sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Expedição Amazónia Exposição

Uma das belezas do olhar é que a mesma coisa pode ser vista de muitas formas. Assim é a Expedição  Amazónia Exposição, patente no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa.
Um grupo de pessoas foi para o maná da biodiversidade do planeta, a Amazónia, carregados de lápis e tintas e pincéis e máquinas fotográficas também. São desenhadores, arquitectos, médicos, historiadores que se inspiraram na Viagem Philosofica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá (1783-1792), e no seu líder, Alexandre Rodrigues Ferreira, da mão de quem nasceu uma intensa produção de desenhos científicos.
A recreação ocorreu entre os últimos dias de 2009 e os primeiros de 2010 tendo os exploradores viajado de barco, a pé, de avião, sozinhos e em grupo e dessa estada nasceu uma exposição que vem de dentro, de dentro da própria Amazónia, de dentro dos instrumentos riscadores que levavam, de dentro da alma de cada um, de dentro dos olhos, todos iguais, todos com projecções diferentes e, como se pode ler no catálogo: ‘A julgar pelos resultados, parece ninguém ter visto a mesma Amazónia, cada um desenhou a sua’.
Literalmente a não perder.
Exposição organizada pela mão de arquitectos - Grupo do Risco - e gente atenta ao pormenor, que ao acaso não deixa nada, nem sequer a nossa vontade que, perante a exposição, é só uma: correr para a Amazónia!
Para além das imagens que a Amazónia transporta no nosso imaginário há outras que se nos impõem perante a exposição, que misturam velhas glórias do cinema, com heróis imortais e gente desconhecida para a maioria das pessoas, como Alexandre Rodrigues Ferreira por quem, depois disto, sentimos uma enorme curiosidade.
O próprio catálogo é quase uma peça de arte, belíssimo e bem cuidado. Como livro é de adquirir e guardar na prateleira mais alta, onde ninguém chegue.

Chovem canivetes, chove a cântaros, chove a potes, chove muito!

O meu pai tem consulta no hospital ao lado do meu local de trabalho. O dia está chuvoso e é difícil encontrar estacionamento. Falamos ao telefone e eu digo-lhe que vou ter com ele e que procurarei lugar para o carro enquanto ele vai à consulta.
Desço em direcção ao portão e chove desalmadamente. Vejo que não consigo sair porque a água tem um palmo de altura. Ele está estacionado em frente ao portão, refém no carro. Em dez segundos, repito, dez segundos, a água sobe de tal forma que passa por cima das rodas dos carros e chega às portas. No portão, recuo face ao avanço da água, afasto-me cada vez mais do meu pai com quem já nem consigo falar ao telefone por causa do barulho da chuva.
A água continua a entrar empurrando tudo, com convicção e sem intervalos. Alguém fecha o pesado portão mas não sem antes a água ter inundado várias salas. Ainda não passou um minuto desde que ali cheguei. Estou verdadeiramente impressionada.
Subo e deparo-me com uma bateria de computadores em cima dos quais chove como na rua. Sei que os monitores estão presos às mesas. Tento desviá-las mas os fios são tantos e estão tão apertados que não sou capaz. Peço ajuda a várias pessoas e, mesmo juntos, somos incapazes de fazer seja o que for. Estou mais encharcada que um doce conventual. Falta a luz. A confusão é total. Lembro-me que saí à pressa e deixei os telefones e a mala em pantanas em cima da secretária com a porta aberta. Peço que mos vão guardar enquanto falo com vários alunos que por ali andam, prisioneiros deste palácio, tal como nós.
Isto tem que parar. Espreito por uma janela e vejo que o portão continua fechado e há dezenas de pessoas em frente dele querendo sair. Através duma pequena janela do portão verifico que o carro do meu pai já lá não está. Ligo-lhe e fico a saber que conseguiu avançar para apanhar a minha mãe, com quem entretanto também falo, e que está molhada até aos joelhos.
Volta a luz.
Depois de passar a grande confusão verifico que em 20 minutos fiz 16 telefonemas!
Agora é o rescaldo. Água a escorrer pelas paredes, corredores intransitáveis com água que parece vir até do Tejo e nós com ar de pescadores de rio com a roupa manchada de água até às virilhas.
Lá fora ouvem-se carros a apitar, sirenes, muitas sirenes que se cruzam, nem quero imaginar o que vai pela baixa da cidade. Continua a chover embora moderadamente. O meu pai não foi à consulta, vai já a caminho de casa. Penso que estão criadas as condições para apanhar uma valente constipação. Penso também no sem-abrigo que ‘mora’ por baixo da escada da igreja a 100 metros daqui, coberto de folhas de papelão. E sinto uma gigantesca vontade de chorar.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Atenssão ao erro!

Ontem à noite Francisco Louça esteve à conversa com Mário Crespo no Jornal da SIC Notícias a propósito de ‘Os donos de Portugal’. Tenho-o na secretária mas ainda não o li, embora esteja curiosa. Porém, estas palavras não são sobre o livro e sim sobre a SIC, cujos funcionários da edição em directo estão a conversar sobre tudo e não a prestar atenção ao que estão a fazer.
Lembro-me de ter acompanhado uma pessoa que foi ser entrevistada na SIC e enquanto decorria a entrevista eu estava na retaguarda a ver em directo e, em simultâneo, a ver na televisão, ou seja, a ver o que as pessoas vêm em casa. A legenda por baixo do entrevistado tinha, não um, mas dois erros no nome do entrevistado. Perguntei em sussurros quem fazia aquilo e indicaram-me uma cabina onde estavam duas pessoas diante de mesas de mistura e mais equipamentos dos quais não sei o nome. Bati no vidro e fizeram-me sinal para entrar.
- Desculpe, o nome na legenda está mal
Olham as duas para o ecrã e dizem:
- Ai pois está.
Inclinam-se para a frente e teclam no computador. Vejo que apenas corrigem um erro, o outro mantêm-se.
- Olhe… ainda está mal.
Voltam a olhar e finalmente lá corrigem tudo.
Penso que se fosse comigo ficaria envergonhada, mas a dupla continua como se nada fosse e eu volto ao meu posto de observação.
Ontem aconteceu o mesmo. Em duas legendas diferentes havia dois erros, um deles ainda corrigido, mas apenas na última vez que apareceu. Imagino-os no último segundo a darem conta dum trabalho mal feito e a alterarem o que nem devia ter sido escrito. Singulares casam com plurais sem qualquer problema, femininos com masculinos, passados com presentes e futuros, fazendo as legendas, não só da SIC mas de todos os canais, parecerem textos escritos à índio, onde pouco mais se sabe que o infinito dos verbos.
Custa-me este desleixo, esta inércia, a sorna que se sobrepõe à aplicação, ao empenho e atenção ao que se faz. Ninguém parece importar-se. Ninguém é chamado à atenção. Ninguém se preocupa.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Coexistir

O catálogo da Biblioteca

Uma aluna entra na Biblioteca, vagueia pelo piso da entrada e dirige-se ao balcão de atendimento insurgindo-se contra a falta do catálogo bibliográfico. A funcionária espantada diz que existe, que está mesmo ali, e aponta dois computadores. A aluna, como se fosse personagem dum filme cómico, pergunta, aqui onde? A funcionária pensa que ela brinca e responde com um sorriso. A aluna olha-a fixamente e pede para falar com alguém da Direcção da Biblioteca. Calho a ser eu.

- Esta Biblioteca não tem catálogo?
- Tem sim minha senhora, temos tudo informatizado, pode consultar o fundo bibliográfico num destes computadores ou directamente de casa e, se lhe for conveniente, pode fazer pedidos de empréstimo domiciliário por e-mail.
- Não me está a perceber… eu estou a perguntar pelo catálogo da Biblioteca! As fichas manuais onde posso pesquisar o que vocês têm!
- Nós temos catálogo informatizado, felizmente já não temos o manual.
Acentuo o felizmente.
- E tem alguém para me ajudar? É que eu não sei mexer nisto.
- Temos sim, espere um instante que já peço a um colega para a auxiliar.
Ela esperou, obteve a ajuda que queria e esteve sempre a reclamar, a reclamar, a reclamar…

Faça-se luz!

Há quanto tempo não passará o Senhor Presidente da Câmara da Amadora, ou algum dos Vereadores da autarquia, pelo cruzamento à entrada da Quinta do Borel? Não sei, mas sei que se lá passassem de madrugada mandariam imediatamente rever o anúncio luminoso que está à direita de quem desce, ao lado dos semáforos.
O anúncio é duma luminosidade intensa que quando muda a informação e aparece momentaneamente um gigante ecrã branco tendemos a fechar os olhos e, por um instante, pensamos estar na presença de algo divino, tal é a luz que dali provém!
Ora toda a gente sabe que fechar os olhos quando vamos a conduzir é, digamos, pouco aconselhável, não se recomenda, poderemos até dizer que é de evitar.
Nos serviços camarários dá entrada um requerimento que não menciona a intensidade de luz e ninguém se lembra de fazer a experiência antes. Aquilo deve estar regulado para a luz do dia onde é preciso um volume de luz que torne o anúncio eficaz mesmo em concorrência com o sol; porém, de noite, aquilo assume proporções do próprio astro, não se lhe altera a regulação e lá estamos nós a fechar os olhos enquanto aceleramos Amadora adentro e apanhamos aquilo a piscar. Não sei porquê mas parece-me um bocadinho perigoso, só um bocadinho, mas talvez seja eu a exagerar.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Chegou o Natal!

Foi em Agosto, mas fazia frio, muito frio, de tal forma que comprámos um polar, uma fita para tapar as orelhas e andámos com o abrigo, levezinho, que tínhamos levado, os dias todos que por lá andámos. Lá onde? Na Lapónia.
Como não podia deixar de ser fomos a Rovaniemi ver a aldeia do Pai Natal, a maior turistada da minha vida. Porém, tirámos o retrato da praxe e andámos por ali a passear, sendo o ali dezenas de lojas que mesmo em Agosto só têm coisas de Natal, ou não fosse lá a morada oficial dele.
Mas quem é que tem vontade de comprar bolas coloridas para o pinheiro de Natal em Agosto? E anjinhos? E vaquinhas e burrinhos? Uma camisola de lã ainda vá que não vá mas de preferência sem um gordo Pai Natal no peito ou uma manada de renas a voar em direcção ao pescoço!
Um dos serviços que têm consiste em escrevermos um texto que será enviado na data escolhida para a pessoa e morada que lá deixarmos. É um serviço bem pago do qual já reclamei vezes sem fim pois o meu sobrinho nunca recebeu a carta que lá deixei encomendada e paga. As reclamações vão para um caixa automática de e-mail que deve receber mais cartas que o próprio Pai Natal!
Tudo isto vem-me à memória pois como fui ao Leroy Merlin aí umas cinquenta vezes no fim-de-semana constatei que as decorações de Natal já estão em exibição. Entrei e senti-me nas lojas lá de Rovaniemi que, quais vasos comunicantes, ligavam umas com as outras, talvez para manter as pessoas quentinhas no Inverno e leves de bolso, pois andar ali é uma tentação e vamos ficando levezinhos a cada passo.
Tendo em conta que sábado fez um dia espectacular de sol, eu e mais meio mundo andávamos de roupa de Verão o que contrastava com toda aquela panóplia de fitas coloridas e bolas gigantones com ar de órfãs que querem ser adoptadas e levadas para casa. Sacos de neve e fitas com ar de terem estado ao livre no Árctico são vistas com mãos inquiridoras e, mais estranho ainda, são compradas por pessoas com ar compenetrado, certamente especialistas de anjinhos voadores entrelaçados com ráfia, uma profissão rara, mas que ali se concentra.
O gesto que mais gosto de observar quando alguém parece indeciso numa compra é o afastar da peça com a mão, colocando-a a certa distância da vista, como se a proximidade desse uma perspectiva enganadora e, então, afasta-se a coroa de ramos de pinheiro pensando se ficará bem naquela porta, por cima da lareira ou pendurada na parede. Parece que sim porque a senhora mete a coroa no cesto verde, enorme, onde já há uns anjos salpicados de neve e um trenó de vime, verde e encarnado.
Afinal devia ser Natal todos os dias, todos os dias comprarmos árvores e fitas, todos os dias enfeitarmos a casa, todos os dias fazermos bolos e troncos de Natal, todos os dias comprarmos roupa nova, todos os dias esperarmos com ansiedade a prenda que nos coube na sorte, todos os dias… ai o Natal não é isto?

