segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Blue Jasmine

Deu-me que pensar o último filme do Woody Allen. Para além de me fazerem rir, dão-me sempre que pensar os filmes dele. Porém, desta vez, de forma diferente: como agir eticamente com uma família que tem uma ideia sobre um antepassado recente e estamos na posse de informação que afinal, ele não era assim, mas assado? Sendo que o assado, caindo na divulgação pública, deita abaixo um mito, atrevo-me a dizer?
Alguém que construiu e deu aos outros uma ideia sobre si, que a alcatroou com hábitos e comportamentos adquiridos por determinadas vias que, vai-se a ver, e não foi bem assim...
Como dizer à família? Como informar que aquela pessoa, que até já morreu, deixou-os acreditar que era um e afinal era outro? Como dizer que ele moldou, e moldou-se para o futuro, como uma pessoa diferente daquilo que era verdadeiramente?
Não sei, tenho um dilema atravessado na garganta.
Quando ao filme, se a Cate Blanchett não ganhar, será uma grande injustiça.

Os homens da minha vida

Ando numa paixão avassaladora com dois homens.
Um é arquitecto o outro dedica-se ao comércio. Ambos têm uma marca indelével na cidade de Lisboa, a qual abraçaram como local ímpar para viver.
Conheci-os por mero acaso, apresentados por conhecidos comuns e fiquei varada, primeiro com o arquitecto, depois com o comerciante.
Não me é possível eleger um, não sou capaz.
Passo dias, e noites, com cada um, à vez e frequentemente com os dois. Procuro saber tudo sobre eles e concluo que as suas vidas estão envoltas em mistério, plenas de pontos de interrogação.
Por mais que os questione, não obtenho respostas.
A maçonaria está presente na vida de ambos o que pode levar a algum secretismo nas vivências, mas eu não desisto, nem de um, nem de outro...
As minhas amigas, subtilmente, avisaram-me que ambos já morreram, que viveram, um no século passado e o outro há dois séculos atrás; e eu respondo-lhes que os vivos têm tanto interesse que apenas os mortos me fazem aproximar.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Vade retro Fangio!

Depois de inundações, cortes de luz e electrodomésticos avariados já merecia uma pausa. Fui a Vila Nova de Gaia com uns primos em romaria a outros primos.
Sendo tudo gente nada macambúzia adivinham-se muitas rugas num futuro próximo, foi um fim-de-semana de rir à gargalhada: um diz mata, os outros respondem esfola e é sempre num crescendo. Se o matar saudades sangrasse o Douro estaria encarnado e espesso.
Os primos, para além de descenderem de Carlos Magno, são artistas, pintores que esculpem materiais e, objectivo atingido, também a nossa cabeça, numa mescla onde não falta música, silenciosa mas bem presente.
A exposição das últimas obras, que só ganhou bem esse nome depois da nossa visita, foi acedida depois de uns bons quilómetros de carro conduzido, nem mais nem menos, pelo Fangio-Alonso que conseguia a proeza de passar pelos intervalos da chuva - não chovia, mas se chovesse, passaria - sem tocar em pessoas, carros ou edifícios, mas roçando-lhes a aura.
Do banco de trás as reclamações começaram subtis - não temos pressa... - foram ganhando uma consistência de contracções, os cintos de segurança, quais tubos de soro, prendiam-nos mas não nos amarravam e as três miúdas chocalhavam no banco de trás.
Os edifícios escuros das ruas estreitas do Porto corriam em direcção contrária à nossa e, imediatamente a seguir a uma reclamação sobre a impossibilidade de admirar a arquitectura, o nosso Fangio pára de repente e diz:
- Saiam!
Ninguém se mexeu e a dona do carro, que vinha nas traseiras com outra prima e comigo, deu pressa ao condutor, seu amigo de tão longa data que vem de outra vida, e artista também. A resposta repetiu-se:
- Saiam, depressa!
O meu primeiro pensamento foi de estupefacção: Estamos a ser postos na rua pelas reclamações? Não acredito nisto... Ainda assim, e porque a dona do carro já abria a porta do seu lado, achei por bem imitá-la e saímos todos, menos o motorista que não sabíamos quando voltaríamos a ver. Já eu pensava se teria dinheiro na carteira para apanhar um táxi de volta para casa quando a prima de Gaia sorria e explicava:
- Ele trouxe-nos a ver o Ângelo, que boa ideia...
Quem seria o Ângelo? Um primo? Mais um de tantos que temos e que eu desconhecia? Não... estávamos à porta da Cooperativa Árvore para vermos uma exposição, imperdível, de Ângelo de Sousa, onde não faltavam os famosos cavalos, que me lembram Altamira.
Ângelo de Sousa não dá muita vontade de rir mas nós ríamos à fartazana, como se quiséssemos esgotar as gargalhadas, ao revivermos o momento em que ele nos pusera fora do carro, sem mais explicações.
No regresso à viatura os agradecimentos multiplicavam-se, quais vénias, talvez o dobrar das cruzes o fizesse conduzir mais devagar dali para a frente. Não. Sentava-se ao volante e ficava possuído e guiados pela alma infernal lá fomos a Perafita, ver a Tia R., com quem eu passei tantas férias, ali, em todo o Minho, com especiais paragens no Gerês, tendo sido ela e o meu Tio, já falecido, que me mostraram tudo aquilo e me fizeram apaixonar para sempre por aquelas penhas, piscinas, serras, estradas e lugares. 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Odeio o Inverno

