações e se fazem reflexões à luz dos nossos dias, em total disparate.
‘O Último Bandeirante’ não tem disparates, antes pelo contrário: narra o que aconteceu, como cronista, usando a imaginação mas sem desmerecer na História, sem a querer alterar.
Introduz-nos o mundo meio conquistado meio por conquistar do imenso continente sul-americano, com descrições da selva e das Missões, dos escravos, da dinâmica das bandeiras e lembra-nos a maior bandeira de sempre, uma epopeia de cerca de 12 mil quilómetros no meio dum inferno, mas realizada, empreendida por muitos e concluída apenas por meia dúzia, por um punhado de gente que regressou obrigatoriamente diferente, como o Autor nos dá conta.
A descrição do assalto à Missão chega a ser bela, por incrível que pareça, apesar dos horrores enunciados, por verídica nos parecer.
‘O Último Bandeirante’ é um livro extremamente visual: das paisagens, dos índios, dos rios, dos mapas, mas também das personagens, da História, do passado, um passado que se fez presente e que está presente nos nomes das províncias, dos cursos de água, dos animais ou das frutas.

Confesso que sou desconfiada de jornalistas-escritores: a minha primeira impressão vai para um interesse comercial das Editoras em publicarem ‘famosos’, o que se espera vir a ser uma mais-valia nas vendas. É o fenómeno, ‘figura pública mediática ou mediatizada por qualquer razão que nada contribui para a tornar escritora, mas que mesmo assim atiça a curiosidade do público e isso chega’. Neste contexto, o jogador de futebol, leva a palma de ouro.
Por outro lado, custa-me a interiorizar, custa-me muito…, que certos jornalistas tenham escrito certas coisas e é com imensa facilidade que a minha imaginação vê outros a escreverem por eles, mas a minha imaginação é muito fantasiosa… Desta vez não foi o caso.
O livro é do jornalista Pedro Pinto, editado pela Esfera dos Livros, tem badanas, e na capa mostra uma imagem do quadro A primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Saudoso primo

Quando oferecemos o computador aos meus pais criámos-lhes uma conta de e-mail e uma página no Facebook, que se têm mostrado bons aliados para alguns momentos de solidão, matança de curiosidades várias e grandes navegações nos mares virtuais.
Face a algumas dificuldades no manobramento de velas e burrajonas, com cabos e nós, os netos, sobrinhos e filhas dão uma mãozinha de quando em vez, com actualizações, limpezas de spam, varrimento de lixos e eteceteras.
A propósito do envio duma mensagem para as Finanças ontem limpei a caixa do correio e vi que pelo meio da ondulação estava uma mensagem cujo assunto mencionava ‘Saudoso primo’.
Um parente afastado identificava-se nomeando pai e mãe, não fosse a memória dos meus pais tê-lo apagado, e escrevia-lhes dizendo ter dificuldades em os adicionar, e perguntava se não tinham outro e-mail.
Comecei a responder, alinhando também a árvore genealógica para que confirmasse a veracidade da informação e a meio lembrei-me que os podia adicionar nas redes sociais, fazendo uma surpresa aos dois.
Tirando alguns tios e primos directos não sou grande especialista na família e tenho apenas uns ecos de nomes que andam soltos, um bocado aos trambolhões na minha lembrança, nem sei se chegam a entrar na memória, mas tinha uma vaga ideia deste primo. Porém, se lhes recordo os nomes, não faço a mais pequena ideia das ocupações ou das profissões. Quando abri a página percebi que o senhor é médico, mais propriamente ginecologista: só assim se explica a multiplicação de imagens de partes íntimas femininas no mural do ‘saudoso primo’. Sempre pensei que só existisse um médico na família, que mesmo já tendo morrido continua bem vivo em nós, e era ortopedista. Ginecologista, nunca tinha ouvido falar.
Depois lembrei-me que o ‘saudoso primo’ talvez trabalhe num jornal e faça a composição das páginas do lazer, que nos últimos anos são uma versão dos livros aos quadradinhos, a cores e com fotografias só de mulheres, um bocado a anti-matéria de certos filmes de guerra onde só entram homens, e, quem sabe, estava a trabalhar na rede social…
Pensei, pensei, pensei e acabei por não o adicionar pela simples razão que o meu pai trabalhou muitos anos num diário lisboeta e ainda deve estar cansado daquela dinâmica que, sabe-se lá, confrontado assim de repente com as novas formas de composição, ainda lhe desse uma filoxera que lhe pusesse o coração em jeitos de motor quitado.
Comentei o assunto com a minha irmã que disse imediatamente lembrar-se da personagem, mais, nunca a esqueceria! Recordava uma tarde de sábado, há muitos anos, quando tinha acompanhado os meus pais de visita ao ‘saudoso primo’ que tinha sido operado aos rins. Esperava-os um lanche, como competia, com toalha branca, café, chá e bolos. No meio da mesa, em jeito de centro floral estava o frasco com as pedras que lhe tinham tirado dos rins e que foram o centro da conversa desde que chegaram até que abalaram. Como se isso não chegasse, as pedras foram retiradas do líquido e passadas de mão em mão para avaliação de peso, textura, forma e demais características. Depois fizeram-se revisões da matéria a pedido do ‘saudoso primo’ e as pedras, quais Sivalingas do Indiana Jones, voltaram a dar nova volta de apreciação pelos dedos dos convidados.
Se um lanche pressupõe uma lição e respectivo exame de Petrologia, uma ligação na rede social pode significar sei lá o quê… Olha, ficamos assim, eles se quiserem que se adicionem depois um ao outro!

Pão de cereais

Há tempos enunciei aqui os mil e um pedidos que se podem fazer ao balcão e que envolvem café, que as pessoas e as modas vão alterando para, por vezes, apenas parecer café.
Com o pão passa-se a mesma coisa mas elevado a grãos de areia do deserto do Saara.
Quando morávamos nas Mercês e eu ia à padaria da D. Adelaide tinha duas opções: pão de Mafra e carcaças; ocasionalmente havia pão alentejano, que nós consumíamos muito porque o trazíamos do Sobral da Adiça cada vez que lá íamos. Hoje há catálogos de pão que competem com os catálogos das tintas!
Saloio e alentejano, de Mafra e de água, bolas e bicos, vianas e vianinhas, carcaças e mafrinhas, integrais e com sementes, com passas e de mistura, ázimo e de forma, de centeio, milho e trigo e ficam a faltar muitos.
Lembro-me há uns anos, durante um fim-de-semana no Algarve com a minha irmã e cunhado, este comprou um pão alemão, segundo ele, muito bom! A estadia era de curta duração e comíamos sempre na rua, ainda assim abastecemo-nos para lanches a meio da noite durante jogatanas de cartas que ainda hoje adoramos. Quando demos a primeira dentada no pão alemão, literalmente, cuspimos os três em simultâneo, a massa do pão, tão intragável e horrível aquilo era.
Uma coisa que me engalinha é perguntarem-me se quero pão de cereais. Respondo logo com outra pergunta:
- Os outros são de plástico, verdade?
As pessoas olham-me durante alguns segundos sem saber o que responder e depois continuam dizendo que não, não senhora, e seguem enumerando os tipos de pão que têm. Lá sorrio e acrescento que espero que todo o pão seja de cereais. Normalmente a pergunta quer designar pão com sementes e eu, picuinhas, sei mas insisto.
Tenho um amigo que tem uma máquina de fazer de fazer pão: deita-se e o ‘forno’ vai trabalhando de noite de modo que tem pão quente assim que se levanta. Nunca o provei mas conheço quem adorasse ter uma maquineta destas.
Não faço quilómetros para ir a um restaurante comer isto ou aquilo, não me lembro do nome de terras ou locais onde estive e onde comi bem, mas sei onde comprar pão que só de olhar para ele até nos lambemos e assim que começamos a tirar-lhe farrapos não se consegue parar. E é pão de cereais…