Tarefas de homem

Como vivo só com o meu filho, as tarefas ditas de homem têm recaído no meu pai, mas agora que ele não pode, para além de ter dado um candeeiro e a colocação dum cortinado a estranhos, tenho sido eu a fazer algumas coisas. O mais surpreendente disto é as coisas terem saído razoavelmente bem feitas.
Tenho umas gavetas teimosas que só abrem ou fecham quando lá bem entendem, a menos que usemos da violência, o que me dá cabo das mãos. Então resolvi lixá-las e ver se, um pouco mais magras, já deslizavam melhor.
A marca da lixa é Dexter. Lembro-me da série de televisão sangrenta e sanguinolenta e concluo que a lixa é de elevadíssima qualidade. Passei a tarde de sábado a lixar gavetas enquanto a cozinha parecia um campo onde tivesse nevado neve amarela muito fina e delicada.
Comprei papel para forrar as portas dum armário e a madeira que esconde o estore e preparava-me para a colocar quando me apercebi que não tinha comprado cola! Os funcionários do Leroy Merlin devem pensar que fiz algum voto de peregrinação à loja porque nesta minha nova actividade esqueço-me com frequência de pequenos detalhes e tenho que lá voltar amiúde. É a falta de experiência! Mais uma chave de fendas pequenas que a única que tenho é para parafusos de linhas de comboios, mais um martelo, que o que lá mora em casa tem os dois lados em silicone, não sei para que raio serve aquilo, e muito menos para que o comprei.
A caixa do estore da sala é coberta de tecido, com mais desaparafusar e parafusos a caírem pelo chão da sala e a brincarem comigo às escondidas por baixo dos móveis, como se não soubessem que estou exausta de subir e descer do escadote.
O trabalho final deixa-me satisfeita, tanto que nem parece meu.
Afinal sigo o conselho da minha amiga e ando entretida com arrumações, renovações e limpezas. Pouco mais há no meu horizonte.

Grande Carrossel

O Grande Carrossel, no original Ace in the Hole, é uma história fabulosa e arrepiante (nomeado para melhor argumento em 1952) que recordo a propósito dos mineiros chilenos, já resgatados. A história baseia-se na persistência dum jornalista em conseguir um furo jornalístico e para isso atrasa o resgate dum homem, lembro-me dum, não sei se havia mais. Recordo que a meio da acção alguém ou alguma coisa permitia que o homem fosse resgatado, mas a ânsia e a fúria do jornalista, de voz rápida e convicta, consegue o impensável, que a operação de resgate não se realize, em nome das audiências e, se bem me lembro, o homem morre, sem grandes problemas de consciência dos da superfície, que precisam de aumentar os lucros, em função da necessidade de comer.
Nunca esqueci este filme, assim como O Homem de Kiev; a cena onde o carcereiro lhe cospe na sopa e lha dá, e ele, faminto e aterrorizado, come-a, é inesquecível. Podia enumerar outros, mas estes dois chegam e, vá lá saber-se porquê, um lembra-me o outro.
Ouço que os mineiros chilenos sofrem de diversos traumas (pudera!), são divulgadas informações segundo as quais, eles pediram para sair antes da tragédia, vejo-os na televisão a chorarem perante a luz do mundo dos média, televisões do mundo inteiro debruçadas sobre eles, eles que sobreviveram na escuridão, e quando digo sobreviveram não me refiro aos meses que estiveram soterrados impedidos de espreitar a superfície, mas refiro-me isso sim, às suas próprias vidas, desde tenra idade mergulhadas nas profundezas da Terra.
O líder continua impassível, falando calmamente, com ar de comandante; parece deslocado do grupo, um grupo que parece respirar mais depressa que todas as outras pessoas, com medo que o oxigénio se acabe, que tudo tenha sido um sonho e que, afinal, ainda estejam no escuro. Uns pedem a noiva em casamento sob a ribalta, outros são pais de bebés cujo destino parece ter sido alterado radicalmente face aos acontecimentos, outro mostra uma calma estranha, uma atitude inesperada, uma força que não se percebe de onde vem, um alhear do seu estatuto de herói.
Impressiona-me a atitude deste homem que pouco ou nada se emociona, que continua a liderar, que segura o fio-de-prumo com prudência e uma certa alienação.
Fala-se já, é claro, de fazerem um filme com a história, à imagem dos atletas perdidos no cume do mundo há décadas atrás. Que não se percam estes no cume da fama, depois de terem sido resgatados das entranhas da terra.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

No Centro de Saúde

Hoje fui ao médico ao Centro de Saúde. O mesmo é dizer, hoje fui ao cinema ver um filme realista, ou um documentário.
Esperas e filas e senhas amarelas e senhas verdes à parte, enquanto esperava numa minúscula sala dum segundo andar, onde os velhotes chegam já em coma, depois duma subida pior que a do Bom Jesus de Braga, desenvolveu-se uma conversa de estalo entre duas companheiras de infortúnio medicinal. Falavam mal do governo, deste e de todos os governos que já existiram, sendo que uma delas afirmava que o problema não era do Primeiro-Ministro, não senhora, nem dos Ministros, nem do Presidente da República mas sim das Câmaras e das Juntas de Freguesia. Não falava da boca para fora, tinha estado duas vezes lá fora (adoro esta expressão; depois percebemos que era no Canadá), e só tinha ido duas vezes porque o falecido marido não gostava de andar de avião, não era que o filho não os convidasse ou não insistisse, que insistir, insistia ele, mas felizmente (sic) o marido morrera e ela aproveitara e fora lá já duas vezes.
A outra atenta, perante este palavreado sem que nada se apresentasse de concreto que esclarecesse a razão da culpa das Câmaras e Juntas, perguntou-lhe o que tinha o Canadá a ver com o assunto.
- O que tem a ver? Então a senhora não sabe? Não pagam portagens! Ah, isto não sabia você!
Perante esta revelação, feita como se fosse o último segredo de Fátima, a outra calou-se momentaneamente, dando ideia que se preparava para uma resposta à altura e quando todos esperávamos expectantes que falasse em impostos ou elogiasse o maravilhoso país que é o Canadá, não por saber por experiência própria como a interlocutora, mas por ouvir dizer e o que se ouve contar também conta, ela diz:
- A minha filha também usava o cabelo assim comprido, dava uma trabalheira pentear que nem imagina, a menina deve imaginar pois o seu é muito grande, mas as pessoas não lhes passa pela cabeça o que isso é, e sabe, ela, mesmo de Inverno, lavava a cabeça de manhã e saia-me p’ra rua assim, com a trunfa toda molhada, ora no Verão, é como o outro, mas no Inverno, às vezes com dias que valha-me Deus.
A assembleia ficou baralhada e não percebemos se a conversa era comigo ou com outra mulher que tinha igualmente cabelo muito comprido, eu a esperar que fosse comigo pois não é todos os dias que me chamam menina. Não tivemos tempo de perceber nada porque um Dona Fernanda em voz rouca fez-se ouvir num altifalante e a mãe da filha de longos cabelos, qual Lady Godiva, levantou-se e caminhou para a porta do gabinete médico.
A primeira, a que estivera lá fora, continuou em frente a toda a velocidade, agora que já não havia uma maluquinha que falasse de cabelos quando ela falava de portagens!
- Na minha casa comeram comunistas, centristas e outros, comeram todos e sentados à mesma mesa! Era o que faltava!
Eu nem tinha começado a ler porque cheguei a meio da palestra e estava interessadíssima em ouvi-la, quando chega novo candidato ao estetoscópio, a bufar, rapaz aí para quase oitenta anos, que se atira para cima duma cadeira e só instantes depois distribui os bons dias, ainda com a respiração acelerada. Face a esta aparição a senhora que nos informou não haver portagens no Canadá começou uma nova intervenção sobre as instalações do Centro Médico, com absoluta razão, até que, já em ar de comício disse:
- Alguém me explica porque temos que ter uma biblioteca? Sim, os médicos fazem mais falta e a biblioteca está ali tão bem localizada, mesmo no centro, com estacionamento e tudo, atão não era de verem as coisas com olhos de ver e porem lá o Centro de Saúde?
Silêncio na plateia.
- Eu até conheço bem aquilo, vou lá quase todos os dias, ainda ontem de lá trouxe isto.
O isto era Adelino Amaro da Costa: Histórias de uma vida interrompida, que nos mostrou, realçando a etiqueta na lombada, prova que pertencia à biblioteca e, para isso, levantou o rabo ligeiramente do assento e passou o livro a trote diante dos nossos olhos, que a mirávamos entre o deslumbrado e o estupefacto.
- Eu já disse isto às pessoas lá da biblioteca e elas até concordaram comigo.
Nesta afirmação mostrava ser uma Brites de Almeida, sem medo nem pejos nem papas na língua e eu vi-me na situação de desertora pois a voz rouca fez-se ouvir chamando o meu nome e, com pena, abandonei a palestra que tão interessante estava a ser. Espero que ela tenha sido a última a ser chamada para poder ter tido tempo de iluminar a assembleia que ali ficou.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Da Inutilidade

