Estive de serviço no fim-de-semana. Quase podia dizer que tinha posto a boina e ficado ao serviço ao Zézinho, do Huguinho e do Luísinho: os três juntos são os sobrinhos mais famosos do mundo e os meus são os melhores.
Estive de serviço também à minha irmã e uma das coisas que lhe fiz foi cortar-lhe as unhas. Foram limadas para não correr risco de arranhar o bebé e chegada aos pés deparei-me com a visão dos meus actos de criança: o dedo grande do pé direito foi passado numa trituradora, refeito à mão e voltado a colocar como peça de lego partida e colada. Resultado, o dedo é esguio e longo, a unha é uma massa preta que cai a cada dois anos, mais ou menos.
Numa bela tarde de Verão, quando as crianças ainda brincavam na rua sem a permanente supervisão dos pais, andava eu de bicicleta a subir e a descer a rua. A minha irmã ainda não tinha feito cinco anos e ia com a nossa mãe para o trabalho. Pontualmente eu esperava-as na estação do comboio, na ponta da rua. Naquela tarde, e como de costume, dei-lhe boleia na parte de trás da bicicleta. Ela usava umas sandálias azuis, abertas, como competia naquela altura do ano. A rua descia em direcção à nossa casa e eu não vi quando ela meteu os frágeis dedos nos raios da bicicleta que nem precisou de fazer força para lhe trucidar o dedo e magoar os outros. Os gritos dela encheram a rua, o meu pavor alastrou-se à lua que já alumiava o fim da tarde.
Alguém chamou a minha mãe que já subia as escadas em direcção ao segundo esquerdo onde morávamos e que ficou em estado de choque. Sem saber exactamente o que fazia, apanhei cada bocadinho de dedo dos raios da bicicleta e segui os vizinhos que levavam a garota em braços ao enfermeiro do bairro, o Sr. Camilo, seguidos pela minha mãe, meia zonza.
O enfermeiro mandou chamar uma ambulância dizendo que aquilo não era para ele, a minha mãe deu o número do telefone do trabalho do meu pai, pedindo para os vizinhos o avisarem e seguimos as três para o hospital, eu com o estrago nas mãos, lavada em lágrimas.
A garota gritava a plenos pulmões e no meio dos gritos fazia um pedido que me punha a chorar ainda mais e me deixava a tremer:
- Mãe… não te zangues com a mana…
Repetiu e repetiu esta frase, em palavras mal alinhavadas e intercaladas com soluços mas ditas de tal forma que ainda as conservo vivas na memória.
Quando chegámos ao hospital de S. José, assim que a porta da ambulância se abriu, vi o meu pai a espreitar, de olhos esbugalhados.
Entrámos no hospital, ela foi vista imediatamente e o médico disse ao meu pai que como eu tinha levado o que restava do dedo, iam tentar compô-lo, mas sendo ela muito nova, ele não aconselhava que se anestesiasse, porém, a decisão final era dos pais. O que queriam fazer?
O meu pai disse-lhe que fizesse como se ela fosse sua filha e o médico avisou, como se fosse preciso, que não ia ser fácil e que precisava da ajuda dele.
Entraram na sala de operações com ela segura por uma enfermeira e pelo pai. Os gritos dela ouviam-se no corredor, por favor pai, paizinho, por favor, não, não, não…
A dor era lancinante dentro e fora da sala. E quando pensei que não podia ser maior tomou proporções épicas, só comparáveis ao momento em que soube que ela teve um acidente, há quatro anos, queimada com ácido sulfúrico.
- Mana… mana ajuda… mana… ajuda… não, não… mana…
O pedido de socorro vinha em maiúsculas, como balas certeiras que me atingiam o coração. A minha mãe chorava abraçada a mim e eu chorava abraçada a ela. Passou uma eternidade que, contada posteriormente, pouco passou da meia hora. Ninguém diria, nem mesmo os desconhecidos que aguardavam ao nosso lado no corredor.
Quando saiu vinha esgotada. Rouca e alienada, como se não reconhecesse chão e céu. Ao colo do meu pai recebeu os nossos beijos e abraços e voltou a pedir que não se zangassem comigo.
Começou aí uma epopeia que durará a vida inteira: primeiro foi o retirar dos pontos, eu com dois gelados na mão a meter-lhos na boca para lhe adoçar o momento. Depois a cena dos gelados iria repetir-se sempre que era preciso cortar a unha, mesmo recorrendo a anestesia. Agora cai de vez em quando e ninguém lhe toca. Nunca mais usou sandálias e chinelos de enfiar o dedo só em casa ou na piscina.