Quando os meus avós morreram deixaram uma casa à minha mãe. Mais tarde ela quis vendê-la e eu comprei-a. Recuperada por dentro e por fora ficou um mimo num Verão que não esqueço.
Fizemos planos para um restauro total, com novas divisões no piso superior, entre outras mudanças, até que uma noite do Inverno imediatamente a seguir nos estragou os planos: as inundações lá na aldeia mataram uma pessoa, a água entrou em casa e atingiu dois metros e dez centímetros.
Deitámos tudo fora com as lágrimas a aumentar o caudal da Ribeira que passa no centro da aldeia, ao lado da nossa casa, ribeira essa que nos levou as portas da frente e das traseiras.
Impossível de esquecer, este episódio vem-me sempre à memória quando ouço falar em inundações e mais ainda quando a água me entra em casa.
Aconteceu no Domingo à noite durante o temporal que se abateu em Portugal: eu apanhava a água da cozinha e o meu filho a da sala; fiquei sem tapetes, cobertores ou panos da loiça. Móveis desviados para o centro da desmoralização, todo o tipo de roupa a ser usada para outros fins que não os apropriados, uma tristeza.
Às três e meia da manhã, depois de ter custado a pegar no sono, acorda-me um ping-ping que me fez correr na direcção do som: a cozinha estava de novo alagada, não havia janelas nem estores que sustivessem a água, nem esfregonas que a sugassem à velocidade que permitisse secar o chão.
Foi uma noite de malucos que me faz andar ainda a meio gás, ensonada. Para ajudar, ontem fiz uma mudança de uma biblioteca. Os meus braços sabem bem que uma sala cheia de troncos de madeira pesa menos que uma sala cheia de livros, e tendo respondido à chamada, hoje estão doridos da sova de caixas e pilhas de livros, do peso da sabedoria.
Seja como for, prefiro mil mudanças a um dia de chuva. A única coisa boa do Inverno é eu ter nascido durante a sua vigência, mas já lá vão quarenta e oito anos, já ninguém se lembra.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A senhora sente-se bem?

