Conta-me a minha irmã que foi às urgências médicas com dois dos meus sobrinhos. Quem tem muitos leva-os à dúzia, sai mais barato. Na sala de espera tem o mais pequeno ao colo e o mais velho sentado ao lado, escapou a garota do meio, e conversa baixinho com os dois, mimando-os, mentindo-lhes sobre o tempo de espera, está quase, vão ver que está quase...
Às tantas percebe uma frase que se repete, a senhora sente-se bem? a senhora sente-se bem?
Não vendo a quem se dirigia a pergunta, esticou o pescoço e viu uma senhora de idade avançada, sentada e apoiado em duas canadianas, literalmente a cair da cadeira. Sentou o mais pequeno com um rápido aviso ao mais velho, olha o teu irmão, e correu para a senhora, impedindo-a de cair no chão. A funcionária correu também detrás do balcão de atendimento, chamando por ajuda na direcção do interior do Centro de Saúde. Veio uma cadeira de rodas e a senhora foi levada para dentro.
Mais ninguém se mexeu, todos com a consciência tranquila e a pensarem, eu perguntei se ela se sentia bem... considerando que já tinham feito o seu trabalho.
Há duas noites saí tarde do trabalho, como de costume, diga-se de passagem, e cheguei à estação terminal do metro quase às nove horas. Não sendo hora de ponta, ainda há um número considerável de pessoas, todas a correr, a esbaterem com uma chuvada dos diabos lá fora.
No último lance de escadas está uma pessoa que não corre, nem se abriga da chuva que, com o vento, vem até ali. É uma mulher, está meia deitada meia sentada num degrau e está um homem muito idoso a lutar contra as articulações, obrigando-as a dobrarem-se para ajudar a mulher a levantar-se.
Pergunto o que aconteceu. A senhora caiu ali fora, diz o homem, e depois entrou aqui, desmaiou e rebolou pelas escadas.
Agacho-me e pergunto-lhe o que sente. Que estava bem, já tinha passado, foi uma tontura, está tudo bem, que a ajudasse a levantar que ia ao multibanco levantar dinheiro para apanhar um táxi.
Enquanto falava levantou-se e caiu-me nos braços desmaiada. Enquanto falava e desmaiava muitas pessoas passaram a um metro de nós, abrandaram e continuaram a subir. Nem uma palavra.
Estendi-a na escada, tirei o casaco, enrolei-o e coloquei-lho por baixo da cabeça, metendo a mão ao bolso para procurar o telefone.
Só nesse instante parou uma mulher, com um telefone na mão e disse, eu ligo, nem precisando de dizer para onde.
Tirei-lhe os óculos, todos partidos, e ela acordou, levantou-se ligeiramente e disse, eu estou bem, só preciso ir ao multibanco.
Daria vontade de rir se não fosse triste. Perguntei-lhe o nome, de onde vinha, para onde ia. Chamo-me H., tenho 62 anos e fui visitar a minha irmã a Benfica. Então e como se chama a sua irmã? Chama-se M. e eu sorrio. A sério? Sabe que a minha irmã também se chama M.? Não chama nada, está a dizer isso para ser simpática... Nada disso, quer falar com ela?
Fez uma cara de estranheza como quem pensa, está bem, eu acredito, não preciso confirmar e disse, não... agarrei a deixa e respondi-lhe mas eu gostava de falar com a sua... sabe o número dela?
Sabia e falei com a irmã, ao mesmo tempo que a senhora ao meu lado me dizia que o INEM vinha a caminho, já eram dois, contando com a irmã. Continuei a conversar e fico a saber que vive sozinha, é divorciada e reformada. Penso que se houvesse um manual de instruções do governo para estas situações, provavelmente eu devia ter que proceder como todos os demais, passar, não fazer nada e esquecer, deixá-la morrer; afinal, trabalho para ela...
O INEM levou-a para dentro da ambulância e comprometi-me a esperar por aquela que tinha um nome igual ao da minha própria irmã e assim fiz. Fiquei em mangas de camisa, o casaco todo encharcado e sujo, à chuva, o vento não deixava existir lugares onde ela não chegava e também não me deixou acender um cigarro.
Da ambulância vem o bombeiro dizer-me que ela vai imediatamente para o hospital, que a irmã vai lá ter e, finalmente, vou para casa. Choro o caminho inteiro a imaginar a minha mãe ali, desmaiada a cair nas escadas e ninguém a ajudá-la. Sou tomada por uma raiva quase incontrolável e sinto que tenho que parar de conduzir. Paro mas as lágrimas continuam, brutas e muitas. Não sei bem quanto tempo passou quando volto a ligar o carro, completamente gelada e vou para casa.
Vou para casa, individualmente, mas colectivamente, para onde vamos? Em que bichos nos tornámos? E falo por mim também, cheia de vontade de bater em alguém, bater com força, convicta que só me satisfaria quando visse sangue. Quanto tempo falta para nos comermos literalmente uns aos outros? Continuamos a ser pessoas? De que género? Que cegueira nos afectou? Sim, cegueira, aquele foi um momento em que o Ensaio sobre a cegueira deixou de ser um livro e passou inteirinho para a realidade.
Às tantas percebe uma frase que se repete, a senhora sente-se bem? a senhora sente-se bem?
