terça-feira, 22 de maio de 2012

Novas inscrições


Quando leio aquelas mensagens com listas de disparates que as pessoas dizem, farto-me de rir mas nem sempre acredito naquilo. Agora mudei de opinião. Com tanto evento já organizado nunca tinha participado em telefonemas tão ricos. Aqui ficam mais dois exemplos.

Um senhor liga a pedir informações sobre o colóquio que estamos a organizar. Parte da conversa foi assim:
 - …
- …
- Então e isto tem tradução?
- Não, lamentamos mas não disponibilizámos tradução simultânea
- Simultânea? Isso é que era o bonito… as pessoas a falarem e outros a traduzirem por cima, mas que grande confusão… não, eu digo tradução, como se vê fazer na televisão, sabe?, um fala e espera um bocadinho e alguém traduz, também não tem desta?
- Não, lamentamos muito, mas não há qualquer tradução
- Então, estes estrangeiros vão falar p’ro boneco, isso lhe garanto eu
- Talvez não… sabe há muitas pessoas inscritas que falam línguas
- Ah bom, olhe eu cá não falo, falo português e já chega… 
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Uma senhora liga a pedir informações sobre o colóquio, manifesta interesse em inscrever-se e pergunta como o poderá fazer. A conversa foi assim:
- Por norma as inscrições fazem-se através da página da internet da Universidade
- Ah, e como é que eu lá chego?
- Tem computador?
- Sim, tenho
- A senhora entra na internet e depois pesquisa a página da Universidade
- E como entro na internet?
- Quando a senhora liga o computador o que lhe aparece? O Google? Entre pelo Google.
- A senhora decida-se… entro pela universidade ou pelo Google?
- Primeiro pelo Google… depois escreve o nome da universidade e clica em cima do nome e aparece-lhe a informação sobre o colóquio
- Ah, está bem…
- E depois tem um quadrado que diz ‘Inscreva-se aqui’… mas se a senhora me quiser dar os seus dados, eu posso inscrevê-la…
- Ah, quero sim…
A senhora diz nome, morada, etc. Às tantas pergunto:
- Tem e-mail?
- Tenho sim
- Muito bem, então vai receber uma mensagem no e-mail com as referências multibanco para pagamento.
- Mas no e-mail do computador ou no do telefone?
- Se a senhora tem um telefone ligado à internet pode receber no telefone
- Há telefones ligados à internet? Não sabia…
- Pois… há, mas…
- Mas olhe, eu não sei ver os e-mails no telefone, por isso mande a tal mensagem para o e-mail do computador, sim?
- Com certeza, fique tranquila, vou enviar em dois minutos
- Então obrigada, e não se engane… não esqueça que é para o e-mail do computador!

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A inscrição


Estou a organizar um evento internacional. Por mim, e por entre mil coisas, passam também pedidos de informação. Registe-se o último, com nomes e títulos de comunicações alteradas que, a bem da verdade, nada têm de interesse comparados com o diálogo que se estabeleceu. Chamemos ao meu interlocutor, Sr. José Silva.

- Boa tarde, quero informações sobre o colóquio e as visitas aos monumentos
- Com certeza, o colóquio abre dia 10 no Museu e continua no mesmo local dias 11 e 12. Dia 13 as sessões decorrem em …
- Isso já eu sei, porque tenho aqui o programa, mas eu queria perceber o que é que se vai passar, percebe? Olhe por exemplo aqui no primeiro dia… o primeiro dia é de graça, verdade?
- Sim, a entrada é livre
- Pois, então diga-me lá, o Prof. X vai dizer o quê? Este título Marquês de Pombal e o seu tempo… é exactamente o quê?
- Sr. José eu não sei… mas sugiro a inscrição para que possamos ouvi-lo, o Prof. X é sempre agradável de ouvir e…
- Mas se eu não sei o que vão falar também não sei se me hei-de inscrever, ‘tá a ver?
- Mas é por isso que os títulos nos dão uma pista… são um resumo resumidíssimo da comunicação
- Da comunicação?
- Sim, da palestra
- Ah, a palestra, sim… mas olhe cá… este Antunes por exemplo, desafios técnicos da concepção da… isto é o quê? Ele vai dizer o quê? Que desafios são esses?
- Sr. José são os desafios da construção, os…
- Mas isso minha senhora, um profissional sabe ao que vai! É o trabalho dele, não há cá desafios!
- Mas ele refere-se também ao processo de transporte do local onde foi feita a obra para o sítio de instalação final, a montagem, essas coisas
- Ah bom… isso assim é outra coisa, que aquilo não deve ter sido fácil…
José Silva, do outro lado do telefone, lê os títulos e nomes dos conferencistas devagar, perguntando o óbvio:
- Portanto, António Gomes fala sobre a Conjuntura Económica na Passagem do Século … Francisco Marques, A sociedade plural em 1900…
Os nomes e títulos sucedem-se. Por fim diz:
- Então e agora diga-me cá uma coisa… esta Maria Antónia… o que é que a senhora me pode dizer sobre ela?
- Bem… é professora na faculdade de direito…
- Ah… então não é a mesma… sabe eu conheci uma Maria Antónia há muitos anos… mas não, Direito, não é mesma…
Eu, atalhando:
- Sr. José, o senhor tem um email para onde eu lhe envie o processo de inscrição?
- Olhe, não tenho e nem quero ter - ressalte-se que foi o único momento em que José Silva levantou, ainda que ao de leve, a voz. - A senhora pode inscrever-me para dia 10?
- Posso com certeza! O senhor não é estudante, correcto?
- Estudante… – ri-se com satisfação – já fui há muitos anos, mas já não sou, já não tenho idade para isso
- Sr. José já recebemos inscrições de pessoas que frequentam a Universidade Sénior e…
- Ah! Agora que a senhora fala disso estou a lembrar-me… sabe eu ontem encontrei uma grande amiga ali… ai, como é que se chama aquilo… ali ao pé de Sacavém…
- …aeroporto?
- Não… ah, já sei, na Portela, encontrei uma grande amiga… mas só amiga, que até conheço o marido dela e damo-nos muito bem, e ela disse-me que andava na universidade e que eu fosse lá inscrever-me e estou até a pensar nisso, mas se a senhora não falasse, olhe já não me lembrava.
- Pois, mas ainda não sendo aluno, os preços são normais
- E quanto é?
- O colóquio são 40 €
- Pois, 40€… olhe, inscreva-me para dia 10 que é de graça, e eu depois nesse dia logo vejo. Há-de haver lá um guichet onde me inscreva, não é assim?
- Sim Sr. José… eu própria lá estarei
Uns segundos antes, em desespero de causa, eu telefonara de um telefone móvel para outro e quando começou a tocar disse-lhe que era uma chamada muito urgente.
- Muito bem, mas já estou inscrito?
- Sim, para dia 10, está inscrito
- Então apresento-lhe os meus cumprimentos e obrigada.