Em conversa com uma amiga conto-lhe que passo a vida a lavar e a limpar, eu que sempre detestei essas modalidades de passar o tempo e ela responde-me que ainda bem, que assim estou entretida. Fico triste e magoada com a resposta e digo-lhe, expresso a tristeza que é passar de casa para o trabalho e do trabalho para casa, em viagens de metro onde nem há paisagem, mesmo repetida como a dos comboios à superfície, para que a possa ver. Viajo num tubo de metal com paredes negras que de estação em estação se mostra a uma superfície de luz artificial para entrarem e saírem outras pessoas como eu. Assim, entreter-me com lavagens de roupa e vidros e janelas e chão e quejandos é tudo menos entretenimento.
Depois dum dia cheio de vazios, decido procurar o limpa metais e limpar o candeeiro de cobre que o meu avô me ofereceu; termino e sento-me a olhar a televisão; a imagem faz-me passar do olhar indiferente para ver com olhos de ver: está a dar a história fabulosa de John Nash, um útil.
Fico sentada até terminar e desligo a televisão sem me levantar. Olho em redor, a minha sala limpa e cheirosa, arrumada como nunca esteve e os meus livros, parte deles, pois a totalidade anda em diáspora de empréstimos e vivem em casas que não são as minhas, mas onde estão bem. Sinto-me inútil e sei que o sou embora mo queiram fazer entender que não.
A iluminação de John Nash fez-me aliviar a pressão que sentia no peito em consequência dum telefonema horas antes que me deixara afogada, mas desligada a televisão voltou a lembrança: decidi que não voltaria a contactar uma pessoa amiga e esperaria o seu contacto. Passaram-se meses e ontem à noite ouvi-lhe a voz e fiz ouvir a minha dizendo que estava magoada por tanto tempo de silêncio. Seguiram-se as devidas desculpas, lágrimas e mais desculpas, com a certeza que há amizades que são eternas. Não deixo de me sentir inútil.
As dificuldades económicas levam-me a descobrir os prazeres da limpeza da casa e afastam-me dos circuitos das amizades, de cafés e lanches aos fins-de-semana, de jantares de aniversários ou outros, de cinemas, de teatros (o que é um teatro?), de caminhadas no paredão da praia. Até as livrarias, as minhas igrejas, são evitadas porque temo que me dê uma filoxera e roube alguma coisa. O convívio dos almoços mesmo aos dias de semana há muito que foi extinto porque trago almoço de casa e saio apenas para beber café.
As minhas rotas estão perfeitamente estabelecidas numa rotina mais precisa que a dos cacilheiros que tocam alternadamente no Terreiro do Paço e em Cacilhas. Ouço a Rita Redshoes e não sou capaz de a acompanhar naquilo que para mim é mentira porque não sou capitã da minha alma, a vida rouba-ma, desfaz-se aos poucos, num corroer que já foi invisível mas agora é bem palpável.
Sinto esta transformação que me assusta, esta passagem para outra pessoa que não sou eu, como se alguém me mudasse de maca sem que eu pudesse fazer nada, anestesiada. Leio e leio e leio e vivo vidas que não são minhas, interrompendo a leitura mas ansiando voltar porque sinto que deixei alguém a falar sozinho. É um facto, falo mais com os livros do que com as pessoas. Percorro as estantes com os dedos acariciando lombadas como se telefonasse a alguém e perguntasse se está bem de saúde. Penso em tudo o que não li como se fossem pessoas que esperam o meu abraço, o meu pequeno fôlego útil. Poucas coisas me interessam e a minha curiosidade não é cor-de-rosa seja com quem for, mas cresce desmesuradamente com a vida das personagens dos livros que me passam pelas mãos. O que terá acontecido ao senhor muito velho com umas asas muito grandes, de García Márquez, depois de se ter tornado um ponto imaginário no horizonte do mar? Posso ser eu a dar-lhe destino? Então fugiu daquela terra e foi aterrar com asas novas num sítio não descoberto pelo homem mas cuja terra é macia e onde chovem flocos de letras que agrupadas da maneira certa dão outros homens e mulheres com asas. Deve ser bom ser-se alado, será a frase final dita por um ser sem asas que ali vai parar por acaso. Posso ser eu. Mais uma vez inútil, num sítio onde todos são diferentes.
Penso que tenho que parar de ler, tenho que parar de fazer planos com livros, como quem enumera os meses ou as estações do ano, as tarefas domésticas ou a agenda, num sequenciar obrigatório. Mas depois da decisão tomada dou por mim a pensar no vício, inquieta, atormentada, pobre, mais inútil. Mais inútil ainda.
Espero o final do mês e penso no convite para ir ver um espectáculo a que não dei resposta; faço imediatamente as contas: o bilhete vale um novo Bolaño, um Ruiz Zafón, um John Irving ou a Viagem à Índia do M. Tavares. Talvez até dois deles. Já me decidi cá dentro, apenas não mo comuniquei a mim própria oficialmente, mas sei que receberei e correrei qualquer prova de obstáculos em direcção ao primeiro passador vestido de livreiro. E consumirei. E enquanto estiver absorta pela vida de outrem, pelos passos de alguém, não verei as horas de deitar nem de comer, deixarei esta vida e transformo-me numa observadora de tempos passados ou futuros, de acontecimentos reais ou inventados, de ruas que existem ou apenas ganham vida instantânea com o passar dos meus olhos por elas, para permanecerem num limbo até que aquela página volte a ser aberta. E assim se respira, numa inutilidade que me afoga, numa fuga alucinada de mim, num círculo exausto de mais e mais, com tão pouco, quase nada.
Este fim-de-semana não há jogos e já tenho planos: ao contrário de amigos que têm a mesma vida desportiva que eu e vão aproveitar para arejar de sábados e domingos atrás duma bola com as mãos vermelhas de bater palmas ou as vozes roucas de gritar, vou arrumar armários e transferir roupas de Verão e Inverno, roupas velhas e gastas que de novo não há nada, e sei que a cada peça que tire ou que arrume vai saltar um livro, uma página, uma tirada que decorei sei lá porquê, a camisa preta com riscas brancas que tem uma nódoa que lá caiu enquanto lia e comia ao mesmo tempo; outra camisa, branca com bordados, que foi comprada pelo meu filho em Belleville, morada de Benjamin Malaussène; o fato cinzento do qual desisti em prol duma biografia de Bruce Chatwin, e que acabei depois por comprar em saldos e outros, cada um com a sua história, a sua ligação.
Arrumo, logo sou útil? Não, não e não. Sinto que faço o meu trabalho, aquele pelo qual sou paga ao fim de mês, mas perdi-me da comunidade, como se fosse uma estátua no meu habitat, que ocupa espaço mas não serve para nada. Quem sabe até esse espaço não será preciso para outra coisa qualquer? Por isso não me imponho, seja a quem for, à excepção das minhas janelas que não tarda darão sinal de deterioração com tanta lavagem.
Sinto à légua o aborrecimento que transporto, a canseira que me é cada vez mais inata, a repetição de conversas de doenças que abomino, sempre com os meus mundos paralelos a voarem invisíveis sob a minha cabeça e a meterem-se no meio de conversas, assim como se metem na minha roupa ou na cara dos ocupantes do metro que identifico como personagens dum livro, mesmo que eu os afaste e lhes abra os olhos exigindo-lhes silêncio. Por isso com frequência sou uma conversadora estranha parecendo que falo para uma plateia de anjos ou fantasmas, pois os de carne e osso têm outros interesses, mais naturais, mais terra a terra, mais materiais. Não lhes sou útil, já fui, mas já não sou. Sinto-me como alguém que morreu, do qual sabemos o nome e ocasionalmente recordamos uma coisa qualquer, mas cuja utilidade se extinguiu.
Não preciso de médicos para me dizerem que tudo isto consubstancia uma fuga. Já o afirmei e assumi. Quero fugir de mim, como dizia alguém, tirar férias de mim própria ou, talvez ainda seja melhor, licença sem vencimento de longa duração da minha pessoa. Quero fugir desta tristeza que me consome, que se alimenta de cada partícula de mim, que me faz transformar, que me consolida em inútil.
A linha que me liga ao universo da utilidade é o meu filho, muitas vezes penso que é a única coisa que me liga ao universo da normalidade, das pessoas, do mundo. Acordo antes do despertador tocar e naqueles breves instantes, estremunhada, penso que me transformei em letra, que levantarei a cabeça e verei o meu corpo como um A ou um Z, uma coisa esquisita digna de andar de feira em feira, como a mulher com cabeça de cobra ou o homem elefante.
Procuro alegrias, nem que sejam pequeninas, minúsculas, mas só vejo doenças e tristezas e não há motivo para alguém, seja quem for, ter que me aturar, a mim e às páginas dos livros que arrasto como se fosse uma serpente e carregasse todas as peles que já devia ter perdido, como um camião com atrelado cheio de males que expressados podem ser contagiosos.
E por isso sofrem as janelas e as madeiras do chão que são esfregadas e esfregadas, até que o vício fala mais alto e a galope instalo-me de livro na mão. Nenhum me faz sentir inútil, nem a mais, não me cansam, não me fazem perguntas. Deixam-me estar ali. Não leio nos intervalos, a minha vida é o intervalo das leituras, com toda a inutilidade que isso acarreta.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Design Bohemia versus Cristal da Boémia

Leio que a revista Lux lançou uma colecção de copos de cristal de design Bohemia para seis pessoas. É um serviço de 24 peças, com 4 modelos: vinhos, tinto e branco, água e flute de champanhe. A colecção vai estando disponível entre Outubro a Março e cada copo custa 3, 65€ (para o continente).
É claro que isto não bate o eterno, o memorável, o fantástico Faqueiro da Minha Vida, uma outra oferta já não me lembro de quem, sobre o qual já divaguei perguntando-me, e até hoje a minha totózice tem sido tanta que ainda não tenho resposta, como se pode ter um faqueiro da nossa vida…?
Ora ter um serviço de copos de cristal por menos de 90 euros é maravilha! Isto se nos ativermos às 24 peças, para seis pessoas, pois eles não se devem importar se comprarmos mais uma dúzia ou duas, não nos acanhemos, afinal isto é cristal design Bohemia. Se fosse cristal design Baixa da Banheira, embora fosse cristal na mesma, mas já não o queríamos! Mas aí podíamos nomeá-lo em checo e ficava qualquer coisa como design Nízká koupel, sempre era melhorzinho. E fino.
Vénia seja feita aos cristais da Boémia, conhecidos em todo o mundo como cristais de reis, pela beleza, delicadeza e trabalho que transportam. Quem se interessa minimamente por cristais associa imediatamente aquela zona da Europa central às peças delicadas que chegam a atingir fortunas em leilões. É um golpe publicitário bem esgalhado, este do design Bohemia, porque faz tocar campainhas na cabeça das pessoas, sinetas ou qualquer outro badalo.
Mesmo eu que bebo por canecas e chavelhos não deixo de admirar os cristais da Boémia, mas nem tanto os de design Bohemia

Nova modalidade de assalto

Recebi um e-mail a avisar-me sobre uma nova forma de assaltar que me mereceu uns minutos de atenção.  Pergunto-me quem escreverá o original destas coisas: estará com pressa? Isto será traduzido no tradutor do Google dum original num dialecto em vias de extinção? Se não é, parece. Só as maiúsculas são do texto original, em caixa baixa são devaneios meus.

SE DE NOITE TE ATIRAREM UM OVO CONTRA O PARABRISAS (O RECONHECERÁS POR A COR AMARELA, JÁ QUE A CLARA TALVEZ NÃO A DISTINGAS):
Cor amarela! A ver se não me esqueço e ainda bem que avisam porque o mais certo era pensar que o sol tinha desabado lá do outro lado do mundo e em contacto com a atmosfera entrava num processo de liquefacção e aterrava no meu carro com ar de ovo.
A clara! Informação importante. Pode ser confundida com muco nasal de, sei lá, por exemplo, um anjo que por ali ande constipado e espirre de repente ou assim. Clara do ovo, clara do ovo, vou repetir para não me esquecer.
A informação é importante demais para me deter na falta de hífenes e confusão de português.

MANTEM A CALMA E ACELERA
Falta de acentos aparte, ok.

NÃO USES O LIMPA PARABRISAS
Outra informação importante e que me descansa porque já percebi que isto é uma manobra praticada no Verão, quando raramente usamos o limpa pára-brisas.

JAMÁIS DEITES ÁGUA NO PARABRISAS
Ah! Aqui estão os acentos fugitivos!

ACELERA E FOJE, QUE OS LADRÔES ESTÂO POR PERTO MAS SOBRETUDO NÃO PERCAS OS NERVOS USA O TELEMÓVEL, SE FOR NECESÁRIO.
De facto, FOJE fica melhor que FOGE porque podia alguém ter a tentação de ler FOGUE e isto ficava sem sentido! Para além duma omeleta no vidro do carro ainda vai haver nevoeiro? Não há condições! E depois queixam-se dos acidentes!
Leio esta indicação e fico verdadeiramente preocupada: há a possibilidade de perder os nervos? Mas eu preciso deles! São-me essenciais! A ver se não me esqueço desta, fugir para não perder os nervos!
Usar o telemóvel… ligo para quem? Deviam ter posto aqui o número para estas situações.
PS. Ao princípio pensava que isto era sobre roubos de carros mas já percebi que é tráfico de órgãos humanos!

EXPLICAÇÃO:
O OVO COM ÁGUA, AO UNIR-SE, FORMAM UMA SUBSTÂNCIA VISCOSA COMO O LEITE, NA QUAL TE VAI IMPEDIR DE VER POR ONDE VÁS, TAPANDO A VISÃO EM CERCA DE 90% E SERÁS FORÇADO A PARAR POR ESSE SITIO ONDE CIRCULAS AI SERÁS VÍTIMA DE ROUBO. ESTA É A ÚLTIMA MODALIDADE QUE OS LADRÕES INVENTARAM.
Isto é nitidamente para Homens! Todas as mulheres sabem o que faz juntar ovo com água!
Outra informação importante: seremos forçados a parar por esse sítio onde circulamos. Bem, ao menos não nos desviamos da nossa rota, não nos mandam para sítios fora de mão.

POR FAVOR, ENVIA ISTO A FAMILIARES E AMIGOS
Atenção, isto não é para enviar indiscriminadamente: é só para familiares e amigos. Se cumprirmos esta indicação temos mais hipóteses de nos safar, pode ser que os inimigos nunca saibam e sejam eles a apanhar com os ladrões pela frente.

Media Market

A campanha publicitária do Media Market é de génio! Sim, eu é que não sou parvo (o sim está a bold porque é dito com imensa crença e afinco) é uma tirada que não tem comparação com alguma outra pois nunca houve no universo publicitário, uma coisa tão portuguesa, um estribilho tão enfunado, um lema repetido com convicção por gente de bigode façanhudo que nos faz prostrar a seus pés perante tamanha iluminação. Os que não são parvos sobressaem entre os totós e reconhecem-se por usarem meia branca e colarinhos bem abertos, peitaça à mostra, numa atitude que não deixa dúvidas sobre quem são, gente sem medo, e não têm medo porque não são parvos!
Sim! Eu é que não sou parvo, não nos deixa imunes porque é dito com uma voz troante e que carrega bem em cada sílaba, como se fosse um autómato que repete sem saber o significado do que diz, mas isto é só parecença, porque quem o diz não é parvo.
A eficácia da campanha assenta num país de espertos onde cada cidadão tem um QI, de quanto não sabemos, mas tem. E os tontinhos que acharem que QI quer dizer Quociente de Inveja, por não poderem suportar que o vizinho tenha uma galinha melhor que a minha, desenganem-se porque quer dizer Quociente de Identidade! A nossa identidade é inatamente esperta e porquê? Porque sim, porque eu é que não sou parvo! É claro e óbvio!
Quando precisar de comprar alguma coisa irei ao Media Market porque algo me diz que qualquer aparelhómetro ou electrodoméstico já vem a trabalhar pelo caminho, previamente ensinado e ensaiado, sem precisar de manuais de instruções, porque isso é para totós. Por outro lado, sinto-me intimidada ao pensar que entrarei num local onde vão os que afiançam que não são parvos, gente doutra estirpe com vários anéis nos dedos até no mindinho. Pensando bem não vou, pois sentir-me-ia como se entrasse no Paço Real, qual plebeia que só vai ver porque não se pode alcandorar a dizer que não é parva, uma vez que sendo todos tão espertos, assim que se quisesse fazer passar por um deles era logo descoberta.
Caramba, mas fico com pena.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A minha escolha