Não vendo a quem se dirigia a pergunta, esticou o pescoço e viu uma senhora de idade avançada, sentada e apoiado em duas canadianas, literalmente a cair da cadeira. Sentou o mais pequeno com um rápido aviso ao mais velho, olha o teu irmão, e correu para a senhora, impedindo-a de cair no chão. A funcionária correu também detrás do balcão de atendimento, chamando por ajuda na direcção do interior do Centro de Saúde. Veio uma cadeira de rodas e a senhora foi levada para dentro.
Mais ninguém se mexeu, todos com a consciência tranquila e a pensarem, eu perguntei se ela se sentia bem... considerando que já tinham feito o seu trabalho.
Há duas noites saí tarde do trabalho, como de costume, diga-se de passagem, e cheguei à estação terminal do metro quase às nove horas. Não sendo hora de ponta, ainda há um número considerável de pessoas, todas a correr, a esbaterem com uma chuvada dos diabos lá fora.
No último lance de escadas está uma pessoa que não corre, nem se abriga da chuva que, com o vento, vem até ali. É uma mulher, está meia deitada meia sentada num degrau e está um homem muito idoso a lutar contra as articulações, obrigando-as a dobrarem-se para ajudar a mulher a levantar-se.
Pergunto o que aconteceu. A senhora caiu ali fora, diz o homem, e depois entrou aqui, desmaiou e rebolou pelas escadas.
Agacho-me e pergunto-lhe o que sente. Que estava bem, já tinha passado, foi uma tontura, está tudo bem, que a ajudasse a levantar que ia ao multibanco levantar dinheiro para apanhar um táxi.
Enquanto falava levantou-se e caiu-me nos braços desmaiada. Enquanto falava e desmaiava muitas pessoas passaram a um metro de nós, abrandaram e continuaram a subir. Nem uma palavra.
Estendi-a na escada, tirei o casaco, enrolei-o e coloquei-lho por baixo da cabeça, metendo a mão ao bolso para procurar o telefone.
Só nesse instante parou uma mulher, com um telefone na mão e disse, eu ligo, nem precisando de dizer para onde.
Tirei-lhe os óculos, todos partidos, e ela acordou, levantou-se ligeiramente e disse, eu estou bem, só preciso ir ao multibanco.
Daria vontade de rir se não fosse triste. Perguntei-lhe o nome, de onde vinha, para onde ia. Chamo-me H., tenho 62 anos e fui visitar a minha irmã a Benfica. Então e como se chama a sua irmã? Chama-se M. e eu sorrio. A sério? Sabe que a minha irmã também se chama M.? Não chama nada, está a dizer isso para ser simpática... Nada disso, quer falar com ela?
Fez uma cara de estranheza como quem pensa, está bem, eu acredito, não preciso confirmar e disse, não... agarrei a deixa e respondi-lhe mas eu gostava de falar com a sua... sabe o número dela?
Sabia e falei com a irmã, ao mesmo tempo que a senhora ao meu lado me dizia que o INEM vinha a caminho, já eram dois, contando com a irmã. Continuei a conversar e fico a saber que vive sozinha, é divorciada e reformada. Penso que se houvesse um manual de instruções do governo para estas situações, provavelmente eu devia ter que proceder como todos os demais, passar, não fazer nada e esquecer, deixá-la morrer; afinal, trabalho para ela...
O INEM levou-a para dentro da ambulância e comprometi-me a esperar por aquela que tinha um nome igual ao da minha própria irmã e assim fiz. Fiquei em mangas de camisa, o casaco todo encharcado e sujo, à chuva, o vento não deixava existir lugares onde ela não chegava e também não me deixou acender um cigarro.
Da ambulância vem o bombeiro dizer-me que ela vai imediatamente para o hospital, que a irmã vai lá ter e, finalmente, vou para casa. Choro o caminho inteiro a imaginar a minha mãe ali, desmaiada a cair nas escadas e ninguém a ajudá-la. Sou tomada por uma raiva quase incontrolável e sinto que tenho que parar de conduzir. Paro mas as lágrimas continuam, brutas e muitas. Não sei bem quanto tempo passou quando volto a ligar o carro, completamente gelada e vou para casa.
Vou para casa, individualmente, mas colectivamente, para onde vamos? Em que bichos nos tornámos? E falo por mim também, cheia de vontade de bater em alguém, bater com força, convicta que só me satisfaria quando visse sangue. Quanto tempo falta para nos comermos literalmente uns aos outros? Continuamos a ser pessoas? De que género? Que cegueira nos afectou? Sim, cegueira, aquele foi um momento em que o Ensaio sobre a cegueira deixou de ser um livro e passou inteirinho para a realidade.
É isso mesmo. Estamos a ficar adormecidos em relação a tudo.Esquecemos da solidariedade que temos que ter uns para com os outros... E isto tem piorado com os anos. Eu que recordo agradecida, daquela vez em que cai um lanço de escadas, parti o queixo. E fui levada ao hospital por três pessoas. Ficando mesmo uma delas à minha espera (telefonando inclusivamente para a sua família, justificando-lhe a ausência), não fosse dar-se o caso de eu precisar de mais alguma coisa dela. Não sei, nem nunca soube o seu nome. Não conheci nunca a sua identidade. Eu estava naturalmente afectada pela queda. É a resposta que eu encontro. Porém aquela pessoa fez toda a diferença. E mais que não fosse, contribuiu também para que eu nunca, mas nunca mesmo, vire a cara "à banda", a quem de mim necessite. É que hoje é o outro, amanhã...
ResponderEliminarCeleste, é bem verdade, hoje é alguém que não conhecemos, amanhã somos nós. Invade-me uma raiva que não calcula, mas uma perplexidade também, como podemos ser tão frios?
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