terça-feira, 8 de novembro de 2011

Vivelete

O Cheiro dos Livros entra-me pelos olhos e vejo uma palavra a que a minha boca está desabituada, mas que mora na minha memória. Teodolito.
Nos idos do primeiro ano de faculdade na disciplina de Sociedades, Culturas e Civilizações Clássicas foi-nos proposto uma de duas hipóteses: ou fazer um trabalho escrito ou ir trabalhar para um campo arqueológico nas férias da Páscoa. Ui… que escolha difícil e pobres dos que não tinham autorização dos pais, sim porque isto passava-se na altura em que era preciso ter autorização dos pais para nos ausentarmos de casa. Sim… esta época existiu.
Lá fomos cantando e rindo para Castro Verde onde os Maias tinham um resort arqueológico. Explico-me: marido e mulher, ambos com o mesmo apelido, davam aulas na faculdade e a estadia dos alunos era organizada entre os dois, ou entre os três se contarmos o cão, Dragendorff, que fora buscar o nome a um arqueólogo famoso do qual nenhum de nós ouvira falar.
O cão era um enorme pastor alemão que permitia que a dupla estacionasse o jipe, um velho Land Rover, e o deixasse de janelas abertas com pastas e papéis e mais o que se lembrassem à mão de semear. Ninguém se atrevia sequer a espreitar se não queria levar com a fúria de Dragendorff, Drago para os amigos e Draguinho para os momentos de mimo com a dona e que nos punham sempre a rir, pois era como chamar Fifi a um general.
Há uns anos tinha passado a única novela que vi com agrado e que me deixava pena quando perdia episódios: o Bem-amado, momento alto da representação do magnífico Paulo Gracindo no inesquecível Odorico Paraguáçu, talvez a melhor composição de intérprete a que já assisti em televisão.
O prefeito Odorico tinha um sonho: inaugurar o cemitério de Sucupira. Legítimo, é claro, mas para isso tinha que morrer alguém e não havia meio, apesar de muitos esforços.
Ora a malta lá em Castro Verde deu com um cemitério romano que nos pôs a imaginação a funcionar e proclamámos o prof. Maia como Prefeito Odorico; um dos nossos colegas, que passava a vida com a cabeça no ar, ficou o Dirceu Borboleta, outra personagem da novela que andava com uma rede de borboletas na mão por aqueles campos. A plêiade de arqueólogos de Castro Verde contava ainda com um aspirante a jornalista que ficou a chamar-se Neco Pedreira como o jornalista da novela. Eu e outras duas éramos as irmãs Cazajeiras e cada um tinha o seu papel naquela novela da vida real que marcou para sempre aquelas duas semanas.
Todos os dias fazíamos o trajecto de Castro Verde até ao campo e regressávamos ao fim da tarde, deixando os materiais usados no campo, devidamente acondicionados. Menos o teodolito que andava a passear connosco e com o qual os Maias se preocupavam imenso pois era emprestado, não me lembro por quem. Todos aprendemos a espreitar pelo teodolito, nem todos chegámos a perceber como se usava efectivamente.
Os almoços eram na cantina das Minas de Neves-Corvo, arranjo previamente feito através da Câmara Municipal e que nos proporcionou momentos únicos como descer a um dos poços, aventura que só quatro de nós aceitaram. Adorei!
Os cuidados com o teodolito não eram esquecidos nem ao almoço, pois levávamo-lo connosco para a Mina.
Era véspera da Páscoa e já fazia calor; embora cada um tivesse levado impermeável, andávamos todos de manga curta e uma de nós tinha uma t-shirt com umas belas palmeiras que, para além de lhe fazerem as mamas ainda maiores, tinha escrito em letras que se iam desfazendo como ondas: Vive l'ête. A t-shirt era velhota, estava meia desbotada e o chapelinho do Verão estava quase desaparecido.
Na fila para o almoço misturávamo-nos com o pessoal da mina, a arrastar o teodolito que passava de mão em mão, quando um dos mineiros fixou o peito da rapariga e disse:
- Vivelete? Esse é o sê nome? Que fêio… sês pais nã tinham outro?
Lá se foi o teodolito, naquele momento nas mãos de Dirceu Borboleta que o deitou ao chão com tanta gargalhada. Escusado será dizer que a Vivelete ficou com o nome gravado a ferro e fogo e nunca mais se separou dele.
Foi o melhor trabalho da faculdade e na altura ainda pensei na Arqueologia como uma carreira a seguir, e cheguei a escrever ao Prof. Indiana Jones a pedir integração na sua equipa mas, vá lá saber-se porquê, nunca tive resposta.

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