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O dedo

Estive de serviço no fim-de-semana. Quase podia dizer que tinha posto a boina e ficado ao serviço ao Zézinho, do Huguinho e do Luísinho: os três juntos são os sobrinhos mais famosos do mundo e os meus são os melhores.
Estive de serviço também à minha irmã e uma das coisas que lhe fiz foi cortar-lhe as unhas. Foram limadas para não correr risco de arranhar o bebé e chegada aos pés deparei-me com a visão dos meus actos de criança: o dedo grande do pé direito foi passado numa trituradora, refeito à mão e voltado a colocar como peça de lego partida e colada. Resultado, o dedo é esguio e longo, a unha é uma massa preta que cai a cada dois anos, mais ou menos.
Numa bela tarde de Verão, quando as crianças ainda brincavam na rua sem a permanente supervisão dos pais, andava eu de bicicleta a subir e a descer a rua. A minha irmã ainda não tinha feito cinco anos e ia com a nossa mãe para o trabalho. Pontualmente eu esperava-as na estação do comboio, na ponta da rua. Naquela tarde, e como de costume, dei-lhe boleia na parte de trás da bicicleta. Ela usava umas sandálias azuis, abertas, como competia naquela altura do ano. A rua descia em direcção à nossa casa e eu não vi quando ela meteu os frágeis dedos nos raios da bicicleta que nem precisou de fazer força para lhe trucidar o dedo e magoar os outros. Os gritos dela encheram a rua, o meu pavor alastrou-se à lua que já alumiava o fim da tarde.
Alguém chamou a minha mãe que já subia as escadas em direcção ao segundo esquerdo onde morávamos e que ficou em estado de choque. Sem saber exactamente o que fazia, apanhei cada bocadinho de dedo dos raios da bicicleta e segui os vizinhos que levavam a garota em braços ao enfermeiro do bairro, o Sr. Camilo, seguidos pela minha mãe, meia zonza.
O enfermeiro mandou chamar uma ambulância dizendo que aquilo não era para ele, a minha mãe deu o número do telefone do trabalho do meu pai, pedindo para os vizinhos o avisarem e seguimos as três para o hospital, eu com o estrago nas mãos, lavada em lágrimas.
A garota gritava a plenos pulmões e no meio dos gritos fazia um pedido que me punha a chorar ainda mais e me deixava a tremer:
- Mãe… não te zangues com a mana…
Repetiu e repetiu esta frase, em palavras mal alinhavadas e intercaladas com soluços mas ditas de tal forma que ainda as conservo vivas na memória.
Quando chegámos ao hospital de S. José, assim que a porta da ambulância se abriu, vi o meu pai a espreitar, de olhos esbugalhados.
Entrámos no hospital, ela foi vista imediatamente e o médico disse ao meu pai que como eu tinha levado o que restava do dedo, iam tentar compô-lo, mas sendo ela muito nova, ele não aconselhava que se anestesiasse, porém, a decisão final era dos pais. O que queriam fazer?
O meu pai disse-lhe que fizesse como se ela fosse sua filha e o médico avisou, como se fosse preciso, que não ia ser fácil e que precisava da ajuda dele.
Entraram na sala de operações com ela segura por uma enfermeira e pelo pai. Os gritos dela ouviam-se no corredor, por favor pai, paizinho, por favor, não, não, não…
A dor era lancinante dentro e fora da sala. E quando pensei que não podia ser maior tomou proporções épicas, só comparáveis ao momento em que soube que ela teve um acidente, há quatro anos, queimada com ácido sulfúrico.
- Mana… mana ajuda… mana… ajuda… não, não… mana…
O pedido de socorro vinha em maiúsculas, como balas certeiras que me atingiam o coração. A minha mãe chorava abraçada a mim e eu chorava abraçada a ela. Passou uma eternidade que, contada posteriormente, pouco passou da meia hora. Ninguém diria, nem mesmo os desconhecidos que aguardavam ao nosso lado no corredor.
Quando saiu vinha esgotada. Rouca e alienada, como se não reconhecesse chão e céu. Ao colo do meu pai recebeu os nossos beijos e abraços e voltou a pedir que não se zangassem comigo.
Começou aí uma epopeia que durará a vida inteira: primeiro foi o retirar dos pontos, eu com dois gelados na mão a meter-lhos na boca para lhe adoçar o momento. Depois a cena dos gelados iria repetir-se sempre que era preciso cortar a unha, mesmo recorrendo a anestesia. Agora cai de vez em quando e ninguém lhe toca. Nunca mais usou sandálias e chinelos de enfiar o dedo só em casa ou na piscina.
É uma das cicatrizes que tem, uma cicatriz que não se vê ao contrário das outras, na cara e nos braços. Foi a caneta da vida que se desviou do curso normal e ali deixou um risco. Não mais se apagará.

O Ouro dos Corcundas

O Ouro dos Corcundas é escrito a ouro em barra, daquele que sabemos existir mas raramente se vê e nunca se usa; no entanto, vive.
A estória mergulha-nos na história com palavras novas-velhas, próprias, certas, fidedignas. Pedristas e Miguelistas agridem-se à pedrada e enquanto isso as pessoas normais continuam com as suas vidas.
Paulo Moreiras mostra-nos como as pessoas normais se podem transformar em heróis e leva-nos de observadores nas andanças de Vicente Maria como se caminhássemos a seu lado, magia feita através da linguagem que optou por usar, impecável, rica, dinâmica e viva, muito viva, provando que o passado também está vivo, de boa saúde e recomenda-se.
Nada foi deixado ao caso e a bibliografia final é prova disso: ali se buscou verdade para a descrição de roupas e trajes, dizeres, modas e canções, descrição de armas e aldeias, transformando a leitura numa lição de história da vida pública e privada, onde os pormenores são cuidadosamente tratados.
O linguajar utilizado é uma música solene de tal forma que nem dei atenção à composição da travessa com rodelas de morcela e queijo partido aos quadrados, cuja forma me trás algumas dúvidas, por actual.
Concordo que a primeira tentação é anunciar Vicente Maria Sarmento como o protagonista do livro, mas assim que se começa a ler ficamos indecisos se esse lugar não pertence à linguagem, à forma de expressão, que cria imagens impossíveis de criar se o palavreado fosse outro.
A ler e reler, a oferecer, a emprestar – que me desculpe o Autor por esta última forma.
O Ouro dos Corcundas é da Casa das Letras, que lhe escolheu capa a condizer, magnífica, e nos brindou com badanas.

Da vida dos livros

Que os livros são entidades vivas já o sabia; levamo-los debaixo do braço mas são eles que nos transportam; apertamo-los mas são eles que nos aquecem; abrigam personagens mais reais que certas pessoas; contêm histórias que adorávamos ter vivido; fazem-nos rir, chorar e pensar; são a cama dos sonhos.
Já pensei fazer um gráfico, uma ilustração dos ganhos obtidos com os livros e a leitura, mas os riscos sobrepõem-se, as setas misturam-se, tudo se encavalita, de tão denso ser o resultado.
Descobri - obrigada Âncoras – imagens de livros cuja riqueza é filha da eloquência com o belo, cruzada de sentidos e que pode ser vista aqui.
Um livro nunca está gasto, obsoleto, velho ou inútil. É sempre possível uma nova abordagem, novas visões, outras histórias, novas e renovadas leituras.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Ai, que calor...

Sento-me já em voo picado para o livro que ando a ler. Como já comentei aqui, o metro fica cheio na primeira estação, a suburbaníssima Amadora-Este. Apesar do mergulho no livro mantenho um periscópio involuntário através dos ouvidos. À minha frente sentam-se duas mulheres, conhecidas, o que é mau sinal: sei que irão a conversar e me vão distrair. Não vou conseguir visualizar as imagens que o autor preparou para mim através da escrita. Bolas! Bem, concentremo-nos!
Claro que elas vão a conversar e às tantas a antena apanha a seguinte frase, em sussurro, apenas murmurada:
- Havíamos de perguntar a esta senhora que meias é que usa, nem se nota que tem meias.
Sei que o comentário é para mim. Levanto os olhos e deixo Vicente da Bufarda parado diante de sua majestade, El Rei de Portugal e sorrio para as senhoras que me olham como se fossem crianças apanhadas a fazer uma traquinice:
- Não se notam porque eu não uso meias.
- Ah...
- Então é por isso... mas como é morena... parece que tem...
- ... mas ao mesmo tempo parecem invisíveis...
- Pois... o segredo é não se usarem meias, irmos à praia o ano inteiro, andarmos sempre de calções, fazermos caminhadas e, de preferência, caminharmos dentro de água. Desta forma conseguimos umas meias invejáveis e, garanto, perdemos o frio.
Enquanto fazia este discurso, elas abanavam a cabeça em sinal de concordância e apontaram para os meus braços tapados por aquilo que se chama manga curta e disseram-se incapazes de andar assim no inverno, com tanto frio. Esclareci ainda que não usava meias com saias nem com botas, nem com calças, que era uma questão de hábito. Sorrimo-nos e eu voltei à Taberna do Pasquino e a Vicente da Bufarda e a Tomásia e ao enredo, mas principalmente, à forma do magnífico livro que anda nas minhas mãos.

domingo, 20 de novembro de 2011

Estamos à tua espera, pá!

Na próxima quarta-feira a minha família terá mais um elemento: será um Sagitário. Nós somos uma família diferente e não dizemos não a qualquer elemento. Se ele um dia decidir abandonar-nos, isso é outra história. Por agora fica connosco e já tem nome: Xavier. É um bom nome para um Sagitário. O irmão mais velho, M., com quem hoje apalavrei as próximas férias com ele de olhos esbugalhados, também é um bicharoco raro. Esta semana encontrou uma moeda de cinco escudos e pediu ao pai se a podia levar para a escola uma vez que estavam a dar os povos antigos, sic. Quando soube da história senti-me uma matrona romana...
A irmã, P., que deixará em poucas horas o estatuto ingrato de filha mais nova, está radiante; afinal, uma miúda tão sabida ser a bebé da família, não condiz com ela.
Enquanto gritávamos pelo Duarte durante o jogo, ele estava sentado ao meu lado e apertava-me volta e meia, numa manifestação de carinho e saudade que me deixa sempre babada. Não podia sonhar sobrinho melhor.
O Sagitário que está quase a passar a fronteira para o país da nossa família, não sabe que apesar de muitas divergências, somos os mais puros dos ciganos, dos mafiosos: a família é tudo e ele não sabe, mas vai sentir.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Uma questão de organização