Sabendo da minha sede de viajar, tão grande quanto o meu vício de ler, apenas não tão concretizada por questões financeiras, desafiam-me para em 20 linhas dizer onde gostava de ir e porquê. Difícil.
A primeira tentação é agarrar o que me vem ao pensamento, deixar-me voar e perder-me. Tento criar alguma disciplina e, não fosse eu o que sou, organizo a coisa por ordem alfabética. Muito discutível, mas eficaz, principalmente para mim, que anseio por tanta distância, toda, qualquer distância que me trará conhecimento e riqueza.
Nestas poucas linhas revisitei de memória livros e filmes, lembranças de lugares onde nunca fui mas cuja menção me faz arrepiar, ruas que conheço sem saber que existem, paisagens que me sufocam de emoção. Acredito até que alguns destes locais poderão ser desilusões, mas por ora são esperanças e não desisto delas nem que chovam canivetes.
A cada um dos locais eleitos foi agregada uma razão que, obviamente, não será a única, mas é um dos motivos de eleição. A forma telegráfica foi a maneira de conseguir não ultrapassar as 20 linhas impostas e revelou-se uma boa opção, embora condicionada.
Há vários locais que não são nomeados pelo feliz motivo de já os conhecer. Mas mesmo assim, a muitos, a quase todos, a todos, adorarei voltar.
Há viagens que vivem sempre na minha cabeça até as realizar, a maior parte ainda cá mora; para dizer a verdade, não são bem viagens, são mais momentos: percorrer o Siq, caminhar na muralha da China, petrificar na Praça Vermelha, respeitar a Praça de S. Pedro, navegar em Veneza, ser abocanhada por S. Paulo, ter um pé de cada lado no círculo polar árctico, parar a meio da Ponte do Bósforo entre a Europa e a Ásia, ver o mar no Cabo da Roca, extremo oeste da Europa Ocidental e podia continuar, não até à exaustão, porque não me cansaria. Outras ainda estão por realizar, coisas simples para mim, simples na perspectiva da necessidade, do anseio, como usar o Mekong e ir a Angkor Wat ou ajoelhar-me aos pés do Kilimanjaro.
Há outra viagem, uma verdadeira colecção de momentos da qual, tenho a certeza, vou tirar o maior partido; sendo a mais longínqua, a mais inacessível, dela não tenho dúvidas, pela companhia que me está reservada, pela mão que me conduzirá pois, ao contrário do que tenho feito, serei levada e por isso espero, com a maior esperança, aquela espera que sabemos ir ser recompensada, quando formos à Lua. O meu companheiro ainda é uma criança, como uma duna a ser criada, mas a certeza que tenho é maior do que o Everest.
Assim, por agora, em menos de 20 linhas, aqui fica a minha escolha e o singular é propositado: cada um vale por todos, pelo planeta que amo, as cidades que venero, as pessoas que me atraem, as montanhas que me marcam, os mares que me afogam nesta superfície da vida. Ir é viver, que ninguém duvide.

Arábia por Meca; Azarbeijão por Baku; Butão pelo simbolismo; Botsuana pelo Kalahari; Cambodja por Angkor Wat; Chile pela Patagónia; Dinamarca pela Jutlândia; Djibuti pelos lagos de água salgada; Eritreia pelo Grande Vale do Rift; Egipto pela História; Fiji pela água; Filipinas por Manila; Guatemala pelos vulcões; Geórgia pelo alfabeto; Haiti pela feitiçaria; Hungria por Budapeste; Índia por Gandhi; Iraque pelos sumérios; Japão pelos samurais; Jamaica pelo sincretismo; Kiribati por ser tão pequeno e ocupar uma área tão grande; Kuwait pelo exagero; Líbano por Beirute; Líbia por Tripoli; Mongólia por Ulan Bator; Madagáscar pela localização; Nova Zelândia pela distância; Noruega pelas auroras boreais; Omã pela Fortaleza de Mascate; Panamá pelo canal; Peru pelos Incas; Quénia pelos Masai; Quirguistão pelas estepes; Ruanda pelo Virunga; Roménia pela Transilvânia; Singapura pelo porto; Síria por Damasco; Tanzânia pelo Kilimanjaro; Tailândia por Banguecoque; Ucrânia por Kiev; Uganda pelo Lago Vitória; Vietname por Saigão; Venezuela pelo Salto Ángel; Zâmbia pelas savanas; Zimbabué pelas Cataratas Vitória. O Pólo Norte e o Pólo Sul pela essência do que são.

“Não sei onde estão os desempregados deste país, mas não estão no Douro”

Quem faz esta afirmação é Frederico Meireles num artigo do Jornal de Notícias com o título 'Este país não gosta de calçar galochas'. Diz ainda que ‘se não fossem as comunidades búlgaras que emigram para cá de Agosto a Outubro e as empresas de trabalho temporário, teríamos que cessar o negócio’ (sic da caixa na edição em papel) e continua '...a pouca mão-de-obra que existe disponível está entretida com as formações de rendas e bordados que o Governo inventou para elas". Quem ali trabalha, consegue auferir cerca de 2000 mil euros no fim de uma campanha, "mas fazer formação dá muito menos trabalho" '
Ora toda a gente sabe que quanto menos trabalho melhor, digo eu. Os exemplos são vários das pedinchices a que nos habituámos, Novas Oportunidades incluídas. Quanto menos fizermos e mais conseguirmos sacar a alguém maior é o nosso estatuto de herói aos nossos próprios olhos. Olhamo-nos ao espelho e sorrimos contemplando a nossa figura.
As crises estão na ordem do dia mas as filas de trânsito crescem; discute-se o orçamento mas o Portugal real dá mais importância ao que o Ronaldo e a namorada gastam em sapatos; temos a vida de pantanas e o futuro hipotecado mas há urgência em saber tudo sobre a filha da Bárbara Guimarães.
Falta-me a paciência cada vez mais e pergunto-me, para quê gastar tempo com a maioria das pessoas? Fazem-me falta as conversas, mesmo sem nexo, com certo Amigo, testemunhadas por uma garrafa de vinho e uma refeição. Fazem-me falta as perguntas dele, sempre crítico, activo e questionante. Perguntas que podem ser de retórica, não interessa, perguntas que querem saber se eu já li este ou aquele autor, na maior parte das vezes, na grandíssima parte das vezes, que não li. Mas ele leu e relata-me o pensamento de gente como se os tivesse conhecido e eu ouço-o e invejo-o.
Este Amigo não tem medo nem pejo em calçar galochas, antes pelo contrário, mas já mirrou aquela cepa e já só o temos a ele e nem mesmo assim sabemos reconhecer o que vale mesmo a pena. E se alguém puxar do adágio e disser que tudo vale a pena quando a alma não é pequena, eu respondo que as almas estão em vias de extinção.

A propósito de galochas, agora num registo mais leve, numa ocasião em que fomos à Serra da Estrela, os meus pais tinham oferecido ao Duarte um fato de neve, maravilha adquirida nuns saldos do Continente e que trazia luvas e óculos de neve incluídos. Um estrondo.
Lá subimos até perto da Torre, o rapaz com os seus sete ou oito anos enfiado naquela carapaça, no banco de trás com ar de artista, bota de borracha metida por baixa da perna da calça de tecido de impermeável. Estacionámos à vontade num dia de semana com a neve para nós e mais meia dúzia de outros esporádicos visitantes. O Duarte saiu do carro com a imponência dum habitué de Chamonix e quando me viu ir ao porta-bagagem e substituir as botas por umas de borracha brancas com salto verde – património que ainda hoje não sei de quem herdei – puxou os óculos que lhe davam ar de mosca para o alto da testa, pôs as mãos à volta da cintura e disse:
- Mãe! Com franqueza! Trouxeste as botas de lavar o quintal?
Só não nos deitámos para o chão a rir porque havia neve em todo o lado.

Arroz de tomate com carapaus fritos

O meu almoço de hoje vai ser arroz de tomate com peixe frito, iguaria que sobrou ontem do jantar e que é o comer de praia mais famoso do mundo. Pelo menos para mim.
Na altura em que íamos para a praia ao raiar do sol e vínhamos de lá ao lusco-fusco era preciso levar alimento consistente e, vá lá saber-se porquê, este era um dos mais comuns. Lembro-me de ver famílias inteiras debaixo de toldos às riscas com uma mão a segurar um prato e a outra agarrada ao rabo dum carapauzinho frito que se comia só com uma dentada. Carapau de gato. Quem inventou este nome devia ter uma medalha. O pior do arroz de tomate e do carapau frito na praia era a espera de duas ou três horas para fazer a digestão, espera onde se desperdiçava o fresco do mar nas horas mais quentes e onde mais apetecia um mergulho. É inevitável que este prato me lembre da praia assim como qualquer talhada de melancia ou a simples menção à fruta me faz lembrar a minha avó Nicácia, adoradora de melancia e que, se fosse boa, rematava as dentadas com uma única palavra, e não eram precisas mais: Bela. Dizia bela devagar, como se fosse uma conclusão onde mais nada havia a acrescentar.
Hoje lembrei-me da minha avó por outro motivo: na clínica das análises estava uma senhora à minha frente que não sabia escrever e assinou com uma pomposa dedada azul. Dei por mim a pensar como votará ela? Alguém lhe diz qual o quadrado onde fazer a cruz e ela fará um xis titubeante mas à confiança. Como não levou o bilhete de identidade a senhora da recepção pediu-lhe que ligasse mais tarde a dar o número da sua identificação, caso não lhe fosse conveniente voltar à clínica. A senhora disse que também não conhecia os números e não podia telefonar a dar essa informação. Pensei na tristeza que consubstancia não saber ler.
O meu avô tirou a quarta classe já em adulto e isso sempre foi um orgulho para mim, expresso no esforço e no empenho e na teimosia dum homem do campo que achava que aquilo era importante demais para lhe passar ao lado, ainda que não tivesse qualquer intenção de fazer carreira nas letras ou perto delas. Mas era importante e ele fê-lo.
O que a minha avó gostava de melancia, o meu avô gostava de melão. Fui com ele aos meloais inúmeras vezes e uma das lembranças de infância que guardo é o cheiro a melão lá em casa, naquela casa que me parecia um palácio, enorme e fresca, tapada do sol escaldante do Verão alentejano com as portadas fechadas, mas cheia, sempre cheia e para a encher bastavam eles os dois. Havia melões em todo o lado, debaixo dos móveis e das camas que deitavam um aroma que se metia na memória e ainda hoje perdura, um cheiro doce e sereno, um cheiro que me embalava e hoje me faz sorrir.
A minha avó fazia fritos no fogão do alpendre e em casa não havia cheiros desagradáveis, como o que ficou ontem na minha casa da fritura do peixe. A casa dos meus avós cheirava a saudades, a avós, a abraços, a beijos, a quintal, a tardes soalheiras, a tanque de lavar, a chouriços e a carne fresca.
Lembro-me duma única vez a minha avó estar na praia a comer arroz de tomate com peixe frito. Sentada debaixo do toldo e completamente vestida. Lembro-me de nos dizer mil vezes que saíssemos da água, que já chegava, que descansássemos ao sol um bocadinho. Para mim ela era o altar que as famílias em certos países do mundo transportam consigo para onde quer que vão e nós levámo-la à praia, embora poucas vezes, que praia não era o seu destino favorito, ao contrário de mim.
Abençoado arroz de tomate com carapaus fritos que me faz sorrir perante tanta lembrança viva que em mim mora.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Campeões do desperdício

Cada vez que vou às compras trago para casa toneladas de plásticos o que me leva a pensar que as preocupações com o ambiente são simples palavras, falsas nos actos.
Uma costeleta com 100 gramas vem numa embalagem que pesa outras 100 gramas duma espécie de esferovite, com película por cima e num colchão fofo doutra matéria qualquer que absorve o sangue da peça de carne. Três costeletas têm direito a uma caixa gigante onde cabia o porco todo com pocilga incluída e espaço para meia dúzia de sobreiros para que o animal tivesse bolotas suficientes para se alimentar. Pergunto: para quê?
À excepção das salsichas frescas que vêm apertadinhas lado a lado, vem tudo à vara larga, como se as peças de carne precisassem de espaço para, mais do que respirarem, correrem a maratona. É Bruxelas que exige que o comer seja vendido assim em detrimento do gasto, a vários níveis, com o ambiente? São as empresas fabricantes destes produtos que não vendem outros com dimensões apropriadas?
Trazemos para casa embalagens para produtos alimentares em plástico, alumínio e papel, latas de conservas em alumínio, latas de aerossóis, embalagens cosméticas, farmacêuticas, e mais um mundo de desperdício que pagamos bem pois não acredito que tudo aquilo não se reflicta no preço dos bens de consumo. Pergunto: para quê?
Vou comprar pão à loja da esquina e o empregado põe os pãezinhos num saco de papel que, por sua vez, mete num saco de plástico com asas. Para facilitar.
Na secção de legumes dos supermercados há cenouras e alho francês e abóbora e feijão verde e mais cinquenta outras coisas já embaladas – nas tais caixas que parecem esferovite – e que custam apenas 1 euro. O consumidor vai atrás do 1 euro pensando – mal – que é uma oportunidade a aproveitar. Porém, se olharmos com olhos de ver verificamos que são mais caros que os que estão ao lado para serem vendidos ao peso! O euro que pagamos, embora nos pareça pouco, incluí o trabalho de embalamento bem como o preço da caixinha que, em casa, vai directa para o caixote do lixo. Pergunto: para quê?
A forma como as coisas nos chegam às mãos parece ter mais importância do que as próprias coisas em si. Um laçarote é sempre um laçarote, mesmo que lá dentro venha um par de meias brancas com raquetes nos tornozelos!