É uma das cicatrizes que tem, uma cicatriz que não se vê ao contrário das outras, na cara e nos braços. Foi a caneta da vida que se desviou do curso normal e ali deixou um risco. Não mais se apagará.
Estive de serviço também à minha irmã e uma das coisas que lhe fiz foi cortar-lhe as unhas. Foram limadas para não correr risco de arranhar o bebé e chegada aos pés deparei-me com a visão dos meus actos de criança: o dedo grande do pé direito foi passado numa trituradora, refeito à mão e voltado a colocar como peça de lego partida e colada. Resultado, o dedo é esguio e longo, a unha é uma massa preta que cai a cada dois anos, mais ou menos.
Numa bela tarde de Verão, quando as crianças ainda brincavam na rua sem a permanente supervisão dos pais, andava eu de bicicleta a subir e a descer a rua. A minha irmã ainda não tinha feito cinco anos e ia com a nossa mãe para o trabalho. Pontualmente eu esperava-as na estação do comboio, na ponta da rua. Naquela tarde, e como de costume, dei-lhe boleia na parte de trás da bicicleta. Ela usava umas sandálias azuis, abertas, como competia naquela altura do ano. A rua descia em direcção à nossa casa e eu não vi quando ela meteu os frágeis dedos nos raios da bicicleta que nem precisou de fazer força para lhe trucidar o dedo e magoar os outros. Os gritos dela encheram a rua, o meu pavor alastrou-se à lua que já alumiava o fim da tarde.
Alguém chamou a minha mãe que já subia as escadas em direcção ao segundo esquerdo onde morávamos e que ficou em estado de choque. Sem saber exactamente o que fazia, apanhei cada bocadinho de dedo dos raios da bicicleta e segui os vizinhos que levavam a garota em braços ao enfermeiro do bairro, o Sr. Camilo, seguidos pela minha mãe, meia zonza.
O enfermeiro mandou chamar uma ambulância dizendo que aquilo não era para ele, a minha mãe deu o número do telefone do trabalho do meu pai, pedindo para os vizinhos o avisarem e seguimos as três para o hospital, eu com o estrago nas mãos, lavada em lágrimas.
A garota gritava a plenos pulmões e no meio dos gritos fazia um pedido que me punha a chorar ainda mais e me deixava a tremer:
- Mãe… não te zangues com a mana…
Repetiu e repetiu esta frase, em palavras mal alinhavadas e intercaladas com soluços mas ditas de tal forma que ainda as conservo vivas na memória.
Quando chegámos ao hospital de S. José, assim que a porta da ambulância se abriu, vi o meu pai a espreitar, de olhos esbugalhados.
Entrámos no hospital, ela foi vista imediatamente e o médico disse ao meu pai que como eu tinha levado o que restava do dedo, iam tentar compô-lo, mas sendo ela muito nova, ele não aconselhava que se anestesiasse, porém, a decisão final era dos pais. O que queriam fazer?
O meu pai disse-lhe que fizesse como se ela fosse sua filha e o médico avisou, como se fosse preciso, que não ia ser fácil e que precisava da ajuda dele.
Entraram na sala de operações com ela segura por uma enfermeira e pelo pai. Os gritos dela ouviam-se no corredor, por favor pai, paizinho, por favor, não, não, não…
A dor era lancinante dentro e fora da sala. E quando pensei que não podia ser maior tomou proporções épicas, só comparáveis ao momento em que soube que ela teve um acidente, há quatro anos, queimada com ácido sulfúrico.
- Mana… mana ajuda… mana… ajuda… não, não… mana…
O pedido de socorro vinha em maiúsculas, como balas certeiras que me atingiam o coração. A minha mãe chorava abraçada a mim e eu chorava abraçada a ela. Passou uma eternidade que, contada posteriormente, pouco passou da meia hora. Ninguém diria, nem mesmo os desconhecidos que aguardavam ao nosso lado no corredor.
Quando saiu vinha esgotada. Rouca e alienada, como se não reconhecesse chão e céu. Ao colo do meu pai recebeu os nossos beijos e abraços e voltou a pedir que não se zangassem comigo.
Começou aí uma epopeia que durará a vida inteira: primeiro foi o retirar dos pontos, eu com dois gelados na mão a meter-lhos na boca para lhe adoçar o momento. Depois a cena dos gelados iria repetir-se sempre que era preciso cortar a unha, mesmo recorrendo a anestesia. Agora cai de vez em quando e ninguém lhe toca. Nunca mais usou sandálias e chinelos de enfiar o dedo só em casa ou na piscina.
É uma das cicatrizes que tem, uma cicatriz que não se vê ao contrário das outras, na cara e nos braços. Foi a caneta da vida que se desviou do curso normal e ali deixou um risco. Não mais se apagará.
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