De entre as várias tarefas que me estão confiadas está a organização de eventos científicos, que também se pode traduzir como a arte de tocar vários burros e conseguir que nenhum fique para trás: definição do programa, escolha dos conferencistas, convites, marcação de viagens, hotéis, guias, resumos e livros de actas, pastas, identificadores, traduções simultâneas, publicidades e cartazes, imprensa, cafés, almoços e jantares, menus para vegetarianos, pratos especiais para quem é alérgico a isto ou aquilo, transportes, questionários de avaliação, aspirinas para dores súbitas e mais um sem fim de aspectos que, quanto mais pequenos, mais diferença fazem.
Para isso é preciso uma equipa que, felizmente, existe e sorri. Os preparativos vêm sendo afinados desde há meses e aproxima-se agora a hora agá. Como sempre, estou nervosa: este é o maior evento que já organizei; mas como estamos bem sintonizados, acredito, como sempre também, que vai correr bem. Confio na equipa e isso é o fundamental. Sei que sou exigente, picuinhas e almejo uma perfeição a que nunca se chega, logo, nunca me dou por satisfeita. Sei que por estes dias fico irascível e fulminante, tentando antecipar qualquer coisa que possa correr menos bem e pondo em prática planos bês e cês, construindo redes sobre redes como se fosse uma trapezista com medo de cair.
Numa ocasião, depois dum outro evento, fui convidada a organizar uma visita dum grupo de arquitectos alemães a Portugal. Espantada com o convite que me parecia cair do espaço sideral, quis saber como tinham chegado até mim. A indicação fora dada por um dos participantes no colóquio anterior, com a informação que eu trabalhava à alemã. Aceitei o elogio e lamentei não poder ajudá-los.
Embora seja uma incapaz para arrumar a minha secretária, poço sem fundo e que na semana passada deu origem a um comentário sobre o facto de estar entrincheirada, dado o volume de papéis diante de mim, sei que a organização deste tipo de actividade flui nas minhas mãos.
O que mais aprecio nestas andanças é a diversidade de aprendizagens: cada evento é sobre um assunto diverso e acabo sempre por ficar a falar línguas diferentes, agora arquitectura, depois relações internacionais, história, ética, estratégia empresarial, o que for.
Há uns anos organizámos um evento internacional cujo jantar final coincidiu com o dia em que se acenderia a árvore de Natal do Terreiro do Paço. O jantar foi no Martinho da Arcada e, apesar dos milhares de pessoas que estavam na praça, os nossos convidados viram as luzes começarem a brilhar no silêncio que antecedeu a iluminação e no barulho consequente do público. Um deles, com lágrimas nos olhos, dizia que era tudo tão perfeito que não se admirava que tivéssemos encomendado a árvore só para eles. E eu perguntava-lhe se ele tinha dúvidas!
O melhor disto tudo é a correspondência que se mantém posteriormente com as pessoas, informal e indisciplinada, as visitas mútuas e a alegria do reencontro.
Espero que este não falhe a regra.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Conhecer o mundo

Venerando viajantes e desdenhando turistas fico sempre de olho semicerrado quando ouço alguém dizer que conhece muito bem determinado sítio porque numa ocasião lá passou.
Quando a coisa se compõe para a conversa digo que invejo quem tem a sorte de conhecer muito bem seja que local for, pois eu, e o defeito será com certeza meu, nunca conheço bem nada, pois cada nova visita é uma descoberta nunca completamente assimilada.
Claro que sou esquisita aos olhos de quem conhece França através do relance que lhe permitiu poisar a vista na Torre Eiffel! Este síndroma verifica-se em todo o seu esplendor com o Brasil, onde um mergulho em Fortaleza tem poderes mágicos e dá conhecimentos sobre aquele imenso país!
Certos locais são muito caros, dizem-me, e justificam com a compra duma garrafa de água; não é preciso garimpar muito para se descobrir que a água foi comprada no hotel, hotel esse que alberga galáxias de estrelas que, mesmo falsas, brilham de tal forma que os clientes pensam ser verdadeiras e pagam, nem se dando ao trabalho de procurar um supermercado.
Noutras ocasiões fazem valer opiniões colhidas no tempo dos cruzados, ou por interpostas pessoas, amiúde um cunhado que viveu muitos anos na Suice ou na Alemanha, ou alicerçam-se numa reportagem que deu uma vez na televisão.
aqui falei dum casal que conhecemos em Marrocos, únicos e só possíveis de existir na vida real, como a Falha das Marianas ou qualquer outro erro da natureza, pois nenhum Spielberg teria imaginação para fazer nascer tais personagens, principalmente ela, cujas descrições da Tailândia me foram inesquecíveis, de tal foram que aqui as partilho.
A Tailândia tem imensos hotéis, todos enormes, com soberbas piscinas e empregados m a r a v i l h o s o s! À beira das soberbas piscinas dos enormes hotéis da Tailândia, os m a r a v i l h o s o s empregados dão massagens aos hóspedes! Não! Não são dessas… quer dizer, também devem dar, mas ali, à beira das piscinas são massagens normais.
A Tailândia também tem praias, ou melhor, a Tailândia em si, não sei se tem ou não alguma praia, mas os enormes hotéis têm de certeza! A água das praias é transparente e quente. O comer… bem, o comer… há i m e n s o, nos restaurantes dos hotéis e pode-se comer de tudo vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas!
Com uma descrição assim, e pensando agora no assunto, percebo o trauma que me ficou e, provavelmente, é por isso que nunca lá fui.
Depois há os executivos que conhecem a Europa de fio a pavio! Vão de manhã e regressam à noite ou no dia seguinte mas, mais uma vez, têm uma capacidade de ficar a conhecer as cidades onde aterram que escapa às minhas básicas competências, mas não os inibem de afirmar que conhecem bem Varsóvia ou Frankfurt, pois se ainda há semanas lá estiveram!, e sabem tudo o que há para saber acerca da cidade, por exemplo: em frente do hotel havia um enorme café que servia p’ra cima de cinquenta espécies de café; e a casa de chocolates em Bruxelas? Hein? Nunca se viu tanto chocolate junto… Como se chama? Não se lembram. Onde ficava? Na rua paralela ao hotel. O que comprou? Nada, no hotel davam amostras.
E o Sena? Os passeios que se dão por lá… e antes de ter tempo de perguntar pelos bouquinistes, já ouço que o único senão são os tipos que se espalham nas margens a vender livros velhos e papelada. E incrível como gente mais avançada que nós, os franceses!, deixam que aqueles sem-abrigo por ali andem a encurtar o espaço de quem quer passar! Aquilo é uma Feira da Ladra e é TODOS OS DIAS!
E as jóias da Rainha? Que coisa espantosa… já que foram ver a as jóias, tiveram que ir à Torre de Londres, e que tal? Não, não chegámos a ir, era para irmos, mas à última da hora o tipo que nos devia levar teve um atraso e ficámos no hotel, mas vimos um folheto com as coroas e aquilo tudo.
Engulo e pergunto porque não foram de metro. De metro? Nã… tínhamos pouco tempo, sabes, ainda nos perdíamos…
Nem perco tempo a dissertar sobre a maravilha que é perdermo-nos, o que se ganha em nos perdermos, o que ficamos a conhecer e a riqueza que trazemos para casa.
Raramente pergunto por Museus não vá a resposta enfurecer-me e eu nem sou muito amiga de museus, é mais ruas e pessoas e cheiros e sabores e sensações e empedrados e mercados e ventos e rugas e risos e estações e terminais de transportes.
Serve tudo isto para pedir que não me digam – digam a outras pessoas, há por aí tanta gente – que conhecem bem esta cidade ou aquela, pela simples razão que é uma enorme mentira.

Novos passageiros

Com o conforto, a que muitos estavam habituados, a passar férias em parte incerta é cada vez mais o número de pessoas que utiliza os transportes públicos. Dois minutos de atraso são suficientes para não se encontrar lugar no estacionamento e o metro, que outrora saia vazio da estação de Amadora-Este, agora vai cheio.
Nos primeiros anos que trabalhei em Almada, e morando no Algueirão, apanhava cinco meios de transportes para lá chegar e outros cinco para entrar em casa: camioneta de casa até aos comboios; comboio até ao Rossio, de onde saltava quase em andamento e em andamento entrava num autocarro que me deixava à porta do barco; navegava até Cacilhas onde apanhava nova camioneta para o centro de Almada. Apenas no regresso, quando não tinha pressa e o tempo estava bom, prescindia do autocarro entre os barcos e o Rossio. Hoje ando apenas de metro e ando muito bem, à excepção dos dias de greve, em que venho de carro e entro no trabalho às sete da manhã.
Uma coisa que me irrita solenemente é a facilidade e a forma com que as pessoas reclamam sem pensar por tudo e por nada. Um minuto de atraso adquire proporções épicas de desassossego em certos passageiros, põe-se na má vida as mães dos maquinistas, atiram-se impropérios sobre um jornal abandonado que as empregadas da limpeza, nesse dias umas poltronas, nem sequer apanharam… enfim, uma tristeza.
Os ‘novos’ passageiros, os que antes iam de carro e agora emparelham com a ralé, e que se notam pelos cremes que lhes cobrem as caras e pescoços, pelos perfumes que se instalam em carruagens inteiras, pelas bijutarias tão parecidas, mas tão mesmo, com peças originais, pela forma afectada como se sentam fazendo tudo para não tocar na plebe que toma lugar a seu lado, como torcem o nariz a qualquer um que se vista de modéstia, são os que mais se incomodam e quando vão em pé então, valha-me S. Cristovão! Então pagam e vão em pé? Olhe, viesse mais cedo, ou então mande a criada guardar-lhe o lugar…
A coisa anda má, mas para algumas pessoas a crise é o próprio inferno, até de metro têm de andar! Ao que uma pessoa se sujeita!