Conta-me a minha irmã que foi às urgências médicas com dois dos meus sobrinhos. Quem tem muitos leva-os à dúzia, sai mais barato. Na sala de espera tem o mais pequeno ao colo e o mais velho sentado ao lado, escapou a garota do meio, e conversa baixinho com os dois, mimando-os, mentindo-lhes sobre o tempo de espera, está quase, vão ver que está quase...
Às tantas percebe uma frase que se repete, a senhora sente-se bem? a senhora sente-se bem?
Não vendo a quem se dirigia a pergunta, esticou o pescoço e viu uma senhora de idade avançada, sentada e apoiado em duas canadianas, literalmente a cair da cadeira. Sentou o mais pequeno com um rápido aviso ao mais velho, olha o teu irmão, e correu para a senhora, impedindo-a de cair no chão. A funcionária correu também detrás do balcão de atendimento, chamando por ajuda na direcção do interior do Centro de Saúde. Veio uma cadeira de rodas e a senhora foi levada para dentro.
Mais ninguém se mexeu, todos com a consciência tranquila e a pensarem, eu perguntei se ela se sentia bem... considerando que já tinham feito o seu trabalho.
Há duas noites saí tarde do trabalho, como de costume, diga-se de passagem, e cheguei à estação terminal do metro quase às nove horas. Não sendo hora de ponta, ainda há um número considerável de pessoas, todas a correr, a esbaterem com uma chuvada dos diabos lá fora.
No último lance de escadas está uma pessoa que não corre, nem se abriga da chuva que, com o vento, vem até ali. É uma mulher, está meia deitada meia sentada num degrau e está um homem muito idoso a lutar contra as articulações, obrigando-as a dobrarem-se para ajudar a mulher a levantar-se.
Pergunto o que aconteceu. A senhora caiu ali fora, diz o homem, e depois entrou aqui, desmaiou e rebolou pelas escadas.
Agacho-me e pergunto-lhe o que sente. Que estava bem, já tinha passado, foi uma tontura, está tudo bem, que a ajudasse a levantar que ia ao multibanco levantar dinheiro para apanhar um táxi.
Enquanto falava levantou-se e caiu-me nos braços desmaiada. Enquanto falava e desmaiava muitas pessoas passaram a um metro de nós, abrandaram e continuaram a subir. Nem uma palavra.
Estendi-a na escada, tirei o casaco, enrolei-o e coloquei-lho por baixo da cabeça, metendo a mão ao bolso para procurar o telefone.
Só nesse instante parou uma mulher, com um telefone na mão e disse, eu ligo, nem precisando de dizer para onde.
Tirei-lhe os óculos, todos partidos, e ela acordou, levantou-se ligeiramente e disse, eu estou bem, só preciso ir ao multibanco. 
Daria vontade de rir se não fosse triste. Perguntei-lhe o nome, de onde vinha, para onde ia. Chamo-me H., tenho 62 anos e fui visitar a minha irmã a Benfica. Então e como se chama a sua irmã? Chama-se M. e eu sorrio. A sério? Sabe que a minha irmã também se chama M.? Não chama nada, está a dizer isso para ser simpática... Nada disso, quer falar com ela?
Fez uma cara de estranheza como quem pensa, está bem, eu acredito, não preciso confirmar e disse, não... agarrei a deixa e respondi-lhe mas eu gostava de falar com a sua... sabe o número dela?
Sabia e falei com a irmã, ao mesmo tempo que a senhora ao meu lado me dizia que o INEM vinha a caminho, já eram dois, contando com a irmã. Continuei a conversar e fico a saber que vive sozinha, é divorciada e reformada. Penso que se houvesse um manual de instruções do governo para estas situações, provavelmente eu devia ter que proceder como todos os demais, passar, não fazer nada e esquecer, deixá-la morrer; afinal, trabalho para ela...
O INEM levou-a para dentro da ambulância e comprometi-me a esperar por aquela que tinha um nome igual ao da minha própria irmã e assim fiz. Fiquei em mangas de camisa, o casaco todo encharcado e sujo, à chuva, o vento não deixava existir lugares onde ela não chegava e também não me deixou acender um cigarro.
Da ambulância vem o bombeiro dizer-me que ela vai imediatamente para o hospital, que a irmã vai lá ter e, finalmente, vou para casa. Choro o caminho inteiro a imaginar a minha mãe ali, desmaiada a cair nas escadas e ninguém a ajudá-la. Sou tomada por uma raiva quase incontrolável e sinto que tenho que parar de conduzir. Paro mas as lágrimas continuam, brutas e muitas. Não sei bem quanto tempo passou quando volto a ligar o carro, completamente gelada e vou para casa.
Vou para casa, individualmente, mas colectivamente, para onde vamos? Em que bichos nos tornámos? E falo por mim também, cheia de vontade de bater em alguém, bater com força, convicta que só me satisfaria quando visse sangue. Quanto tempo falta para nos comermos literalmente uns aos outros? Continuamos a ser pessoas? De que género? Que cegueira nos afectou? Sim, cegueira, aquele foi um momento em que o Ensaio sobre a cegueira deixou de ser um livro e passou inteirinho para a realidade.