A encharpe toalha de mesa

Uma das particularidades deste tempo outonal, vésperas do Verão de S. Martinho, é a diversidade de roupa que se veste. Os armários atafulhados ainda guardam alguma roupa leve de Verão mas abrigam também mais pares de calças protectoras das manhãs e fins de tardes com temperaturas menos amenas; há casacos que atiram para o Inverno e camisas de alças; há uma multiculturalidade de vestes, ou melhor, uma grande confusão, tentativa de conseguirmos estar de acordo com as diferentes temperaturas que fazem ao longo do dia, o que é difícil mas não deixa de ser objectivo a atingir.
Como não sou excepção, embora a minha natureza encalorada me faça andar sem meias até meados de Novembro e preferir passar frio do que carregar casacos, de manhã procuro um abrigo leve, um casaco fino, um blusão de ganga, qualquer coisa que não me pese. Hoje dei com os olhos numa peça que a minha irmã me trouxe de Marrocos, ideal como cobertura para estes dias.
A peça é rectangular com dois metros de comprimento por um de largura, preta com um bordado de dois centímetros, no sentido do comprimento, feito duma lã grossa de todas as cores. Tem ainda como acabamento uma espécie de carcela vermelha a fazer ondinhas.
A bem da verdade a nova peça de vestuário trouxe-me alguns problemas em gerir a parte que fica nos ombros juntamente com as asas da mala e do saco onde levo o almoço, mas lá consegui pendurar tudo no ombro.
Ao instalar-me no metro vi que a senhora sentada à minha frente olhava a minha encharpe, mas aquilo que presumi ser admiração afinal era estupefacção por uma das pontas da dita ter um resto de papel colado, e resto é simpatia, pois os bocados de papel ali colados davam para fazer um livro. Levantei-me e virei o pano ao contrário, tapando os bocados de papel. Quando cheguei ao trabalho atirei a minha bela encharpe para cima duma cadeira e dei início à sessão do dia. Não tardou que entrasse uma colega que agarrou na peça de tecido e, descontraidamente, pôs-se a observá-la tendo-a esticado perguntando o que fazia ali uma toalha de mesa.
Eu bem quis dizer-lhe que aquilo era uma encharpe, que a estreava hoje, que tinha vindo do Alto Atlas, que… mas nada me saiu da boca porque eu também só conseguia ver uma toalha de mesa. Quando finalmente lhe disse o que era ela desatou a rir e disse-me que só eu para trazer uma tolha de mesa aos ombros.
Fiquei entre o irritada e o admirada/agradecida pois apesar de tudo naquela peça dizer toalha de mesa, eu não tinha visto semelhante função.
Conclusão, até pode vir a ser uma toalha de mesa mas hoje e até eu entrar em casa será uma encharpe!

sábado, 16 de outubro de 2010

Terra da treta

Vou às Finanças na Loja do Cidadão tratar dum assunto. Mesmo com simplexes o sistema está lento. A funcionária que me atende é simpática e eu digo-lho. Ela sorri tristemente e diz-me que paga a simpatia. Explica-se: o sistema regista o tempo que demora a atender um cidadão e quando há casos simples - não era o meu caso - as médias de tempo de atendimento são registadas como boas médias, como médias a seguir, como médias a copiar. Isso retira-lhes tempo para serem simpáticos. Explica também que estão a fazer nova remodelação no sistema informático ou seja, ficam sem acesso a certas informações que, sendo necessárias de repente, obrigam o cidadão a procurar a Repartição e os seus canhanhos para retirar e confirmar elementos que depois serão então entregues à frente avançada do simplex. Por um golpe de sorte não foi o meu caso, mas também não precisava de mais azar: vendi uma casa há cerca de três anos e informei as Finanças do seu valor. Um dia acordei a chorar desalmadamente e só percebi porquê quando me lembrei que era o dia do pagamento das mais-valias correspondentes. Paguei, calei e continuei a chorar. Passados tempos recebi uma cartinha das Finanças a darem-me uma novidade: nos entremeios da venda e da entrega da declaração às Finanças, uns camaradas quaisquer avaliaram a casa acima do que eu tinha nas minhas papeletas. Resumindo, venha cá minha minha senhora e faça nova declaração com o novo valor da sua casa. Calma aí, disse eu, vamos lá ver a coisa primeiro, até porque vocelências dizem que posso reclamar e eu quero exercer esse direito. Trocámos então correspondência, eu sempre com pompa para eles, a dizer que a casa estava cada vez pior, como era possível que a avaliassem daquela forma? Quem é o avaliador? O Mister Magoo? Claro que não levei a melhor e mesmo provando que a casa tinha sobrevivido a duas inundações de monta das quais lhe ficaram cicatrizes desvalorizadoras, as Finanças abriram os olhos e pedem-me agora mais de três mil euros, através dumas contas e equações que provam, dizem eles, que a diferença do valor da avaliação é assim e cala-te e paga!
Como se isto não bastasse nesta mesma tarde o meu pai foi ao hospital com queixas graves, confirmadas pelos médicos através de exames e análises. Dizem que precisa de fazer um exame mas que o hospital só o faz se ele estiver mesmo muito mal, a perder sangue nas fezes. Até lá tem que esperar que a médica de família regresse de férias, que lhe prescreva o tal exame, que o marque num dos dois lugares da capital onde se faz através da segurança social, que espere a sua vez e... paz à sua alma, terá o Padre dito entretanto. Ou seja, tem que estar a morrer para lhe fazerem o exame, pergunta a minha mãe; sim, responde a médica titubeante, mas muito simpática. Será a mesma simpatia da senhora que me atendeu hoje de manhã nas Finanças?
Que país é este onde os sorrisos se pagam? Que país é este onde o trato com as pessoas foi substituído pelo vazio de resultados mascarado de poupanças desumanitárias?
Quem mais ordena desta forma terá algum dia feito atendimento ao público ou sido atendido num hospital público? Com um ónus de aborrecimento que arranjei de manhã, mais esta notícia da parte da tarde, só me restou pensar que é sexta feira e esperançar no fim-de-semana. Mas ainda subsistia a questão do exame, que era preciso marcar. Atendem-me as senhoras telefonistas da clínica Quadrantes, Crear e CUF, esta última sempre com valores na ordem de quase dobro de qualquer outra para fazer seja o que for e que me faz sempre pensar que as marquesas devem ser em platina e não em ferro ou alumínio ou noutro material qualquer como as outras. Marca-se o exame, por via particular, não vemos outra forma.
Não estranharei nada o dia em que sair um decreto a mandar dar uma injecção de misericórida nos que apareçam nos hospitais a necessitar de exames difíceis, ainda por cima velhos sem utilidade para esta sociedade tão nova, limpa e que se quer fácil e directa, eficaz com os cidadãos. As pessoas que se lixem.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Maluquices

Venho no carro a ouvir a M80. O locutor anuncia que vai passar outra vez o Hotel California, imortalizado pelos Eagles pois o público assim o decidiu. Penso que decidiu bem pois gosto desta música. A par de Sounds of Silence, cantada por Simon e Garfunkel, foi a primeira canção em inglês que eu soube cantar sem adulterar a letra emitindo grunhidos que se assemelhavam às letras originais, como ainda faço com outras canções. A primeira que soube cantar e que percebia a letra, pois se virmos bem, são duas coisas diferentes.
 A letra de Hotel California – não vi o filme - lembra-me o mais recente Aberto até de madrugada, da dupla maravilhoso-lunática Robert Rodriguez e Quentin Tarantino, e sempre me fascinou, embora não goste de filmes de terror, sejam eles levezinhos ou não.
A minha curta viagem de carro chega ao fim e entro no metro. Ontem deixei O jogo do anjo em cima da secretária, de modo que David Martín pernoitou na biblioteca. Deve ter gostado. Para não ir sozinha no metro tirei da pilha um Capitão Alatriste, que meti debaixo do braço, com capa e espada.
Porém, não me consigo concentrar, vejo Diego num navio, palavra bonita para uma barcaça do século dezassete, mas nem o bigode afiado, nem o facto de lhe dar a cara bonita de Viggo Mortensen, me ajudam.
Passo pelo livro ficando-lhe presa e imagino uma história com os três mosqueteiros, D'Artagnan, Quixote, Alatriste, com o jovem Balboa correndo atrás deles, perdendo o chapéu, voltando atrás para o agarrar e seguindo a peugada dos outros, aos encontrões com um Sancho Pança esbaforido e prestes a rebentar.
Caminham sob uma música de orquestra, maravilhosa e portentosa, mas sem vento, ao encontro de Artur e Lancelot, mediadores numa contenda com os reis das cartas de jogar, o Rei de Ouros, Júlio César, o de Espadas, o Rei David, o de Copas, Carlos Magno e o de Paus, Alexandre, o Grande. Estas quatro figuras reclamam o bigode de Alatriste que, supostamente, pertence a Carlos Magno.
O encontro é numa ruína onde algumas pedras grandes servem de esporas a um lençol armado em telhado. Artur fala, sereno, sobre a inutilidade das disputas e guerras quando o lençol lhes cai em cima da cabeça causando uma confusão de braços que se agitam, gritos e pontapés. Quando todos se conseguem desenvencilhar da cobertura vêem Aquiles que, brincalhão, cortou as cordas que prendiam o lençol às pedras que o mantinham esticado. Rainhas, valetes, dois, três, quatros, cincos, seis e setes aplaudem e riem, sob o olhar grave de ases, oitos, noves e dezes.
Uma voz diz: Marquês de Pombal e percebo que é o nome da estação onde devo sair e não outra personagem daquele enredo doido. Saio do metro com o livro fechado.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

13, dia da sorte, dia da luz!

Luis Urzúa. É o nome do último mineiro a ser resgatado hoje das profundezas da Terra, da barriga duma mina. Terá que ver a Fénix, a cápsula vaivém que os regurgitará, subir e descer trinta e duas vezes, fora os testes, até ver a luz do dia.
Neste preciso momento em que a operação de resgate se efectua tento imaginar os pensamentos deste homem e só consigo arrepiar-me até à medula e ficar com os olhos rasos de água.
Desconheço que critério ou sorte ditou a ordem pela qual os mineiros vão saindo, mas a lista foi publicada num jornal e dada a conhecer às famílias, tendo Luis Urzúa ficado em último pela liderança que demonstrou nas duas primeiras semanas, quando subsistiam dúvidas sobre se os mineiros estariam vivos.
A Fénix tem uma câmara que permite o contacto com a superfície e a subida tem demorado quinze minutos, para cada trabalhador. Mais vinte de descida e outros vinte para fazer entrar o próximo passageiro e prepará-lo, são 55 minutos. Apenas uma hora, mas que se prolongará por vidas inteiras, de memórias aflitas mas esperançadas, de angústias familiares. A lembrança perdurará para sempre.
Assim foi com Roberto Canessa Urta e Fernando Parrado Dolgay, dois dos sobreviventes do acidente aéreo que fez despenhar um avião numa das zonas mais inóspitas do Andes em 1972 e que mostraram o mesmo espírito e determinação de sobrevivência de Luis Urzúa, pondo-se a caminho do incerto e do vazio com uma candeia de esperança que nunca se apagou e que lhes permitiu trazer socorro aos que ficaram no local do acidente, salvando 14 pessoas que estiveram mortas durante dois meses e ressuscitaram para o mundo graças ao espírito combativo e intolerante com a morte daqueles dois homens.
Uns a quase setecentos metros de profundidade, com uma temperatura estimada de 30 graus, e outros a cinco mil metros de altitude com temperaturas na ordem dos 20 graus negativos são exemplos dos limites a que se consegue chegar. Mas nesses limites há sempre uma voz que se destaca, uma voz que ordena que a missão dos demais é viver e que os proíbe de se deixarem morrer.
Claudio Yáñez Lagos pediu a namorada em casamento do interior do túmulo. Ela disse que sim por procuração duma câmara e aguarda reafirmá-lo de viva voz. Claudio é outra imagem duma lanterna cujas pilhas se alimentam de fé, numa vida a dois ainda não iniciada e que tem como berço uma tumba colectiva. Foi o oitavo mineiro a sair. Luis Urzúa continua à espera, como comandante dum navio, será o último. Porém, tenho a certeza que sorri.