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Vivelete

O Cheiro dos Livros entra-me pelos olhos e vejo uma palavra a que a minha boca está desabituada, mas que mora na minha memória. Teodolito.
Nos idos do primeiro ano de faculdade na disciplina de Sociedades, Culturas e Civilizações Clássicas foi-nos proposto uma de duas hipóteses: ou fazer um trabalho escrito ou ir trabalhar para um campo arqueológico nas férias da Páscoa. Ui… que escolha difícil e pobres dos que não tinham autorização dos pais, sim porque isto passava-se na altura em que era preciso ter autorização dos pais para nos ausentarmos de casa. Sim… esta época existiu.
Lá fomos cantando e rindo para Castro Verde onde os Maias tinham um resort arqueológico. Explico-me: marido e mulher, ambos com o mesmo apelido, davam aulas na faculdade e a estadia dos alunos era organizada entre os dois, ou entre os três se contarmos o cão, Dragendorff, que fora buscar o nome a um arqueólogo famoso do qual nenhum de nós ouvira falar.
O cão era um enorme pastor alemão que permitia que a dupla estacionasse o jipe, um velho Land Rover, e o deixasse de janelas abertas com pastas e papéis e mais o que se lembrassem à mão de semear. Ninguém se atrevia sequer a espreitar se não queria levar com a fúria de Dragendorff, Drago para os amigos e Draguinho para os momentos de mimo com a dona e que nos punham sempre a rir, pois era como chamar Fifi a um general.
Há uns anos tinha passado a única novela que vi com agrado e que me deixava pena quando perdia episódios: o Bem-amado, momento alto da representação do magnífico Paulo Gracindo no inesquecível Odorico Paraguáçu, talvez a melhor composição de intérprete a que já assisti em televisão.
O prefeito Odorico tinha um sonho: inaugurar o cemitério de Sucupira. Legítimo, é claro, mas para isso tinha que morrer alguém e não havia meio, apesar de muitos esforços.
Ora a malta lá em Castro Verde deu com um cemitério romano que nos pôs a imaginação a funcionar e proclamámos o prof. Maia como Prefeito Odorico; um dos nossos colegas, que passava a vida com a cabeça no ar, ficou o Dirceu Borboleta, outra personagem da novela que andava com uma rede de borboletas na mão por aqueles campos. A plêiade de arqueólogos de Castro Verde contava ainda com um aspirante a jornalista que ficou a chamar-se Neco Pedreira como o jornalista da novela. Eu e outras duas éramos as irmãs Cazajeiras e cada um tinha o seu papel naquela novela da vida real que marcou para sempre aquelas duas semanas.
Todos os dias fazíamos o trajecto de Castro Verde até ao campo e regressávamos ao fim da tarde, deixando os materiais usados no campo, devidamente acondicionados. Menos o teodolito que andava a passear connosco e com o qual os Maias se preocupavam imenso pois era emprestado, não me lembro por quem. Todos aprendemos a espreitar pelo teodolito, nem todos chegámos a perceber como se usava efectivamente.
Os almoços eram na cantina das Minas de Neves-Corvo, arranjo previamente feito através da Câmara Municipal e que nos proporcionou momentos únicos como descer a um dos poços, aventura que só quatro de nós aceitaram. Adorei!
Os cuidados com o teodolito não eram esquecidos nem ao almoço, pois levávamo-lo connosco para a Mina.
Era véspera da Páscoa e já fazia calor; embora cada um tivesse levado impermeável, andávamos todos de manga curta e uma de nós tinha uma t-shirt com umas belas palmeiras que, para além de lhe fazerem as mamas ainda maiores, tinha escrito em letras que se iam desfazendo como ondas: Vive l'ête. A t-shirt era velhota, estava meia desbotada e o chapelinho do Verão estava quase desaparecido.
Na fila para o almoço misturávamo-nos com o pessoal da mina, a arrastar o teodolito que passava de mão em mão, quando um dos mineiros fixou o peito da rapariga e disse:
- Vivelete? Esse é o sê nome? Que fêio… sês pais nã tinham outro?
Lá se foi o teodolito, naquele momento nas mãos de Dirceu Borboleta que o deitou ao chão com tanta gargalhada. Escusado será dizer que a Vivelete ficou com o nome gravado a ferro e fogo e nunca mais se separou dele.
Foi o melhor trabalho da faculdade e na altura ainda pensei na Arqueologia como uma carreira a seguir, e cheguei a escrever ao Prof. Indiana Jones a pedir integração na sua equipa mas, vá lá saber-se porquê, nunca tive resposta.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Não querem pagar?

Era uma vez um casal de reformados que recebia mensalmente uma choruda transferência por conta da reforma que dava para pagar a prestação da casa e fazerem uma refeição decente por dia; as outras eram sopa e restos. O casal de velhos gastava em drogas cerca de metade da reforma, ainda por cima legais, com receita e tudo. De vez em quando mudavam-lhe as doses, aumentava a tarifa, e não podiam dar largas ao consumo, pela simples razão que a farmácia não fia.
Um dia foram pagar o Imposto Municipal sobre Imóveis, IMI para os amigos, e o senhor das Finanças informou-os que estavam isentos por via do velho ter sido reformado por invalidez. Os velhos ficaram todos contentes e até diziam que tinham trabalhado arduamente a vida inteira, de tal forma que o velho passava a vida no hospital em operações, para o que tinha contribuído em larga escala o facto de ele ter passado anos em pé, com grande frequência quase vinte e quatro horas seguidas, mas ninguém sabia se assim era ou não. Tanto mais que o velho teimava, de vez em quando, a ocupar uma cama do hospital e a fazer o doutor cirurgião perder horas a operá-lo. Teimosia de velhos, já se sabe.
Numa ocasião estavam os velhos em casa, sem fazer mais nada se não contar o dinheiro como de costume, e porquê? porque tinham muito com certeza e nunca acabavam de o contar!, sem contribuirem para a sociedade, o que poderiam fazer com facilidade, bastava o velho largar a bengala e tomar umas aspirinas para se pôr a andar, mas enfim, quando são interrompidos pelo toque da campaínha. Era o carteiro que lhes entregou uma carta das Finanças que dizia que esperavam por eles lá na Repartição para pagarem o IMI de 2007 até agora.
O casal de velhos, não contente com o que já tinham, não cansados da dinheirama que gastavam todos os santos meses em droga, de barriga cheia de sopa e torradas, não fizeram mais nada, puseram-se a caminho a incomodar o Senhor das Finanças com reclamações sobre o pagamento que, lata das latas, achavam injusto!
Injusto é não lerem o Diário da República para se informarem que a lei mudou e, para além disso, ainda obrigarem as Finanças a gastar dinheiro em cartas, isso sim, é injusto! Mas os velhos, ávidos e cheios de soberba, ainda foram ver se o barro se agarrava à parede!
Quando lá chegaram estranharam a fila ser composta por vários outros velhos, alguns também de bengalas e muletas. Contou-se depois que houve até quem chorasse a perguntar como ia pagar não sei quantos mil euros de IMI de 2007 até 2011. Lessem o Diário da República e nada disto acontecia! Ora esta! Mas não, a velharia anda é nas farmácias, nos hospitais, nos centros médicos, cambada de viciados, e depois queixam-se!
Sugiro aos Senhores de todas as Finanças que afixem um anúncio nas suas repartições com a seguinte informação:
Não querem pagar? MORRAM!

domingo, 6 de novembro de 2011

Herói

Leio o Âncoras e sou levada por uma espécie de ciclone da Dorothy, não até Oz, mas ao Sobral da Adiça. Subo a rua Longa, como fiz tantas vezes, da casa dos meus avós até à casa do Tio Raposo que nunca vi noutra posição senão deitado.
Para mim ele é tão velho como o mundo, tão velho que já não envelhece mais. Sempre o conheci assim, velho, deitado num quarto escuro onde nem os poderosos raios de sol escaldante do Verão alentejano se atreviam a entrar. Ao pé do Tio Raposo falava-se baixo e baixava-se a voz quando se falava dele, num tom que parecia a voz de joelhos.
O Tio Raposo tinha estado na guerra e a guerra ficara-lhe com um braço e dera-lhe em troca uma doença que o obrigava a estar deitado. Estava assim há muitos, muitos anos, mais de cinquenta diziam. Eu não fazia ideia de quanto eram cinquenta anos, sabia que eram muitos, mas não conseguia aperceber-me da dimensão de meio século. Porém, isso só dava mais credibilidade à minha certeza que ele era muito velho.
Uma prima minha, pouco mais velha que eu mas que morava na aldeia e conhecia as dinâmicas de toda a gente, levava-me à casa dele quando ninguém suspeitava e falávamos com ele.
O facto dele falar foi uma surpresa não sei porquê. E supresa maior eram as coisas que contava: o frio, o peso da roupa, capotes e botas, a chuva que não parava e era tanta que entrava, passava pela carne e pelo sangue e saia do outro lado, a falta de comida e como se matavam pessoas pela posse de cascas de batatas, o melhor que se encontrava para comer. O receber uma carta, milagre que ele nunca recebera. E a perda do braço.
Hoje, quando vejo filmes passados na I GG e os realizadores nos metem nas trincheiras, olho a ver se vejo um braço, um braço a gritar de dores no meio dum lamaçal de sangue, cujo dono nunca aprendeu a viver sem ele, apesar de ter vivido até depois dos oitenta anos, como se se mantivesse vivo na esperança que o braço voltasse.
Diziam que o Tio Raposo tinha gangrena, que eu associava a uma gripe grave e nas primeiras visitas não me sentava na cama com medo do contágio. Depois percebi que a minha prima, que o visitava com frequência, era mais que saudável, logo, aquilo não se pegava e passei até a visitá-lo sozinha. Para mim era uma aventura subir a rua, entrar às escondidas naquela casa e sentar-me a ouvi-lo, nem que fosse só para me perguntar pelos meus pais. Ele tinha estado na guerra e tinha regressado, podia estar numa cama que fedia, mas se estivesse num trono era a mesma coisa porque ele era um herói. Tinha trazido a tal de gangrena, doença da França com certeza, pois aqui eu nunca ouvira falar dela. Nunca soube exactamente o que era a doença que mantinha aquele homem na cama, magro que nem um cão, amarelo e cheio de febres altas que iam e vinham ao sabor duma permanente inconveniência e mantiveram este ciclo ao longo de mais de cinquenta anos. Quando estava sozinho em que pensaria? Que pecados lhe assomariam à ideia que pudesse ter cometido e que justificassem aquela vida?
E ela? Eu pensava muitas vezes nela, a mulher com quem casara antes da viagem para parte incerta e por razões desconhecidas. Ela que era uma jovem alegre e bonita como dizia a minha avó e se viu transformada em sombra, sem vida, nem própria nem alheia, com uma grilheta a um morto-vivo que o destino colocou na sua vida, um morto-vivo que ela primeiro adorara e depois aprendera a suportar como vingança da vida por qualquer coisa que ela fizera mal e que não fazia ideia do que seria.
Eram dois caminhos perdidos por onde a vida não passava à décadas.
Pelo meu lado, sentia uma enorme pena dela, vontade de chorar quando lhe via os olhos sempre lacrimejantes, as rugas tão profundas como tristes e por várias vezes deixei mesmo as lágrimas cair quando ela se punha na cozinha e dizia que ia fazer certos cozinhados porque eram os favoritos dele. Dava-lhe de comer e ele sorria, ela retribuia e nos sorrisos havia palavras que me escapavam.
Um dia recebemos um telefonema a dizer que o Tio Raposo morrera. Apesar de o ver poucas vezes e sempre naquele ambiente lúgubre, senti que o mundo, pelo menos o meu mundo, perdera um herói.