Rapaz sem brinco de pérola


Entro na carruagem e constato mais uma vez que, sem que o consiga perceber ao fim de centenas de vezes, os lugares para grávidas e etecetera são os primeiros a ser ocupados por pessoas que parecem escolhidas a dedo: jovens que carregam head-phones, matronas que carregam um ou dois pneus tipo camião, homens fardados com fato e gravata. Nenhum está grávido, não ostentam canadianas, estão longe da velhice e não há crianças sentadas ao seu colo.
Sento-me e, atravessando o olhar pela janela, dou com uma imagem estranha: no banco da plataforma, como quem espera um comboio, está um rapaz de perna cruzada, todo enrolado sobre si mesmo, cabeça a pender sobre o peito. Dorme, dorme mal, mas dorme, escorrega-lhe a perna e ele endireita-a, escorregam-lhe os ombros e ele endireita-os, escorrega-lhe a cabeça e ele endireita-a, escorrega-lhe um braço e ele endireita-o, garantidamente bêbado de sono, se de outras coisas não for também, alheio ao comboio que está ali parado, como se não tivesse esse hábito por ser a estação primeira, terminal diríamos nós se fosse ao contrário e assim lhe chamo mas só ao fim do dia, que ao príncipio tudo começa, até a estação que ontem às oito horas da noite era a última, hoje é a primeira, e nela está parado o comboio como quem aguarda, como se desse tempo ao rapaz de boné vermelho com pala virada para trás, cuja cara nunca se viu, que acordasse e entrasse, que é para isso que os comboios servem, para levar as pessoas de um lado para outro, e para passar servem as estações, não para estar, e muito menos para dormir.
Talvez cansado de esperar, o comboio dá um apito, as portas negam a franquia da entrada devagar, num vagar de quem dá uma última oportunidade, vem, vem depressa, e acabam por se fechar. Entramos no escuro do túnel e o rapaz continua a dormir aos solavancos no banco da estação. 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Ai que dor!


A ausência de meias hoje pesa-me as toneladas do ferro de onde saiu o prego que teima em espetar-se-me no pé. O primeiro degrau da biblioteca sentiu a sola do meu pé direito pois assim que lhe cheguei descalcei-me e aguardo que uma colega me compre umas palmilhas, na esperança que sofoquem o raio do prego, já que martelá-lo não deverão ser capazes.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Maus caminhos

O projecto Criar Afectos fez uma surpresa à Marisa Pereira e foram ao programa de televisão Com Amor se Paga.
Os testemunhos são reais, disso sou testemunha. E se o meu pai estava bem, a minha mãe estava com o seu eterno ar de Grace Kelly, linda, em destaque só por existir.
Normalmente falamos dos jovens e dos maus caminhos que percorrem, daqueles de onde queremos que se desviem, se possível, como se fosse possível, que nunca deles ouvissem falar.
Mas maus caminhos existem onde menos se espera e no que aos séniores diz respeito, não há pior trilho que a solidão.
Este é o trabalho do Criar Afectos: tirar aquela malta de maus caminhos, contribuir para que percebam que ainda são gente, que são sempre gente.
Disseram, e eu concordo, que boas ideias há muitas, mas faltam pessoas para as pôr em prática. A Marisa deixou um desafio: aproveitem o exemplo e Criem Afectos. Se os guardarmos para nós e formos poupados no seu uso e na multiplicação com os outros, corremos o risco de um dia olharmo-nos ao espelho e não reconhecermos aquela pessoa que ali está.