Biggest Looser

Um dos concursos que dão actualmente na televisão (as pessoas sem mais nada para fazer vêm muitos concursos e eu estou numa fase assim) é uma competição para ver quem perde mais peso. Parece-me saudável até porque passa uma série de mensagens ecológicas relacionadas com a obesidade, gasto de recursos, plásticos, etc. Este é o tipo de concurso onde eu gostava de entrar, ou seja, talvez num esquema daqueles eu conseguisse emagrecer, embora, felizmente, não me assemelhe a qualquer deles, pesos pesados americanos, pesados mesmo.
Com tanto médico que os assiste, será que há dentistas? Eu preciso dum. As dores de dentes que me assolaram há semanas atrás voltaram, cansadas doutras existências, voltaram a mim, eu que nem pensava nelas, para as afastar o mais possível. Terão que esperar, tal como o condomínio, até ao mês que vem; até lá serei consumidora de analgésicos e perderei aí duzentas gramas pois comerei menos uma vez que me custa mastigar.
Porém, sinto-me uma biggest loser a cada dia que passa, não no sentido de perder peso, mas de ter perdido o que dei como certo, aquilo que adquiri por herança, aquilo que achei que construi ou que ajudei a construir. Há dias mais difíceis que outros, há dias mais pesados que outros e não controlo nem domino a densidade da dor, do afastamento, do silêncio. Há dias em que a incompreensão atinge limites que desconhecia existirem, em que a dor é superior a todas as dores de dentes, é superior à fome que sinto e que não posso matar porque não consigo mastigar. Há dias em que não consigo mastigar nada, nem a minha própria tristeza. Afogo-me em leituras, a única coisa que me consegue levar deste limbo para outras realidades. Tenho saudades de Coy que não vejo há anos; está dentro dum livro de Reverte, seu pai, que jaz numa prateleira do meu quarto. Não é meu esse livro, foi-me emprestado e não o devolvi porque, não sei explicar como, tê-lo é guardar um bocadinho de voz e presença das mãos que mo fizeram chegar. Quando não se tem nada, isso já chega.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Jorge Volpi

Ontem ouvi o escritor mexicano Jorge Volpi a afirmar que mais forte que a globalização de alguns traços culturais exportados e adoptados em todo o mundo, é o desconhecimento que temos uns dos outros, vizinhos do lado incluídos.
O tango argentino dança-se em todo o lado, comem-se pizzas ou sushi, saboreiam-se charutos cubanos, ouvimos música daquém e dalém mar e mais uma infinidade de partilhas mas, na verdade, não sabemos quem são nem o que pensam os espanhóis, e falo deles para dar o exemplo do nosso vizinho do lado.
Queixava-se ele do desconhecimento entre países da América Latina pelos países da América Latina, afirmava ele sorrindo que a Europa tinha conseguido unir-se ao contrário da América, não obstante os esforços de Simón Bolívar.
Tento não perder a oportunidade de ouvir pessoas que desconheço e afirmo o meu desconhecimento sobre Jorge Volpi até há meia dúzia de dias atrás. Hoje quero lê-lo e pesa-me a dificuldade de não conseguir atingir o objectivo do qual ele ontem falava: conhecê-lo.
Da lista de publicações de Volpi tenho a promessa do empréstimo de El insomnio de Bolívar. Mas e A pesar del oscuro silencio (Planeta, 2000), Días de ira (Muchnik Editores, 2000), La paz de los sepulcros (Seix Barral, 2007), El temperamento melancólico (Seix Barral, 2004) Sanar tu piel amarga (Algaida, 2004) ou El juego del Apocalipsis (DeBolsillo, 2000)?
Saio destas sessões blasonada com uma riqueza que não ganho noutros locais, mas vejo o que fica sempre para trás e essa sensação cria-me um vazio enorme, acabando por pensar que tudo o que faço é desnecessário, ou melhor, superficial, perante tanto para ler. Se ao menos a morte não nos pusesse a dormir na eternidade e nos deixasse ler um bocado, mesmo encarcerados numa biblioteca – podia ser o cemitério dos livros perdidos de Zafón – e mesmo que depois mudássemos de ideias e já não quiséssemos ler, mas hoje vivíamos nessa esperança, de que pudesse acontecer, a esperança duma passagem da vida para além da vida, da vida para uma morte que teria que se reconceituar e revigorar de significado.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Pesadelo

Estava numa casa de banho cuja banheira tinha como resguardo uma antiga colcha que guardo no fundo dum armário, de tecido grosso, castanho, de cornucópias em relevo. Apesar do peso do cortinado, pendurado à volta da banheira, ondulava como se fosse de seda fina. Lembro-me que abri a porta da casa de banho, espreitei e voltei a fechá-la. A curiosidade em saber como era possível que aquilo ondulasse levou-me a abri-la novamente. Lá estava o cortinado castanho enfunado com uma vela de navio. A fazer uma enorme barriga. Ainda a curiosidade levou-me a afastá-lo e enfiar os olhos dentro da banheira onde me apercebi dum vento, não, era mais um sopro forte que vinha da parede. Empoleirei-me no bordo da banheira e elevei o corpo ficando com a cabeça à altura do varão onde o tecido de cornucópias feito resguardo se pendurava. Vi uma abertura com várias entradas, ou saídas, como se fossem minúsculas gavetas dum móvel de onde saia aquele sopro que me pareceu mortal. No meio das mini gavetinhas estava uma caveira como se fosse uma aldraba. Não a bati, e comecei a gritar cheia de medo.

Abri os olhos aterrorizada e fugi para a cama do meu filho com o coração a bater a mil à hora. Ele foi buscar-me um copo de água gelada que bebi sofregamente e passei parte da noite com ele. Porém, como não estou habituada a dormir acompanhada, assim que lhe tocava acordava imediatamente e, já amanhecia, regressei à minha cama na esperança de conseguir dormir uma ou duas horas seguidas. O mal-estar ainda se mantém.
Quem soprava aquele medo na minha cara?
O Dicionário de Sonhos diz que sonhar com um reposteiro significa que na noite seguinte se terá outro sonho onde será feita uma revelação sobre o futuro. Indica ainda que alguém nos oculta alguma coisa que, se a soubéssemos, contribuiria para a nossa boa sorte.
A fazer fé nisto pergunto-me quem me esconderá o quê e porquê? Penso na quantidade de gente que esconde coisas uns dos outros e vejo que me incluo no lote. Tento lembrar-me de alguma coisa que eu esconda e que pudesse melhorar a vida a alguém. Nada me ocorre, são coisas que se prendem com o não afligir seja quem for. Para quê criar mais e novas preocupações?
Estou sentada à secretária e o cortinado das cornucópias passa-me pela vista. Por décimos de segundo pergunto-me se já terei acordado.

Terrorismo familiar

De todos os concursos que dão na televisão o mais violento, o mais atroz, o mais brutal de todos é Toddlers & Tiaras. Crianças de 9 e 10 anos (há uma categoria dos zero aos oito anos!) participam num concurso de beleza onde são manietadas pela manicura, pedicura, cabeleireira, maquilhagem e pelas suas mães e pais numa montanha russa de entradas e saídas de palcos onde têm que se portar melhor que as outras. Ao vê-las temos a vaga ideia que por baixo daquilo há uma criança, pois à primeira vista parecem bonecas articuladas a pilhas. As mães, todas gigantes a fazerem lembrar tanques de guerra, incentivam-nas a mostrarem os verdadeiros sorrisos e não os artificiais, como se aquela tacha arreganhada pudesse ser natural mesmo numa boneca de porcelana. É deplorável ver as mães em frente ao palco a acompanhar as coreografias das crianças, balançando as banhas das enormes barrigas, como se fossem uma enorme estátua de gelatina.
Uma menina diz que tem fome, os pais dizem que comerão mais tarde, agora é hora dos alongamentos. Quando tiver uma tiara na cabeça já nem se lembrará. Uma mãe, qual bisonte, ao ver que a filha não ganhou nada afirma não concordar com a decisão do júri e diz que a pequena começará a treinar para o próximo evento assim que chegar a casa.
Este terrorismo familiar terá assim tantas diferenças com outras formas de violência doméstica, aquelas que nos são mais próximas? Acho que não, a não ser pelo facto de ser público e aplaudido, de ser mascarado pelos paizinhos e mãezinhas como qualquer coisa boa para os seus petizes. Por outras palavras, poderia dizer que há os que pregam estaladas e dizem aos filhos que é para o bem deles, e há os que pavoneiam crianças, algumas quase de colo, como se fossem adultos na forma, e dizem igualmente que é a pensarem no futuro da sua prole.
As mães, os pais também, mas é mais evidente no lado materno, projectam a beleza que gostariam de ter ou ter tido e pedem às suas crianças, rapazes e raparigas, que se sujeitem a torturas, que lhes incutem como momentos de prazer e de diversão, para seu próprio gáudio. Algum dia conseguirão ver as atitudes que hoje tomam? Que poderão fazer para minimizar os estragos?

domingo, 10 de outubro de 2010

Poupança ou forretice?

Uns amigos dos meus pais tinham como vizinhos um casal de velhotes que consubstanciavam a palavra poupança. Ou seria forretice?
Viviam sozinhos e tinham duas sobrinhas emigradas não me recordo onde, que vinham passar um mês a Portugal todos os anos em Agosto. O calor alentejano não as incomodava até porque os tios tudo faziam para ter a casa pronta para as receber e tinham instalado um aparelho de ar condicionado, o primeiro lá na terra e, durante anos, o único, incluíndo cafés e outras casas comerciais. A Tia fazia grandes comezainas e iam com regularidade ao restaurante, na vila ou fora dela, se assim fosse do desejo das queridas sobrinhas. Não davam passo sem ser no automóvel do Tio, por insistência dele, que as levava onde queriam e lhes emprestava o bólide à vontade. Porém, quando Agosto começava a chegar ao fim e o par de sobrinhas iniciava a expedição lá para de onde tinham vindo, aquela casa sofria uma mudança radical.
Mandavam desligar a luz e fechavam a água. Usavam então um candeeiro a petróleo e tiravam a água do poço do quintal para todos os usos, incluíndo para beber. A televisão era tapada com um pano e descansava nos onze meses seguintes. Faziam o comer ao lume na lareira em panelas de barro. Iam ao mercado já quando os vendedores estavam a arrumar as bancas e pediam a fruta e legumes tocados ou restos que já não se vendessem aliviando assim os vendedores de lidar com produtos que iam directos ao lixo. Em frente à casa deles, e dos amigos dos meus pais, havia um grande depósito de cereais que chegavam das mais diversas formas em sacas atadas com cordéis; depois da azáfama da descarga, ele ia apanhar os cordelinhos que ali ficavam espalhados, orfãos entregues ao vento, e levava-os para casa, onde a mulher se entretinha com eles a fazer cortinados e naperons.
Ao longo dos últimos anos tenho aprendido e ser poupada e faço coisas que não pensei nunca fazer, mas quando me lembro deste casal de viajantes no tempo, tenho que sorrir, porque embora os tenha conhecido pessoalmente, continuam a parecer-me personagens de ficção.