Eu não entro em grupos

Voltei a andar de táxi. Já não o fazia há meses mas voltou a acontecer ser conduzida por alguém que parece ter acabado de sair duma soup americana dos anos 70.
O rádio ia ligado e o assunto era a crise. Agarrou o mote e repetindo que era preciso poupar e que ele não entrava em grupos, foi contando como era apologista de se abrir uma ou outra excepção, por exemplo para o filho de 25 anos e que ainda morava em casa. O dito filho tinha sido alvo dum presente de quase 300 euros, um gadget electrónico que ele não explicar bem qual era, mas a culpa não era dele, que ele não entrava em grupos, a culpa era da mulher...
Mais, ele já a tinha avisado que era preciso poupar, mas ela... ela não o ouvia e de vez em quando chateavam-se porque ela parecia que não ouvia notícias e não via como o mundo andava, mas ele, ele não ia em grupos, mas infelizmente teve que engolir quando ela comprou o desumidificador e o ar condicionado, que só foi ligado uma vez no Verão. Aí resolvi dizer qualquer coisa e manifestei a ideia que, apesar de fazer mal, mas o ar condicionado sabe bem e fui esclarecida que não se tratava dum equipamento portátil qualquer, mas duma instalação central que dava frio e calor à casa toda, ele próprio o tinha escolhido e supervisionado a instalação, que isto é preciso andar em cima da malta que instala as coisas e ele era de olho vivo e não ia em grupos.
Fiz a minha voz de surpresa e disse que me parecia ter ouvido ele dizer que fora a mulher a comprar o ar condicionado ao que ele esclareceu, esquecendo-se do que tinha dito antes, que a mulher queria um e ele concordara imediatamente; para terminar a conversa ainda me perguntou, afinal, para que serve o dinheiro? Para poupar?

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Cockpit girl

Estou a fazer um trabalho sobre o impacto da adesão ao Processo de Bolonha no quotidiano das bibliotecas universitárias. Decidi contactar 3 universidades em cada um dos quase 30 países que assinaram a Declaração e tenho andado nesta odisseia que se me afigura um trabalho de Hércules mas com evidentes vantagens e momentos que me fazem lembrar as duas caras de Janus: de um lado está a dificuldade em ler russo, ucraniano, arménio ou grego; a metodologia passa com frequência por um processo de adivinhação, em que procuro na amálgama de caracteres uma arroba e sei que ali está o endereço electrónico… ou pelo menos, um endereço electrónico. Por outro lado, está a magia desses mesmos caracteres, belíssimos, a mostrarem a minha gigantesca ignorância e a levarem-me a questionar repetidamente sobre o que se perde por não se dominarem línguas. Cresce em mim uma vontade de, como diria o V., comprar livros e um dicionário e ir lendo devagar, memorizando palavras, construindo frases, aprendendo.
Depois deste levantamento, ou melhor, durante, pois ainda vai a meio, cresce-me a sensação que o mundo não é grande, até está ao alcance dos marinheiros que se fazem a ele, mas está cheio de descobertas a fazer, descobertas essas que não são segredos, estão até bem à vista, sendo apenas preciso querer vê-las.
Nesta maratona não busco só os contactos das bibliotecas, procuro o nome dos responsáveis, para lhes escrever directamente, o que considero importante para uma taxa de feedback de sucesso. Uso o tradutor do Google como bengala pois, se Universitat d’Andorra não trás qualquer problema de leitura, embora seja em catalão, já თბილისის სახელმწიფო უნივერსიტეტი torna díficil perceber que nomeia a Universidade Estatal de Tbilisi na Geórgia. E foi assim que do Azerbaijão à Holanda, da Arménia ao Vaticano, passei pela Polónia e encontrei o director duma biblioteca universitária escolhida ao acaso: Blazej, de seu nome.
A alegria foi grande de tal forma que parei a pesquisa, usei o Google images para verificar que era aquele mesmo e escrevi-lhe em seguida.
Conhecemo-nos há muitos anos num congresso de bibliotecários em Creta e no regresso voámos juntos até Atenas, onde ele regressou à Polónia e eu apanhei um voo para Amesterdão, depois para Frankfurt e finalmente para o Porto, tudo para conseguir estar na Invicta a tempo de abraçar um primo muito querido no dia do seu casamento.
Blazej estava cansado de andar de avião mas nunca se tinha sentado no cockpit, conversado com um comandante em pleno voo e nunca tinha visto o horizonte, o céu e a terra daquela janela privilegiada onde poucos têm acesso. Ao contrário, eu já o tinha experimentado várias vezes e a minha grande vontade e curiosidade genuína já me tinham levado a levantar voo na cabina bem como a pilotar um helicóptero. Ainda me falta fazer uma aterragem no cockpit, o que depois do 11 de Setembro torna as coisas mais difíceis, mas é preciso não desistir e acredito que um dia lá estarei.
Sentados sob o mar grego a furar o céu, levantei-me, falei com uma hospedeira, disse-lhe que o meu amigo adorava ver o cockpit e pedi a devida autorização que foi concedida. Poucos minutos depois a hospedeira dirigiu-se ao meu companheiro de viagem e disse-lhe que o comandante o convidava para o cockpit. Quando regressou vinha com lágrimas nos olhos, feliz e agradecido.
Escrevemo-nos muitas vezes, ele chamava-me cockpit girl, eu sorria procurando palavras em inglês para lhe responder. A vida e os problemas informáticos fizeram-nos perder o contacto. Há anos tentei encontrá-lo na Polónia, mas não me lembrava do apelido e só o nome próprio não foi suficiente.
Agora, ao virar duma esquina, leia-se página da internet, aqui está ele.
E quando pensava que ele não se lembrava de mim, sou surpreendida pela mensagem de resposta onde ele pormenoriza a viagem de avião e outros momentos em Creta.
Tenho que sorrir.
Há dias falei dele aqui, a propósito duma igreja em Hania, cuja descoberta e visão me enriqueceram para toda a vida. Na mensagem de resposta pede-me uma carta longa, a contar tudo. Vou escrevê-la, pois claro, mas devagar, bem devagar, para prolongar este momento tão feliz e porque a vou escrever em polaco!
Cada vez mais sinto que quando nos deitamos ao trabalho, trabalho que dá prazer, somos recompensados, e quando a recompensa calha em vir sob a forma de amizade, de reencontro, de partilha, de saudade morta, é a magia a acontecer na nossa vida.
Dziękuję, Blazej.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Às mãos ambas

Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia devoram-se num ápice. Muito bem escrito, Rentes de Carvalho remete para  A Cidade e as Serras, fazendo-nos rir e lacrimejar, em bolandas por esses mundos, exteriores e interiores, muitas vezes ambos escondidos, pois o exterior embora esteja por aí, de braços abertos, à espera, não se vislumbra com a velocidade a que se passa. É a chamada velocidade de turista, pois só em modo viajante os olhos se abrem e deixam entrar as memórias.
Não sei se foi da intenção do Autor ou requisito editorial, mas achei piada ao facto de se referir sempre ‘infarto’ em vez do corriqueiro ‘enfarte’ para designar o achaque do músculo cardíaco. E achei piada porque ‘infarto’ é comummente usado no sul do país, local onde o Autor parece não nos levar através da escrita mas, desta forma, percebe-se que a leitura vai sempre mais além do que se pode pensar numa primeira vista.
Porém, se o livro não tivesse o nome que tem podia chamar-se ‘Às mãos ambas’, expressão transversal a todos os contos, por prazer da escrita, por simpatia do autor, por ineficácia da revisão que podia ter sugerido alternativas, não sei. Mas com as mãos ambas seguramos o livro, lemos essa expressão que, de tão repetida, acaba por ser uma espécie de fio condutor que liga cada conto, cada narrativa, como uma assinatura que não desdenha qualquer mão, mas usa-as ambas para se identificar.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Como construir uma verdade em 30 segundos

As escadas do metro que dão acesso à plataforma avistam-se antes de as começarmos a descer. No átrio antes das escadas as pessoas amontoam-se, olham para todos os lados, uma ou outra voltam a sair. Ouço que não há metro.
Muitos outros passageiros ouvem o mesmo e nem passam as cancelas, ficam do lado de fora.
Não tenho grandes alternativas, esperarei e nem darei conta do tempo passar pois tenho um livro.
Vou desviando-me dos passageiros que vão ficando parados ao longo do pequeno percurso e começo a descer as escadas, ao fundo da qual está um homem sentado que, sem o saber, foi o causador do boato de não haver metro.
Atrás de mim vem uma mulher que cumprimenta o homem, ele levanta-se, desce os dois degraus que lhe faltam e entram juntos no comboio que está, quase vazio, na estação.
Enquanto isto, do cimo das escadas, alguém pergunta em vozeirão:
- Há metro?
Respondo que parece que sim e as pessoas começam a descer em catadupa. Os lugares ficam todos ocupados e há gente em pé, o que não costuma acontecer.
Pelas conversas percebe-se o motivo da avaria: alguém viu o homem sentado nos degraus e pensou que se ali estava era porque não havia transporte. Daí até que aquilo fosse verdade foi meio minuto.