Convite

Desde há muitos anos que decidi nunca ser enterrada, nem morta... a excepção é no trabalho. Assim, escrevi um documento que entreguei a duas pessoas diferentes com as orientações que devem seguir depois de eu morrer. Nem enterros nem fogueiras: serei entregue ao Instituto de Medicina Legal do local onde viva na altura para que os alunos de medicina possam aprender comigo. Não deixo de sorrir com esta perspectiva, a de permitir e providenciar o ensino a futuros médicos, eu que apenas sei reconhecer a dor e sei que existem aspirinas, nada mais. Bem, talvez um pouco mais que o meu pai que, quando era garoto, punha o termómetro e verificava a febre vezes sem parar, pois acreditava que servia para tirar a febre...
Não estando doente nem com alguma coisa que me faça prever o aproximação da morte, mas porque ela anda sempre a rondar, não tendo problemas em falar dela e sabendo que um dia vai acontecer, deixo aqui um convite, que de mórbido nada tem, apesar de poder ser assim catalogado por algumas pessoas. Quem assim pensar é um triste, para além de estar em desacordo total com as mais actuais técnicas e estratégias de gestão que preconizam o planeamento como uma etapa fundamental para o sucesso.
O convite é para se juntarem conhecidos e desconhecidos a beber copos e a dizer todas as mentiras possíveis, numa espécie de concurso: como eu era fantástica e boazinha!
O local ideal seria o bar da praça Jem El Fna em Marraquexe, mas fica um bocadinho longe da minha actual localização. A segunda escolha é o Martinho da Arcada, ali no Terreiro do Paço, mas temo ser grande de mais.
À terceira é de vez! Pode ser ali na rua, encostados aos carros estacionados, a transpirar numa noite quente de Agosto ou a apanhar chuva molha parvos, apropriadamente para a maioria, num princípio de Primavera. Escolhi este local lembrando-me de quantas vezes fui jantar com a combinação de, a seguir, irmos a qualquer lado, e a conversa fazia-nos demorar à porta dos restaurantes até às 3, 4, 5 ou 6 da manhã...
Não quero choradeiras nem queixumes, tanto mais que não haverá alguém com dívidas para receber!
Porque é que me lembrei disto agora?
Fui comprar uma lembrança para a minha mãe e optei por um... livro. Esquisita lembrança para uma pessoa como eu... mas enfim. Vai daí, dei com os olhos nas antologias de poesia na prateleira de baixo, sentei-me no chão, cruzei as pernas e fiquei a pairar como se fosse um monge em oração, esquecida do mundo.
Naveguei por letras e sentimentos, imagens e desejos, deixei os dedos amarem o papel e dei por escolhida a prenda.
Levantei-me e dei uma cabeçada digna de um cabeçudo num separador de assuntos em metal que se meteu no meu caminho. Foi de tal forma violento que larguei a antologia, a mala e o casaco e mergulhei num limbo por alguns instantes, ou seja, distraí-me e nesses segundos de distracção, como quem goza comigo, ainda por cima, alocou-se um enorme galo na cabeça, com poleiro e tudo.
Como normalmente acontece nestas alturas, e garanto que não é só nos filmes, batemos de um lado, desviamo-nos e acabamos por bater noutro sítio qualquer ou em alguém, ou deixar cair qualquer coisa. Pois foi o que aconteceu... quando caí em desmaio aproveitei um senhor que ia a passar e caí-lhe para cima. O pobre homem, ou por se tentar desviar ou por ter sido apanhado desprevenido com semelhante ataque, precipitou-se para cima de uma pilha de livros que se estatelaram no chão.
O meu desmaio não foi à séria... não cheguei a perder os sentidos, embora me sentisse como um marinheiro em mar picado e acabei por me levantar atabalhoada e com uma capoeira na testa e ainda ajudei o homem a levantar-se.
Confesso que as dores eram tantas e o azamboado tão grande que nem ajudei a apanhar os livros; dois funcionários quiseram saber se eu precisava de alguma coisa, mostrando preocupação e o homem chegou  a sugerir que fosse vista...
Por segundos ocorreu-me que podia morrer dentro de uma livraria! Coberta de livros que saltariam das estantes para me taparem, as revistas a pedirem para se organizarem por ordem alfabética, os livros infantis a colorirem a cena, os livros técnicos a aguardarem solenes, os editados por mim a meterem-se-me debaixo da cabeça para me almofadarem a posição, as personagens dos romances a saltarem das páginas e a recontarem os momentos em que eu os tinha lido e a misturarem histórias, estórias e mil momentos, criando um sepulcro agitado e vivo, com mortos e vivos, imortais divertidos e inesquecíveis, fazendo planos e querendo saber sobre quem andaria por ali que me pudesse substituir.
Era uma boa morte.
Seja como for, mantêm-se o convite! Apareçam!