Ver e ser visto

A Protecção de Dados chumbou o projecto de videovigilância que a Câmara da Amadora queria instalar, considerando que se criavam cenários intrusivos na vida das pessoas. Alguém perguntou às pessoas da Amadora o que pensavam sobre o assunto? Talvez não fosse má ideia e talvez a Protecção de Dados tivesse que engolir em seco. Outra possibilidade era a Protecção de Dados instalar-se na Amadora. Será que mantinham a decisão?
De facto, ninguém gosta de ser observado. Mas, de facto também, todos gostam de observar. Muitos dos que se levantam contra a instalação das câmaras de vídeo têm as televisões sintonizadas na TVI e deleitam-se a ver outro big brother. Outro! Só hoje fiquei a saber da existência deste vómito televisivo, mais um. Mas se pensar que há gente para tudo, para matar e roubar e violar e outras acções gravíssimas, é normal que existam pessoas com disfunções menores, como por exemplo, não se importarem de ser observadas 24 horas por dia. Do outro lado da televisão estão milhares ou milhões, igualmente com disfunções psicológicas, de olhos escancarados sentados no sofá hipnotizados a olhar. E só olham, porque se vissem, no mínimo, mudavam de canal. Mas são capazes de eloquentes discursos sobre a defesa da não instalação de videovigilância.
Não gosto de ser observada, mas gosto de me sentir segura e se para isso são necessárias câmaras, pois que as instalem. Não gosto de ver o que se passa na casa do vizinho - nem de ouvir embora tenha que gramar com os berros de fúria do gajo de baixo quando o Benfica ou a Selecção de futebol perdem ou fazem más prestações. Pergunto-me como é possível estar horas a ver o que um bando de imbecis, uma manada ou o que se queira,está a fazer ou que grunhidos emitem. Como é possível? Que alienação colectiva é esta que põe tanta gente a abdicar da sua própria vida em prol de espiarem o dia a dia de outros? Outros que, se bem me lembro há anos, quando nasceu a moda dos big brothers e tive curiosidade em ver, eram um conjunto de idiotas. Serão estes diferentes? Não me cheira. Hoje ouvi uma conversa sobre o assunto em que nomes de pessoas são enunciados como se as conhecessem. Catalogam-nas com epítetos nada agradáveis e mesmo assim são fiéis. É quase uma missão assistir, como se estivessem sentados no banco da missa onde vão por receio que a ira divina caia sobre eles se faltarem. Já lhes conhecem as taras e manias, apontam os copos e pratos e edredons (que é feito dos cobertores?)que usam e sabem onde se compram. Ah, a maravilhosa sociedade de consumo, sempre presente e sempre atenta.
Sugiro que as pessoas se filmem a elas próprias a assistir, sentadas frente à televisão e ouçam depois os seus próprios comentários. Se tiverem dois dedos de testa vão confirmar a deplorável figura que fazem e fechar cortinados e janelas para ai sim, fazerem tudo ao seu alcance para não serem vistas, observadas ou filmadas.

sábado, 9 de outubro de 2010

Livros ciumentos

Num salto passei de Paris e duma vila alentejana para Barcelona. Também recuei no tempo. Viajar no tempo é subir uma montanha sem sair do mesmo sítio, sem qualquer esforço. O meu filho lê os Maias e acha que já conhece cada canto do Ramalhete, com tanta explicação do autor. Digo-lhe que quando ler seja o que for, como eu li o último livro, será mais feliz. Fica calado. Pergunto o que está a pensar. É no que tu disseste mãe, acho mesmo que é assim, penso muitas vezes como é que tu desapareces quando estás a ler.
Percebo o que ele diz. Hoje mesmo fiquei dentro do carro cerca de hora e meia e comecei a sentir frio no braço esquerdo; instintivamente acho eu, passei a mão direita pelo braço para me aquecer. Foi quando percebi que estava encharcada. A chuva entrava pela janela, molhou-me o casaco, o braço, escorria pela porta de tal forma que a reentrância por onde puxamos a porta estava meia de água. Como é que não dei conta que estava a chover? Porque em Barcelona fazia sol e eu semicerrava os olhos para lhe fugir.
Sempre fui assim com os livros. Ontem ouvi uma jovem dizer que se fartava de ler quando era pequena porque lhe diziam que ali estavam os seus melhores amigos e ela lia, lia, lia e não encontrava os prometidos amigos, até que, anos mais tarde percebeu a mensagem. Gostei de a ouvir. Eu fiz-me amiga deles, cortejei-os, adulei-os, amei-os, protegi-os, acompanhei-os; ganhei-os, comprei-os e roubei-os. Sei que me fazem parecer perdida, alheada, meia idiota até, fazem-me molhar, como hoje. E eu, que não gosto de chuva e odeio dias cinzentos, consigo esquecê-los, afastá-los e empurrá-los para lá longe se tiver a companhia dum livro.
Os livros levam-me. O objecto em si emociona-me. Penso nos primeiros tipógrafos, e no meu pai evidentemente, tipógrafo linotipista, e em como se emocionariam igualmente ao produzirem semelhante coisa, devagar, manualmente, tipo a tipo, linha a linha, até lhes dar forma, até lhes dar corpo, até lhes dar sabor. Saboreio um livro, como outros saboreiam lagosta ou torresmos, lambendo-me. Com os livros não há tempo, nem passado nem futuro, eles guardam-no e mostram-mo assim que lhes dou oxigénio abrindo-lhes as páginas. São janelas ventosas ou pântanos assustadores; lembro-me de leituras que me aceleraram a respiração e me tiraram o sono substituindo-o por medo até os meus pais ou o meu marido chegarem. Com muita frequência fazem-me chorar, mais que os filmes, quase sempre fazem-me sonhar e todos me fazem viver. São braços de mim feita polvo, uso-os e no seu manuseio sinto prazer e confiança. Amíude penso em todos aqueles, milhões, que me escapam, pela quantidade, pelas línguas e locais onde são editados e tenho pena, não propriamente de não os ler, mas de mim, por ser tão pequena em tempo que não consigo atingir nem um bocadinho da empreitada. Dizem-me que ninguém é, mas isso pouco me importa; dizem-me que é preciso fazer escolhas e é aí que reside o problema pois, como me disse José Mindlin, como escolher, se os livros são tão ciumentos?

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Superstições

Sou supersticiosa. O que hei-de fazer? Nada.
Desde pequena que o meu pai nos incutia formas de fazer, ou não fazer certas coisas, que me ficaram inculcadas para sempre. O meu filho diz-me que a superstição me retira liberdade. Ouço-o de olhos abertos. Há vezes em que parece mais velho.
O meu pai calça sempre primeiro o pé direito, meia ou sapato, a perna direita das calças e a manga direita das camisas ou casacos. Se o ajudamos e tentamos virar a coisa, ele revira-se para enfiar o braço pela ordem certa. Quando éramos pequenas ele ficava deitado no sofá a dormir com os pés pendentes. Muito devagar íamos desapertar-lhe os sapatos, o esquerdo em primeiro lugar. Não sabemos como mas ele sentia e zangava-se. Não se faz, dá azar. Assim como dá azar mudar a roupa da cama à sexta-feira, o que me deixava a pensar, das inúmeras vezes em que ele esteve hospitalizado, como é que permitia que os lençóis fossem mudados todos os dias. Os hospitais são locais tão tristes que só por si estavam isentos daquela superstição, pensava eu.
Não deixem o pão virado ao contrário em cima da mesa, dá azar!, nem os sapatos virados para baixo no chão, morre a mãe!, não se canta à mesa, morre o pai!, não se sentem aos cantos da mesa, não se casam!, não cortem a casca da laranja inteira, dá azar!, não ponham malas nem chapéus em cima da cama, dá azar!, não passem por baixo de escadas, dá azar!, não deixem as gavetas abertas, foge o dinheiro!, não entornem azeite, dá azar!, não partam vidros escuros, dá azar!, não limpem o chão com papéis ou lenços, dá azar!, não estejam as três a fazer a mesma coisa, morre a do meio!, que no caso era eu, pois uma é mais velha dois anos e a outra quase nove mais nova!
Há coisas que fazemos naturalmente como cantarolar à mesa, mas há outras que, de maneira inata, me vejo a cumprir com as orientações dadas diariamente desde sempre pelo meu pai.
Quando falo em qualquer coisa menos boa procuro instintivamente madeira para lhe dar três pancadas. E dou. Posso ter tudo desarrumado mas não deixo gavetas abertas e vou fechando-as se as vejo escancaradas a mostrar as goelas, o que acontece com frequência no meu trabalho. Já tomei refeições em desconforto total e em posições ridículas por ficar com a maleta no colo e me recusar deixá-la repousar no chão. Uma vez venderam-me um mecanismo simples para pendurar a mala na mesa, mas das duas, uma: ou me esquecia simplesmente da geringonça ou punha-a e ficava a mala a badalar-me nos joelhos. Por isso detesto cadeiras com costas redondas!
À força de anos a praticar tenho as superstições entranhadas na pele e vivo com elas e quando me interrogo porque agi assim ou assado e não encontro explicação, penso que da próxima vez farei como calhar. E calha fazer sempre igual.

Cá dentro

Voltei a ter um sonho estranho no qual eu apareço como guia do próprio sonho. Eu estava dentro da minha cabeça e ia explicando a alguém, não sei quem, o que íamos ver a seguir. Como se estivessemos numa exposição. Lembro-me que voávamos dentro do cérebro. E lembro-me de acordar ligeiramente, como quem espreita a uma janela e a seguir se recolhe para dentro. Continuou a visita. Lá dentro, cá dentro, é tudo vermelho escuro, com muitas ruas e travessas e azinhagas, sem avenidas. É tudo apertado e curvo.
Eu falava com os que me seguiam, e que não vi uma só vez, mas sabia que estavam ali. Falava de livros e lembro-me de ter dito uma piada da qual se riram. Ouvi-lhes as gargalhadas: Estou a ler o Livro do José Luís Peixoto, já não tenho Bolaños para a sobremesa.
Na verdade já tenho o Peixoto na prateleira, sinal que já foi lido. Adorei, adorei, adorei, como diria o João César Monteiro. Que surpresa maravilhosa aquele círculo, que encanto tão sereno e, não obstante, tão cheio. O pormenor da avó, tão silencioso, é fatal. Para ela e para mim, leitora.
Comecei ontem com O Jogo do Anjo de Carlos Ruiz Zafón.
Porque raio disse eu que estava a ler Peixoto? Será que no sonho ainda não era hoje? Seria ontem ou há dois dias? E porque é que me entrou gente dentro da cabeça?
Não o senti como um pesadelo, não acordei mal disposta nem angustiada, mas recordo a vista, o horizonte encarnado, e repugna-me.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Outra vez Peixoto e o Livro

Raios partam o José Luís Peixoto e mais o Livro! Deitei-me quase às três da manhã, a ler, a ler, a ler. Pergunto-me se os autores se questionarão sobre o que fazem aos seus leitores, sobre como lhes alteram as rotinas, sobre como lhes interferem na vida. Acho que não. Sabem que muita gente ou pouca gente os leu, sabem, pelos números de vendas, quantas pessoas conhecem aquela história, sabem aproximadamente em quantas casas repousa a lombada do livro, alinhada numa prateleira. Mas não sabem mais nada. Não sabem, por exemplo, que são responsáveis pelas diminutas horas de sono de alguns leitores, entre os quais, eu. Não sabem que há leitores que conseguem visualizar o que descrevem, sentir em comunhão com quem deambula pelas páginas dos livros feitos protagonistas. Sinto-me como se vivesse várias vezes em simultâneo, não deixando uma vida para respirar pela outra e agir por uma terceira. Felizmente nem todos os livros são assim. Nem todos nos escangalham. Há livros cujos interiores nos puxam lá para dentro, obrigando-nos a viver outra existência que, de repente, sob o pretexto de comprarmos um livro, é nossa. Pode ser uma lotaria mas há livros que têm mais tendência para este comportamento que outros, sim, porque são os livros que têm a audácia de nos absorver.
Mudo de posição no sofá e sinto frio. É nesta altura que resolvo ir deitar-me. Olho as paredes de casa para ter a certeza que é a minha, que não é alguma do Livro, olho as paredes de casa como se tivesse que me orientar, saber para que lado é o quarto ou a casa de banho, como se tivesse acabado de chegar duma das outras vidas e precisasse duns momentos para ser só eu outra vez.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O Livro de Peixoto e o meu Tio Ilídio

Estou em Peixoto, agarrada ao Livro.
Ainda mal comecei e já me sinto viciada. Leio em pezinhos de lã pois sinto que o Livro é para ser lido assim, em silêncio, pelo menos as primeiras páginas, para que nada interfira na angústia de Ilídio, para que não se afaste o medo e a insegurança, caso contrário toda a trama, toda a História, que também é de Portugal, deixaria de fazer sentido e seria uma mentira.
Leio e vejo o meu Tio Ilídio, não personagem mas pessoa viva, que emigrou para França, a salto, que viveu dois dias como um contorcionista metido num galinheiro cuja ocupação teve que pagar, urinando e defecando nos centímetros quadrados que lhe foram alugados.
O Tio Ilídio conta histórias da História de Portugal protagonizadas por si, durante a epopeia da ida para França, com polícias à mistura de quem teve de fugir sentindo as balas voar junto ao corpo e que só não lhe acertaram porque o atirador era mau, onde existiam hierarquias invisíveis mas palpáveis de gente que intermediava a saída dos emigrantes. Ele saiu ainda jovem, se bem que já adulto, fugindo duma vida que lhe tinha tirado dois dedos da mão esquerda, comidos pelos coelhos da coelheira onde a mãe o deixava enquanto ia trabalhar. O Tio Ilídio para mim sempre consubstanciou aquela pessoa meia real meia fantástica, pela vida aventureira que coleccionou, em Portugal, em Angola e em França. Ele é a substância do verdadeiro cidadão do mundo, sem medos, de peito erguido face a qualquer tormenta ou tempestade. Não se fala com o Tio Ilídio, embora seja excelente conversador, o Tio Ilídio ouve-se com atenção. E aprende-se, aprende-se muito. Aprende-se a viver uma vida humilde mas sempre com um sorriso e uma piada sobre si próprio, tão longe de tanta gente que por saber dizer oui se julga superior aos que cá ficaram.
O Tio Ilídio é daquelas pessoas que viveria bem e seria tomado por um nativo em Nova Iorque, em Paris, numa aldeia samurai do Japão ou numa tribo africana. É-lhe inato aprender, está-lhe no sangue.
Quando regressou a Portugal não voltou à sua terra natal, mas ficou-se pelos arredores de Lisboa, em casa grande, embora com poucos azulejos. Regressou pelo filho que embora tivesse nascido lá nunca se adaptou e quis viver naquilo que tinha na memória como um jardim à beira mar plantado, o que prova que não saiu ao pai no enfrentar desafios, no explorar e experimentar.
O Tio Ilídio continuou a ir a França fazer certos trabalhos que lhe davam bom dinheiro e conduzia de Lisboa e a Paris, sozinho, com a mesma facilidade com que eu vou de Lisboa ao Porto.
Desde o meu divórcio afastei-me deles, estupidamente, pois sempre foram excepcionais comigo, muito mais até do que com o sobrinho de sangue, o que só prova que o sangue liga as pessoas por acaso.
José Luís Peixoto não imagina que contribuiu para a minha decisão de ir visitá-los. Contribuiu e bem, à grande e à francesa.