Chernobyl, os caracóis e eu

Em tempos que já lá vão tive um chefe que tinha vivido vários anos na Rússia.
Um dia a mulher teve um ataque de vesícula e teve que ser operada de urgência. A intervenção cirúrgica, aparentemente a fazer de olhos fechados, tal era já a facilidade, acabou em complicações que a colocou mais para o lado de lá do que para o lado de cá. Razão: ela estava nas redondezas de Chernobyl quando, em 1986, se deu o acidente nuclear e as consequências ficaram para sempre, dando a cara nas situações e momentos menos esperados.
O chefe, que tinha vivido em aflição à data do acidente, voltou a viver em angústia e sobressalto naqueles dias, com a mulher hospitalizada e sem saber o que podia acontecer.
Para não variar, ao ouvir a palavra Chernobyl, ainda para mais com sotaque russo, eu ficava em transe: era longe, numa Rússia que na altura eu não conhecia mas adivinhava bela, exótica e cheia de surpresas, e equivalia a um pesadelo da humanidade e isso, para mim, era mais que suficiente para fazer vénia.
Este episódio foi o que me colocou mais perto de Chernobyl e, com excepção das notícias que surgem de vez em quando, a actual cidade-fantasma não tem sido alvo do meu interesse, nem se tem cruzado comigo. Até agora.
Há meia dúzia de dias foi-me diagnosticada uma necrose, receitados medicamentos com valores luxuosos, que não são comparticipados e cujo custo total tenho que pagar.
A bula de um dos medicamentos diz que foi desenvolvido ‘a partir da investigação na pele agredida por radiação em tratamentos oncológicos e em lesões e queimaduras de sobreviventes do desastre nuclear de Chernobyl’.
Leio e penso que da desgraça de uns vem o benefício de outros; imagino laboratórios com tubos de ensaio a fumegar, experiências a serem repetidas até à exaustão, cientistas suados e cansados, acordados dias e dias a fio, sem desistirem de encontrar a pedra filosofal. Imagino que para descobrir e produzir uma coisa que minimize os efeitos dum poderio como um acidente nuclear seja precisa quase uma intervenção marciana.
E continuo a ler a bula que informa que a fórmula ‘é baseada na secreção do Cryptomphalus aspersa’. E quem é o Cryptomphalus aspersa, quem é? Um pequeno caracol terrestre…
Ora isto põe-me logo a memória a funcionar e leva-me para anúncios da televisão e para uma banca algures num corredor do centro comercial lá perto de casa, onde se anuncia e vende um produto à base de baba de caracol, que eu sempre achei ser parente da banha da cobra.
Afinal parece que não é assim e que os molengas que se arrastam langanhosamente contribuem para a nossa salvação, amén!
Resta-me um problema para o qual não tenho solução: devo continuar a comer caracóis…?

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Viva o Folheto!

Ex.mo Sr. Dr., médico de família, médico particular, especialista, estagiário, e outros

Venho por este meio agradecer a ideia do folheto que vão criar para explicar às pessoas porque não devem pedir a substituição dos medicamentos nas farmácias.
Essa medida vai garantir várias coisas a bem da nação:
- Desde logo vai dinamizar uma qualquer empresa gráfica, e tão mal que andam as gráficas, com toda a gente a ter computadores e impressoras e a fazer as coisas em casa.
- Acelera-se a morte de muitos velhos que aí andam só a empatar: como não têm dinheiro nem para os genéricos, vão passar a comprar ainda menos medicamentos e, deixam de enriquecer as farmácias, cujas filas diminuem, deixa-se de lhes pagar pensões e passa a haver mais lugares livres nos transportes pois, como as pessoas têm que trabalhar até morrer, manda a boa educação que nos levantemos face a alguém de provecta idade que entre na carruagem.
- Os lares vão baixar os preços face à diminuição do número de clientes
- As famílias deixam de ter a maçada de sentar os avós à mesa de Natal

Como se calcula, muitos outros benefícios advêm desta medida, não me alongarei na lista.
Os farmacêuticos são uns bandidos com interesses que aos senhores doutores não passam despercebidos, por isso são doutores, mais espertos que todos os outros, mesmo os doutores que, sendo doutores, mas não são médicos, ora toma lá! E os clientes estão de conluio com as farmácias! Sei bem do que falo pois no sábado assisti à seguinte cena: a farmacêutica pediu 49 euros por um medicamento a uma mulher que, desavergonhada, pediu o medicamento de substituição e acabou por só pagar 19 euros!
Estão feitos uns com os outros!
Os motivos que os senhores doutores, os médicos, não são vocês!, alegam são de primordial importância, por exemplo para a minha vizinha do lado, mulher para mais de 70 anos de velhice que corre graves riscos se o medicamento não for e x a c t a m e n t e o que o médico lhe receitou e pode até morrer disso, verdade? Claro que não morre pelo facto de nem sequer os comprar! Pois se não os comprou foi porque não quis, e suicidar-se… olhem, está na vontade de cada um, não é assim? Isso é lá com ela e não com os senhores doutores, médicos!, que só se preocupam com o nosso bem-estar!
Demos graças por haver quem pense aqui no rectângulo! Quem se preocupe com as pessoas, quem não tem rabos-de-palha, quem, em suma, pensa no futuro!

