sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Cockpit girl

Estou a fazer um trabalho sobre o impacto da adesão ao Processo de Bolonha no quotidiano das bibliotecas universitárias. Decidi contactar 3 universidades em cada um dos quase 30 países que assinaram a Declaração e tenho andado nesta odisseia que se me afigura um trabalho de Hércules mas com evidentes vantagens e momentos que me fazem lembrar as duas caras de Janus: de um lado está a dificuldade em ler russo, ucraniano, arménio ou grego; a metodologia passa com frequência por um processo de adivinhação, em que procuro na amálgama de caracteres uma arroba e sei que ali está o endereço electrónico… ou pelo menos, um endereço electrónico. Por outro lado, está a magia desses mesmos caracteres, belíssimos, a mostrarem a minha gigantesca ignorância e a levarem-me a questionar repetidamente sobre o que se perde por não se dominarem línguas. Cresce em mim uma vontade de, como diria o V., comprar livros e um dicionário e ir lendo devagar, memorizando palavras, construindo frases, aprendendo.
Depois deste levantamento, ou melhor, durante, pois ainda vai a meio, cresce-me a sensação que o mundo não é grande, até está ao alcance dos marinheiros que se fazem a ele, mas está cheio de descobertas a fazer, descobertas essas que não são segredos, estão até bem à vista, sendo apenas preciso querer vê-las.
Nesta maratona não busco só os contactos das bibliotecas, procuro o nome dos responsáveis, para lhes escrever directamente, o que considero importante para uma taxa de feedback de sucesso. Uso o tradutor do Google como bengala pois, se Universitat d’Andorra não trás qualquer problema de leitura, embora seja em catalão, já თბილისის სახელმწიფო უნივერსიტეტი torna díficil perceber que nomeia a Universidade Estatal de Tbilisi na Geórgia. E foi assim que do Azerbaijão à Holanda, da Arménia ao Vaticano, passei pela Polónia e encontrei o director duma biblioteca universitária escolhida ao acaso: Blazej, de seu nome.
A alegria foi grande de tal forma que parei a pesquisa, usei o Google images para verificar que era aquele mesmo e escrevi-lhe em seguida.
Conhecemo-nos há muitos anos num congresso de bibliotecários em Creta e no regresso voámos juntos até Atenas, onde ele regressou à Polónia e eu apanhei um voo para Amesterdão, depois para Frankfurt e finalmente para o Porto, tudo para conseguir estar na Invicta a tempo de abraçar um primo muito querido no dia do seu casamento.
Blazej estava cansado de andar de avião mas nunca se tinha sentado no cockpit, conversado com um comandante em pleno voo e nunca tinha visto o horizonte, o céu e a terra daquela janela privilegiada onde poucos têm acesso. Ao contrário, eu já o tinha experimentado várias vezes e a minha grande vontade e curiosidade genuína já me tinham levado a levantar voo na cabina bem como a pilotar um helicóptero. Ainda me falta fazer uma aterragem no cockpit, o que depois do 11 de Setembro torna as coisas mais difíceis, mas é preciso não desistir e acredito que um dia lá estarei.
Sentados sob o mar grego a furar o céu, levantei-me, falei com uma hospedeira, disse-lhe que o meu amigo adorava ver o cockpit e pedi a devida autorização que foi concedida. Poucos minutos depois a hospedeira dirigiu-se ao meu companheiro de viagem e disse-lhe que o comandante o convidava para o cockpit. Quando regressou vinha com lágrimas nos olhos, feliz e agradecido.
Escrevemo-nos muitas vezes, ele chamava-me cockpit girl, eu sorria procurando palavras em inglês para lhe responder. A vida e os problemas informáticos fizeram-nos perder o contacto. Há anos tentei encontrá-lo na Polónia, mas não me lembrava do apelido e só o nome próprio não foi suficiente.
Agora, ao virar duma esquina, leia-se página da internet, aqui está ele.
E quando pensava que ele não se lembrava de mim, sou surpreendida pela mensagem de resposta onde ele pormenoriza a viagem de avião e outros momentos em Creta.
Tenho que sorrir.
Há dias falei dele aqui, a propósito duma igreja em Hania, cuja descoberta e visão me enriqueceram para toda a vida. Na mensagem de resposta pede-me uma carta longa, a contar tudo. Vou escrevê-la, pois claro, mas devagar, bem devagar, para prolongar este momento tão feliz e porque a vou escrever em polaco!
Cada vez mais sinto que quando nos deitamos ao trabalho, trabalho que dá prazer, somos recompensados, e quando a recompensa calha em vir sob a forma de amizade, de reencontro, de partilha, de saudade morta, é a magia a acontecer na nossa vida.
Dziękuję, Blazej.

2 comentários:

  1. Isto, só tu. Ando a ler a biografia de Wilfred Thesiger, de Michael Asher, e frequentemente por causa das viagens e vida no deserto me lembro daquele leão africano. Só alguém como tu encontraria tal personagem. Ou estas coisas e gente a que te referes.

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  2. Mas há aqueles por quem a saudade nunca morre, por ser grande, enorme. grande beijo

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