Entro na carruagem e constato mais uma vez que, sem que o consiga perceber
ao fim de centenas de vezes, os lugares para grávidas e etecetera são os
primeiros a ser ocupados por pessoas que parecem escolhidas a dedo: jovens que
carregam head-phones, matronas que carregam um ou dois pneus tipo camião,
homens fardados com fato e gravata. Nenhum está grávido, não ostentam
canadianas, estão longe da velhice e não há crianças sentadas ao seu colo.
Sento-me e, atravessando o olhar pela janela, dou com uma imagem estranha:
no banco da plataforma, como quem espera um comboio, está um rapaz de perna
cruzada, todo enrolado sobre si mesmo, cabeça a pender sobre o peito. Dorme, dorme
mal, mas dorme, escorrega-lhe a perna e ele endireita-a, escorregam-lhe os
ombros e ele endireita-os, escorrega-lhe a cabeça e ele endireita-a, escorrega-lhe
um braço e ele endireita-o, garantidamente bêbado de sono, se de outras coisas
não for também, alheio ao comboio que está ali parado, como se não tivesse esse
hábito por ser a estação primeira, terminal diríamos nós se fosse ao contrário
e assim lhe chamo mas só ao fim do dia, que ao príncipio tudo começa, até a
estação que ontem às oito horas da noite era a última, hoje é a primeira, e
nela está parado o comboio como quem aguarda, como se desse tempo ao rapaz de
boné vermelho com pala virada para trás, cuja cara nunca se viu, que acordasse
e entrasse, que é para isso que os comboios servem, para levar as pessoas de um
lado para outro, e para passar servem as estações, não para estar, e muito
menos para dormir.
Talvez cansado de esperar, o comboio dá um apito, as portas negam a
franquia da entrada devagar, num vagar de quem dá uma última oportunidade, vem,
vem depressa, e acabam por se fechar. Entramos no escuro do túnel e o rapaz
continua a dormir aos solavancos no banco da estação.
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