No fio da navalha

Ter quatro dias seguidos de descanso é fabuloso. Ter quatro dias seguidos de descanso é altamente dispendioso. Neste fim-de-semana prolongado fiz quase 500 quilómetros. Resolvi contá-los para ver porque raio desce o ponteiro do combustível a uma velocidade olímpica. Voltinha aqui, voltinha ali, nem se dá conta. O que contabilizo normalmente é o tempo que demoro entre sair e chegar: a casa dos meus pais ou da I. são 10min., ao supermercado são 5min., ao pavilhão onde o Duarte treina são 15 e onde joga são 10; a casa da minha irmã é 1h, ao Parque das nações são 20 ou 25 min., à Académica são 3 min. Porém, tudo somado, o que só se consegue fazer se puser o conta-quilómetros a zero, dá distâncias que à primeira vista considero exorbitantes. Ter-me-ei enganado? Volto a fazer a contagem, meço novamente a distância e verifico que estou certa.
Agora juntemos-lhe o facto de, não uma, não duas, mas três pessoas importantes terem feito anos durante o fim-de-semana e percebe-se como ficou a preços de férias no estrangeiro, mesmo não tendo comprado nada à excepção de comida, nem uma sessão de cinema, nem uma peça de roupa, nem um jornal!
Além disso cansei-me mais fisicamente do que se tivesse trabalhado os quatro dias. É certo que poupo o despertador e acordo quando o corpo perde o sono, mas a partir daí é uma cascata de andanças dum lado para outro, com gastos que, tal como os quilómetros, acabam por ser muito mais do que se dá conta, um euro aqui, dois ali, mais dois ali e mais um depósito de gasolina que leva logo cinquenta de uma assentada só, e quando os vou contabilizar sou percorrida por calafrios.
São os mesmos calafrios que me acompanham o mês inteiro rezando para que nada aconteça de extraordinário que me obrigue a gastar um cêntimo para além do estritamente necessário.
É triste trabalhar-se arduamente para se ter uma vida no fio da navalha e ouvindo os avisos que nos chegam de todos os lados sobre o aumento da precariedade da vida, assusto-me e aumentam os calafrios.

Não chega ser pobre, é preciso ter azar?

Dizem que aos pobres o pão cai ao chão sempre com a manteiga para baixo. Ontem aconteceu-me quando decidi levar o computador para ser limpo dos vírus. Escorregou-me da mão e partiu-se todo. Ainda o levei a duas clínicas informáticas e, na primeira informaram-me que só o monitor me custaria uma fortuna. Na segunda, tenho de recolher segundas opiniões, foram peremptórios em afirmar que não se vendiam monitores daquela espécie, o que foi reconfirmado com telefonemas. Trouxe o computador de volta para casa e uma sensação esquisita no estômago. Um vazio, acompanhado de tristeza e da antecipação da cara do meu filho quando lhe contasse o que acontecera.
Ele estava com o pai a passar o feriado e ligou-me a meio do dia, como faz tantas vezes quando não está comigo; calhou contar-lhe por telefone e foi por telefone que ele me disse e repetiu que ‘paciência’, que não ficasse triste, que havíamos de comprar outro e mil outros incentivos a que eu largasse aquela angústia, aquele peso nos ombros.
O dia foi triste e fui invadida por uma vontade de chorar enorme, embora tivesse visto os meus adorados sobrinhos.
Passei a tarde do feriado entre comprimidos para as dores de cabeça e tonturas e passados a ferro, fazendo um esforço enorme para limpar e arrumar a casa. O Duarte chegou com dois pares de calças novos que o pai lhe comprou e até as experimentou para eu as ver, coisa que ele detesta, para me ver mais alegre quando lhe dizia que lhe ficavam a matar.
Lembro-me que em situações menos boas o pai dele e eu nos aproximávamos, como se fosse preciso algo correr mal para mostrarmos que conseguíamos ser um só. Quando tivemos um acidente de automóvel e eu fiquei um bocado maltratada ele foi incansável, carinhoso e espectacular, atitude que nunca atribuí a sentimento de culpa por ser ele que ia a conduzir e que via como o raro desabrochar da humanidade dele que, normalmente, me parecia ser um cirurgião frio e racional.
Penso nisto e considero que o Duarte ficou com coisas boas do pai, uma vez que reage assim, mas foi muito para além pois é igualmente amoroso, espontâneo e humano com muitas outras coisas, que me conta no meio de sorrisos.
Seja como for, nada me trará o computador de volta e tenho que esperar até poder comprar outro.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Terrorismo urbano

Se eu tivesse uma arma, tipo pistola ou espingarda, usá-la-ia sob determinadas circustâncias; em casa, se fosse assaltada, ou inadvertidamente, a limpá-la, por exemplo. Se fosse caçadora usava-a na caça, ou inadvertidamente, também na caça ou em casa. Se eu fosse polícia, no desenrolar da minha profissão, ou inadvertidamente, na execução da minha missão ou em casa. Se fosse uma desportista, no âmbito da prática do desporto eleito, ou inadvertidamente, a treinar ou em casa.
Para usar uma arma tradicional é preciso tê-la ou aceder-lhe, para a usar conscientemente é preciso tê-la ou aceder-lhe e saber usá-la. Porém, há armas que usamos inconscientemente, sem qualquer pejo, atirando a matar em qualquer direcção, transformando-nos em assassinos e suicidas. Acontece todos os dias, todas as horas. Aconteceu no Domingo com a mãe dum amigo que foi atropelada.
Conduzir é andar com uma arma na mão. Conduzir com 2,6 de álcool no sangue é andar com uma arma sempre a disparar. Não há tempo de reacção, não há reacção, não se pensa. A loucura instala-se mas não a vemos nem a sentimos. O álcool transforma as pessoas em animais e quando vamos a conduzir transfiguramo-nos em animais sedentos de sangue sem nos darmos conta. O curioso é que as pessoas que seguem connosco dentro da viatura não levantam problemas, ou seja, confiam em nós. Como é que é possível? Como é que podemos defraudar assim os outros, mulher e filhos, que connosco viajam e nem se apercebem que quem conduz não é o papá e sim um lobisomem pronto a atacar, porque assim é a sua natureza?
Assustam-me estas pessoas, terroristas urbanos, que não querem saber de si próprios e, claro, não têm o mínimo respeito pelos outros. Andam com uma bomba na mão e fazem-na explodir quando menos se espera. Quando menos esperam. Porque não controlam nada, porque não se controlam, porque o álcool não o permite. A mistura explosiva álcool e automóvel é devastadora e transforma as pessoas em máquinas de guerra que matam e espalham desolação, angústia e ódio à sua volta.

sábado, 2 de outubro de 2010

O meu Euromilhões

Com alguma esperança, como sempre, vou verificar o papel do Euromilhões. Tinha jogado com 10 euros excepcionalmente e verifico que consegui a proeza de não acertar um único número ou estrela. Dos milhões de pessoas que jogaram devo ter sido a que mais longe ficou de qualquer prémio. Lembro-me que antigamente no Totobola havia um prémio para quem acertasse em zero! Não sei se ainda é assim, mas se fosse, eu esta semana ganhava qualquer coisa.
Vejo que já passa da meia-noite e lembro-me que a minha amiga I. faz anos hoje. Vamos estar juntas o dia praticamente todo e tentarei proporcionar-lhe excelentes momentos. Se tivesse ganho alguma coisa a prenda seria maior, assim ficará por algo simbólico, que não deixa de ser apropriado pois ela é um símbolo. Conquistou mais na vida que qualquer alpinista, mas nem ela própria se apercebe do caminho que percorreu, à força de sangue, suor e lágrimas, mas fê-lo. Sei que a ajudei e fico feliz por isso, mas os caminhos podem ser-nos indicados, mas somos nós que os percorremos, somos nós que tropeçamos, somos nós que caímos, somos nós que nos levantamos.
Ela fez tudo e sempre de cabeça erguida. É um símbolo de força, persistência e paciência, paciência essencialmente comigo que nem sempre demonstro a sensibilidade que ela merece. É a prova viva que desconhecemos os nossos limites, que os conseguimos ultrapassar, que somos capazes de tudo, sem recursos, sem apoios, sem chão nem céu.
Somos muito parecidas e muito diferentes. Não faço qualquer esforço para estar com ela, a falar ou em silêncio, naqueles silêncios tantas vezes constrangedores, mesmo entre amigos. Para mim é inato estar com ela, falar dela, incluí-la nos meus planos de café pela manhã, de almoço, de férias ou de caminhada ao fim de semana. Faz-me falta, completa-me, como disse alguém, como a areia faz com o mar.
Discordamos muitas vezes, muitas mesmo. Mas ouvimo-nos, e conversamos sempre. A minha amiga I. nem sempre está feliz, embora faça esforços descomunais para mostrar boa cara. Lembra-me outra amiga, a M., que apesar duma vida dura e complicadíssima, nunca lhe vi a cara sem estar a sorrir, sabe os aniversários de toda a gente, telefona com genuína preocupação a saber de todos. A I., talvez por estarmos juntas todos os dias, já não me consegue esconder as tristezas, nem as pequeninas. Adianto-lhas e ela abre o coração e conta o que lhe vai na alma. Há muito tempo que soube que nunca seria tão rica se não a conhecesse e se esta amizade não se tivesse proporcionado, instalado, crescido e desenvolvido.
Do fundo do coração declaro que se no dia de hoje me dessem a escolher entre ganhar o fabuloso prémio do Euromilhões e conservar a amizade com a I. eu escolhia a segunda hipótese. Mesmo sabendo que com a primeira lhe podia resolver a vida, assumo o acto de egoísmo de escolher a amizade dela.
Sei que a amizade é profundamente recíproca, mas também sei que dependo mais dela que ela de mim, embora possa parecer o contrário.
Assim, por muito que eu adorasse ganhar 100 milhões de euros, não os troco pelo dia de aniversário dela, que passaremos juntas, com muita boa disposição, gargalhadas e cumplicidades. Só quem me conhece sabe que falo verdade. Há coisas que não têm preço.
Parabéns I.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

PROCURAM-SE

Na minha caixa do correio estava um curioso panfleto que reza assim:

PROCURAM-SE
• Se tem entre 16 e 120 anos;
• Se quer participar nas Festas de Nª Srª do Cabo Espichel e não sabe como;
• Se tem disponibilidade para oferecer um pouco do seu precioso tempo às nossas Paróquias;
• Se quer ajudar a construir uma Unidade Pastoral de Sintra acolhedora:

Então tem o que procuramos:
a) Colaboradores para o serviço de zeladores da Igreja de São Miguel, entre os dias 18 e 29 de Setembro próximo, entre as 10,00h e as 24,00h, zelando pelo templo e dando algumas informações aos visitantes. Poderá oferecer-se apenas para uma hora; uma manhã/tarde/dia/noite; dia sim – dia não; todos os dias; consoante a sua disponibilidade…
b) Colaboradores para os “cordões de segurança” do Círio, Cortejo Regional, Procissões e Missa Campal.

Inscreva-se telefonando para a Maria Manuela Costa: (91 995 76 58) todos os dias entre as 10,00h e as 21,00h.
Obrigada pela sua colaboração!
Unidade Pastoral de Sintra

Espero que tenham tido muita gente a ajudar, quanto mais não seja pela originalidade da mensagem, que consegue, de forma engraçada, não deixar alguém de fora. Não há desculpas para não dar uma mãozinha às Festas!
Maiúsculas, cores e bold's conforme panfleto.