sábado, 22 de outubro de 2011

Cal

Boa noite José Luís Peixoto
Hoje de tarde fui ao médico, sabe? Não sei como aconteceu, baralhei-me nas horas e cheguei uma hora mais cedo; fiquei na sala de espera que tem uma maquineta para tirar senhas muito sofisticada, uma para consultas a marcar, outra para consultas marcadas, mas para avisar na recepção que já chegámos, outra só para pedir receitas, outra para carimbar papéis depois de sairmos da consulta e outra para não me lembro. Há muitos velhos ali e raros são os que chegam e esticam o dedo e carregam na tecla certa à primeira; a maioria olha, olha, e não sai da indecisão até que uma alma caridosa pergunta o que foram fazer e lhes tira a senha, mas nem por isso lhes resolve o problema pois a chamada faz-se num quadro electrónico cheio de cores que se misturam, como se a falta de vista dos clientes não fosse suficiente para dificultar a leitura, e a idade ajudasse a percepção do raio do quadro.
Sabe José Luís, eu sei que as coisas se passam assim porque já lá fui mais vezes mas hoje não vi nada disto. Comecei a ler Cal de manhã no metro e acabei na sala de espera do consultório. Sei que leio depressa, mas a leitura da sua escrita dá-me urgências ainda maiores que as normais, o que se torna engraçado porque tudo é sereno e dá-me a sensação de que escreve devagar, inspirando e expirando cadenciadamente a cada nova palavra.
Ontem acabei de ler uma pedrada, daquelas que nos fazem sorrir e ficar felizes, mas a sabermos porque sorrimos e estamos felizes: Deixem Falar as Pedras; e há um ritmo, um bater de pezinho, um cantarolar na escrita do David Machado que não há na sua, que é duma tranquilidade que leva às lágrimas, duma envolvência que se mete no sabugo das unhas. Nenhum Olhar já me tinha feito chorar, e outras palavras suas, como o Livro também, estão aqui, ali, está a vê-los?, em lugar sempre aquecido, mas Cal tocou-me particularmente e vou explicar-lhe porquê.
Zé Luís, posso tratá-lo assim?, Zé Luís eu também sou alentejana e vi a minha avó Nicácia na Cal, e lembrei-me da caleira que estava sempre no quintal de cima, dura que nem cornos e que se reavivava todos os anos antes das festas de Nossa Senhora do Ó, quando era tudo caiado. Eu só ajudava se não estivesse com aquilo, que era a forma da minha avó aludir à menstruação, pois quem mexia em cal quando estava com aquilo ficava louca.
Os braços da minha avó eram moles como doce de ovos, mas eram mais lindos que os braços da Júlia da farmácia, ai pode apostar com quem queira! Quando a minha avó se zangava largava conhos até dizer chega, sem saber várias coisas, como por exemplo o que queria aquilo dizer e sem saber que levava til porque a minha avó não sabia escrever, só fazia o nome e punha o dedo. Mas sabia contar e desenvolveu um esquema próprio para a ajudar nas contas do talho e saber quanto era meio arráte, nome pelo qual chamava ao arrátel, quando uma família comia metade de metade de quilo de carne durante uma semana.
A minha avó fazia meia com um sistema de quatro agulhas, meias grossas de linha que aqueciam os pés do meu avô. O calcanhar era o mais difícil, mas ela fazia aquilo rápido e não se enganava. Quando não fazia meia, nos fins de tarde de Verão, sem tamanho que se conseguisse medir, penteava-se com um pente de finíssimos dentes e cá dentro eu sabia que ela tinha sido a inspiração para a bela infanta, no seu jardim assentada, com o pente de oiro fino, seus cabelos penteava. Que dúvida podia haver?
No dia da procissão a minha avó tirava o avental, nos outros dias mudava-o. Mesmo quando vinha a Lisboa, que detestava, vinha de avental, um avental próprio para sair onde ela guardava o lenço para se assoar e para lhe limpar lágrimas que sempre lhe escorriam sem saber porquê. Eu é que não sei porquê, percebe Zé Luís?, ela talvez soubesse.
A avó Nicácia e o avô Gualdino – e aqui paro de escrever, procurando as palavras certas que, não só não encontro, como parece-me bem que não existem e terei que procurar umas aproximadas – a avó Nicácia e o avô Gualdino são presenças muito fortes na minha vida e o Zé Luís hoje apareceu-me de mão dada com eles, assim, de repente, de forma inesperada, até à sala de espera do consultório, onde qualquer um dos que lá estava podia ser um deles, mas apenas um estava com alguém que podia ser eu. Os outros estavam sozinhos.
A casa da minha avó tinha três quintais: o quintal, o quintal de cima e o quintal das galinhas.
O quintal era florido, como a dona, na altura certa ficava com um chapéu de videiras que nos abrigava a nós também daquelas calorinas e tinha um poço; era no quintal que estava o tanque que deu origem a muitos gritos dela a pedir-me para deixar de lavar roupa às três da tarde de Julhos e Agostos no Alentejo profundo com temperaturas a tocar 50 graus.
O quintal de cima tinha laranjeiras, leiras de hortelã, poejos, coentros e outras ervas e a lenha. O gigantesco monte de lenha era outro planeta habitado por gatos essencialmente, mas também por ratos e outros bichos cujas casas eram demolidas quando o meu avô ia buscar barrotes para o lume.
O quintal das galinhas tinha galinhas, porcos, vacas, uma mula e um macho, patos, coelhos, mas as galinhas tinham um qualquer lugar especial e davam o nome ao quintal. A minha avó passava muito tempo a migar restos para as galinhas e ficava com os dedos retalhados, mas de cor normal. Quando retalhava azeitonas ficava com as mãos pretas; eu descascava laranjas para lhe juntar as cascas. Ela depois metia lá as mãos e como que amassava as azeitonas com a laranja, os orégãos aos molhos e apetecia-me cantar.
A minha avó, Zé Luís, era gorda como uma mesa redonda, mas o espaço que ela ocupava era muito maior que o espaço quadrado em si porque ela era um mundo, ou dois. Era um mundo do passado que sabia coisas que estavam adormecidas, não mortas, caso contrário não apareciam ali densas, a solidificarem com as palavras dela em estórias do antigamente. Era um mundo do presente porque nem o mundo seria mundo se ela não existisse, com o seu cabelo comprido que compunha num monho com ganchos e se deixava rir quando eu lhe dizia que ela o devia cortar. Ai Zé Luís, as crianças…, as crianças são boas pessoas mas são tolinhas, então já viu, eu a sugerir que ela cortasse bocados dela própria?
Ela tinha um forno onde fazia pão, às vezes, poucas, e muitas vezes fazia bolos. E fazia café numa cafeteira preta que se confundia com o lume no chão e era bom como nada que eu tivesse provado entretanto e se lhe metesse um bolo do cozido partido aos bocados, valia a pena morrer a seguir porque morria feliz e lambuzada.
Sabe que ela me deixava usar o garfo do meu avô? É verdade. O meu avô só comia com um certo garfo que era diferente dos outros e tinha um cabo de madeira; quando ele não estava ninguém lhe mexia, como se fosse um objecto sagrado; mas eu podia comer com ele… era como deixar a pequena princesa brincar com a coroa da rainha. Sei que me entende.
Muitas, muitas, muitas, muitas vezes fui com a minha avó à loja: à do Campaniço, à do senhor Caetano. O senhor Caetano era mais rico que o Campaniço e chamava-se-lhe senhor antes do nome; com o outro ia-se directamente ao apelido. Um pão ou um pacote de arroz era epopeia para uma manhã bem medida. Saíamos de casa na Coitada, descíamos até à ribeira, com muitas escalas pelo caminho, falando com toda a gente, como se não se vissem há meses, depois entrava-se na loja e estava feita a primeira etapa. Na loja passavam-se horas e repetia-se muito uma frase que me fazia rir, ‘ai, despache-me lá primo, que eu tou cheia de pressa’, mas deixavam-se ficar. E a minha avó também reclamava do vagar mas contribuía para ele e eu percebi que aquilo fazia parte do teatro de ir à loja, fosse à do Campaniço, fosse à do senhor Caetano. E depois havia sempre uma guloseima para mim. Sempre.
Quando entrei na universidade o meu pai não recebia ordenado há meses e eles mandaram-me o dinheiro para os livros, já falei disso muitas vezes Zé Luís. Sabe, demorei muito tempo a perceber, mas hoje sei porque é que as lágrimas se assomam à janela dos olhos quando entro no metro e há alguém a tocar um instrumento qualquer: é um chamamento! E lembro-me dos meus avós, vejo-os hoje e sempre, mesmo quando o fazia ao vivo e sem saber porquê chorava de alegria.
Não quero maçá-lo… podia ficar aqui a contar-lhe estórias e histórias dos meus avós até perder a voz e mesmo assim não terminava a viagem.
Os meus avós que viviam numa casa caiada, que não usavam tinta e sim cal, branca, como se usassem a paz para pintar as paredes da sua casa e da sua vida.
Fique bem Zé Luís e seja feliz

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Deixem Falar o David Machado

A densidade de Deixem Falar as Pedras não parece provir de um jovem de 33 anos.
Li o livro e vi o filme, satisfiz-me. Não, não me enganei: a apropriação da história faz-se de duas maneiras diferentes, lendo e visualizando, à vez.
Lendo as aventuras e desventuras de Nicolau Manuel, que nos remete para Viagens na Minha Terra, quando não percebemos se afinal sim ou afinal não e não queremos acreditar que tudo foi imaginação, Joaninha incluída.
Por outro lado, vemos o filme de todos os adolescentes que nos rodeiam, com as palavras que usam, as músicas que ouvem, os gestos que repetem, o guarda-roupa que gastam, o afastamento a que os devotamos, os excessos que nos deixam doentes por dentro e por fora, os problemas próprios desta geração, crus e transparentes. Assim. Sem vírgulas nem chamadas de atenção, nem perdões, nem atenções. Assim. Tal como é.
A acção vem de outros tempos e de amanhã também, tudo ao mesmo tempo, no dia de hoje, no agora.
Um dos aspectos mais significativos é a manutenção dos laços entre um avô e um neto e só por isto já valia a pena a leitura. Mas depois há a dor, a pessoal e a histórica, do país; há a escrita fluida e bem encadeada; há as palavras que nos levam como se fossemos pólen e nos deixam poisar nem sempre da forma mais agradável, mas é assim a vida.
Deixem Falar as Pedras tem a força duma pedrada e eu espero que acerte em muita gente.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Obrigada RTP

Batem as oito e estou encostada ao balcão da pastelaria a beber café, forte, para me dar uma mão e puxar da sonolência, do cansaço acumulado duma semana que se repete há semanas de doze horas de trabalho no local de trabalho, sem contar com os TPC’s que me obrigo a trazer para casa e sem contar com os sábados e domingos alternados em que tenho vindo trabalhar.
Falarem-me em mais meia hora de trabalho por dia faria sentido se fosse há quase quinze anos quando trabalhava numa Câmara e tinha horário para entrar e sair, para cumprir, não fosse aparecer a inspecção do trabalho, como me disseram tantas vezes. Agora soa-me a conversa de garotos do infantário.
Batem as oito e a televisão está sintonizada na RTP1.
Batem as oito e começa o Bom Dia Portugal.
E o Bom Dia Portugal, que quer acordar Portugal, dando os bons-dias como se isso fosse um passe mágico que de facto ajudasse Portugal a ter um melhor dia, e quem diz Portugal, diz os portugueses, eu incluída, e todos, mesmo os que trabalham no estrangeiro, ou será só para os que estão aqui, será Portugal geograficamente falando, com fronteiras? e se assim for, é bom dia para os estrangeiros também, os legais e os ilegais, é para todos, pois o som, seja dum bom dia ou doutra coisa qualquer espalha-se e não escolhe nacionalidade de ouvidos.
O som não escolhe ouvidos para entrar mas a RTP1 sim, escolhe as notícias para alegrar Portugal, para dar substância ao Bom Dia que quer passar a Portugal.
E que coisa melhor para solidificar esse Bom Dia se não o futebol?
Haja notícias da nossa realeza! A única, a verdadeira, a que vive no coração dos portugueses e por quem eles se desunham, do quem mexe realmente connosco, de quem põe o meu vizinho aos berros como se desse uma aula de gramática obscena a alunos que estão na Lua e não ouvem com o tom de voz normal.
Querida RTP, obrigada!

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Tem que ser...

Vale a pena sair da cama cedo para ser abraçada pela aurora. Veste-se dum rosa acamaronado suave que nos faz pensar que o dia vai correr bem. O trabalho que me obrigou a sair de casa antes da hora normal será feito com prazer, sei disso.
O primeiro pé na rua trouxe-me uma sensação estranha, desagradável, mas que entrou em mim. Vá lá saber-se porquê, a minha pele deixou-se penetrar e acolheu, contra a minha vontade, aquela coisa. O ar estava normal, a rua não tinha qualquer cheiro de onde pudesse vir aquele efeito.
Entrei no café da esquina devagar, olhei as outras pessoas que pareciam imunes à minha impressão, como se não fossem atacadas por ela. Olhei a direito e segurei com o olhar as coisas alinhadas nas prateleiras do café e, assim, eliminei as minhas habituais tonturas: a síndroma de Ménière estava adormecida, felizmente, e não era a causadora da estranheza.
Bebido o café, entrei no carro e, fosse pelo efeito da música ou da simples condução, aquela sensibilidade passou-me. Como vim mais cedo consegui um lugar de estacionamento que não fica a dois quilómetros da entrada do Metro; deixá-lo longe de manhã não me incomoda, mas custa-me ao fim do dia, de noite, fazer o percurso até entrar no carro: ontem eram nove e meia da noite quando sai do Metro e o lugar é tido como o de maior criminalidade em Portugal.
Satisfeita com aquela conquista, estacionei e saí do carro. Assim que abri a porta voltou aquele efeito, aquela coisa que estava no ar, não havia dúvida, e que me envolvia, arrepiando-me, fazendo-me encolher, como se abreviasse o espaço que ocupava. De repente, fez-se luz e percebi o que era: frio.
Se um Inverno se prolongasse por tanto tempo como este Verão eu estaria com uma depressão maior que a Fossa das Marianas, e reclamava da chuva, do frio, da roupa, dos casacos, das frieiras, dos sapatos fechados, das calças.
Há meses que não visto um par de calças, só saias e calções, pois uso-as apenas por uma questão prática, uma vez que não gosto de calças. Mas o tempo quente, sem entrar pelos prejuízos adjacentes a vários níveis, encanta-me e faz-me bem. Conclusão, não reclamo, pois uma das ideias que sempre acalentei era poder viver num sítio onde fosse sempre de Verão. Melhor que isto só se vivesse em vários sítios conforme o Verão, andando atrás dele em digressão pelo mundo.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Mala de plástico

Hoje de manhã segurei-me para não sacar do telemóvel e fotografar a senhora que seguia sentada à minha frente. Não era bem ela que me fascinava, mas sim a sua mala, uma imitação normal, com uma espécie de palavras repetidas como carimbos que se sobrepõem, e cujas asas, ou alças, ou pegas, ou aquilo em que seguramos as malas, chame-se lá como se chamar, mantinham o plástico com que os ciganos as vendem nas feiras, para não se sujarem e provarem assim às clientes que aquilo acabou de chegar de Milão, fique Milão onde ficar. Sei do que falo pois sou cliente e se tenho várias malas é porque as compro na feira e são tão boas como outras quaisquer.
Nunca tinha visto alguém manter o plástico e andar com as malas assim, não bastando já elas serem do mais puro plástico.
A senhora em causa é minha conhecida do metro, vamos muitas vezes juntas e um dia disse-lhe que tinha um brinco a cair, ou seja, até já falei com ela, mas não o suficiente para partilhar a vontade de rir que me deu e fazer o pedido de paparazi. A presença da senhora faz-se notar, quer queiramos quer não pois, apesar de sua idade, usa mini vestidos que lhe expõem as coxas até à gula de certos homens que seguem em pé, mas fixados nas belas pernas da passageira.
Conheço-lhe o ritual: senta-se, puxa o vestido para tapar mais as pernas, sem sucesso, abre a mala, tira um pano e um frasco de líquido para limpar as lentes dos óculos, limpa-os, volta a guardar o frasco e o pano, põe os óculos e fica a olhar para a negra paisagem. Nunca a vi ler um jornal sequer, nem dos gratuitos que por ali andam de mão em mão. Que pensará a olhar as paredes do metro que fogem a grande velocidade? Não sei. Mas sei em que estação sai e que hoje não eram os homens a olharem-lhe para as pernas, mas as mulheres a franzirem o sobrolho ao plástico da mala.

sábado, 8 de outubro de 2011

Quatro e dezasseis

Corro e consigo entrar. O rabo do metro vai sempre mais cheio e fico entalada entre uma senhora que leva uns sacos e vai, com certeza, arrependida da opção do transporte e outra que vai a falar ao telefone.
- Lembro-me que eram quatro e dezasseis
- ...
- Mas eu estava no tribunal não pude atender
- ...
- Mas eram quatro e dezasseis, isso eu lembro-me, por isso não digas que ligaste às quatro e pouco
- ...
- Quatro e pouco, não é quatro e dezasseis!
- ...
- Mas tu tens uma pontaria incrível, já é a segunda vez que ligas e eu estou no tribunal
- ...
- Sim, mas eram quatro e dezasseis
- ...
- Sei porque tenho relógio!
- ...
- Como é que decorei? Que raio de pergunta?
A mulher sai do metro e continua a falar ao telefone deixando-me de olhos arregalados com a sua capacidade de falar tanto tempo de um pormenor. Arranjo um lugar e sento-me a pensar que esta, das duas uma, ou é muito teimosa ou o alzheimer vai ter ali muito trabalhinho...

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Uma coisa com muita importância

Um dos grandes, mas mesmo grandes prazeres da vida é oferecer coisas, livros à cabeça, mas na lista estão igualmente as bonecas que trago à minha sobrinha dos locais que visito, a renovação de electrodomésticos para os meus pais, magnetos para os frigoríficos dos amigos e tudo quanto me lembre para o meu filho. Umas vezes maiores outras menores, por vezes nada, não porque me esqueça, mas porque não pude.
Não nego que sinto igualmente prazer em receber: alguém se lembrou de mim e isso é maravilhoso, seja um marcador de livros - recebi um da Irlanda há duas semanas - uma bela pintura africana - que veio de Angola há alguns meses e já tem moldura - ou um par de chinelos de quarto - vindos de uma Paris africana que os turistas nem sabem que existem. Os exemplos não teriam fim e acho que muitas vezes as pessoas não percebem como fico contente, ou talvez seja eu que não me manifesto o suficiente.
No meio disto tudo há uma coisa que não percebo: quando alguém dá uma coisa a outro alguém, na maioria das vezes, faz acompanhar o presente com uma frase que me põe os cabelos em pé: 'É uma coisinha sem importância'.
Ora bem... se é sem importância, não a quero. Se é sem importância, porque ma deram? Se é sem importância porque se deram ao trabalho de a comprar e trazer? Não percebo...
Quando dou seja o que for a alguém, mesmo uma coisa pequena, minúscula, nunca é sem importância mas, pelo contrário, vive nela toda a importância que dou à pessoa a quem a entrego, seja um livro usado ou um carro. É uma lembrança e na minha lembrança esteve a pessoa a quem dou a lembrança, que contém a pessoa que eu sou. Porque havia de ser 'uma coisa sem importância'? Perceberão as pessoas que dizem aquilo o quão materialistas são? Duvido.  

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A pobreza consiste em nos sentirmos pobres*

A maioria das pessoas que anda a pedir em Madrid é diferente dos que pedem em Lisboa pela simples razão que dão algo em troca, ou seja, exercem uma tarefa voluntariamente e esperam que lhes demos algo em troca. No metro sucedem-se as modalidades de músicos: um com um carrinho de supermercado coberto com uma lona que esconde uma aparelhagem, põe-na a tocar e acompanha com uma flauta; violas põe-nos o pezinho a bater, gaitas-de-beiços fazem-nos assobiar, instrumentos diversos gingam-nos, há quem faça malabarismos, mímica, contorcionismo. As pessoas dão qualquer coisa, pois não lhes pedem por pedir. Mesmo que não se dê nada, agradecem. Fizeram-me lembrar o cego que anda a pedir no metro em Lisboa e que bate com a bengala nas pernas das pessoas com violência e lhes dirige todo o tipo de impropérios, fazendo calar as carruagens; ninguém diz nada porque é cego, caso contrário já teria levado umas bofetadas, no mínimo. Como todos conhecem o seu comportamento a única coisa que fazem à sua passagem é encolherem-se e desviarem-se o mais possível, quantas vezes para dentro do minúsculo espaço dos que vão sentados: é melhor pedir desculpa do que levar com a fúria do cego que leva tudo à sua frente, não por ser cego, mas por ser bruto. Quando chega ao final da carruagem sem que alguém lhe tenha dado um cêntimo critica a virtude das mães dos passageiros e junta-lhe todo o calão da língua portuguesa.
Na noite que esperava por José Ignácio por baixo do falso quilómetro zero, veio uma mulher a puxar uma mala de viagem em cima da qual se equilibravam dois sacos de boa qualidade. Dirigiu-se a mim e pediu-me dinheiro para ir para o aeroporto. Perguntei se tinha perdido a carteira e esta minha pergunta fez-me sentir um apresentador de circo que anuncia o próximo número; ouvi a história dela: veio das Canárias em busca de trabalho que não conseguiu arranjar, o marido maltrata-a e não a deixa ver o filho, está desesperada e não tem um cêntimo. Olhos claros, braços e pernas limpos, sem marcas, discurso fluente. Perguntei se tinha fome. Que não, uns estrangeiros pagaram-lhe umas tapas, os estrangeiros são mais simpáticos que os espanhóis, eu era uma excepção. Fiquei indecisa sobre se lhe devia dizer que eu era estrangeira e, dessa forma, matar-lhe a réstia de esperança nos espanhóis. Dei-lhe o dinheiro que tinha, razão pela qual passei um momento embaraçoso mais tarde com José Ignácio, eu a insistir em pagar mas como não aceitavam cartão, logo, ele que já tinha guardado a carteira, teve que a tirar de novo e responsabilizar-se pela despesa.
Contei-lhe a cena com a mulher e ele franziu um bocado o sobrolho, sinal que estava na dúvida se eu tinha feito bem ou não… as pessoas têm muitas manhas para se aproveitarem dos outros e eu devia acautelar-me.
Como tanta vez acontece, lembrei-me do Leão da Tunísia, o verdadeiro, o único, trapezista nos melhores circos do mundo que um acidente moveu, como peça de xadrez comida, para fora do tabuleiro da vida e de quem ouvi a história na primeira pessoa; fui a única a acreditar nele, contra vozes de cuidados que se ergueram e quase não me deixavam ouvir, fazendo assim perigar uma das mais belas descrições de vida que já ouvi. Ao contrário dos demais vim com a carteira mais leve mas com a memória mais rica.

*Frase atribuída a Ralph Waldo Emerson