Em conversa com uma amiga conto-lhe que passo a vida a lavar e a limpar, eu que sempre detestei essas modalidades de passar o tempo e ela responde-me que ainda bem, que assim estou entretida. Fico triste e magoada com a resposta e digo-lhe, expresso a tristeza que é passar de casa para o trabalho e do trabalho para casa, em viagens de metro onde nem há paisagem, mesmo repetida como a dos comboios à superfície, para que a possa ver. Viajo num tubo de metal com paredes negras que de estação em estação se mostra a uma superfície de luz artificial para entrarem e saírem outras pessoas como eu. Assim, entreter-me com lavagens de roupa e vidros e janelas e chão e quejandos é tudo menos entretenimento.
Depois dum dia cheio de vazios, decido procurar o limpa metais e limpar o candeeiro de cobre que o meu avô me ofereceu; termino e sento-me a olhar a televisão; a imagem faz-me passar do olhar indiferente para ver com olhos de ver: está a dar a história fabulosa de John Nash, um útil.
Fico sentada até terminar e desligo a televisão sem me levantar. Olho em redor, a minha sala limpa e cheirosa, arrumada como nunca esteve e os meus livros, parte deles, pois a totalidade anda em diáspora de empréstimos e vivem em casas que não são as minhas, mas onde estão bem. Sinto-me inútil e sei que o sou embora mo queiram fazer entender que não.
A iluminação de John Nash fez-me aliviar a pressão que sentia no peito em consequência dum telefonema horas antes que me deixara afogada, mas desligada a televisão voltou a lembrança: decidi que não voltaria a contactar uma pessoa amiga e esperaria o seu contacto. Passaram-se meses e ontem à noite ouvi-lhe a voz e fiz ouvir a minha dizendo que estava magoada por tanto tempo de silêncio. Seguiram-se as devidas desculpas, lágrimas e mais desculpas, com a certeza que há amizades que são eternas. Não deixo de me sentir inútil.
As dificuldades económicas levam-me a descobrir os prazeres da limpeza da casa e afastam-me dos circuitos das amizades, de cafés e lanches aos fins-de-semana, de jantares de aniversários ou outros, de cinemas, de teatros (o que é um teatro?), de caminhadas no paredão da praia. Até as livrarias, as minhas igrejas, são evitadas porque temo que me dê uma filoxera e roube alguma coisa. O convívio dos almoços mesmo aos dias de semana há muito que foi extinto porque trago almoço de casa e saio apenas para beber café.
As minhas rotas estão perfeitamente estabelecidas numa rotina mais precisa que a dos cacilheiros que tocam alternadamente no Terreiro do Paço e em Cacilhas. Ouço a Rita Redshoes e não sou capaz de a acompanhar naquilo que para mim é mentira porque não sou capitã da minha alma, a vida rouba-ma, desfaz-se aos poucos, num corroer que já foi invisível mas agora é bem palpável.
Sinto esta transformação que me assusta, esta passagem para outra pessoa que não sou eu, como se alguém me mudasse de maca sem que eu pudesse fazer nada, anestesiada. Leio e leio e leio e vivo vidas que não são minhas, interrompendo a leitura mas ansiando voltar porque sinto que deixei alguém a falar sozinho. É um facto, falo mais com os livros do que com as pessoas. Percorro as estantes com os dedos acariciando lombadas como se telefonasse a alguém e perguntasse se está bem de saúde. Penso em tudo o que não li como se fossem pessoas que esperam o meu abraço, o meu pequeno fôlego útil. Poucas coisas me interessam e a minha curiosidade não é cor-de-rosa seja com quem for, mas cresce desmesuradamente com a vida das personagens dos livros que me passam pelas mãos. O que terá acontecido ao senhor muito velho com umas asas muito grandes, de García Márquez, depois de se ter tornado um ponto imaginário no horizonte do mar? Posso ser eu a dar-lhe destino? Então fugiu daquela terra e foi aterrar com asas novas num sítio não descoberto pelo homem mas cuja terra é macia e onde chovem flocos de letras que agrupadas da maneira certa dão outros homens e mulheres com asas. Deve ser bom ser-se alado, será a frase final dita por um ser sem asas que ali vai parar por acaso. Posso ser eu. Mais uma vez inútil, num sítio onde todos são diferentes.
Penso que tenho que parar de ler, tenho que parar de fazer planos com livros, como quem enumera os meses ou as estações do ano, as tarefas domésticas ou a agenda, num sequenciar obrigatório. Mas depois da decisão tomada dou por mim a pensar no vício, inquieta, atormentada, pobre, mais inútil. Mais inútil ainda.
Espero o final do mês e penso no convite para ir ver um espectáculo a que não dei resposta; faço imediatamente as contas: o bilhete vale um novo Bolaño, um Ruiz Zafón, um John Irving ou a Viagem à Índia do M. Tavares. Talvez até dois deles. Já me decidi cá dentro, apenas não mo comuniquei a mim própria oficialmente, mas sei que receberei e correrei qualquer prova de obstáculos em direcção ao primeiro passador vestido de livreiro. E consumirei. E enquanto estiver absorta pela vida de outrem, pelos passos de alguém, não verei as horas de deitar nem de comer, deixarei esta vida e transformo-me numa observadora de tempos passados ou futuros, de acontecimentos reais ou inventados, de ruas que existem ou apenas ganham vida instantânea com o passar dos meus olhos por elas, para permanecerem num limbo até que aquela página volte a ser aberta. E assim se respira, numa inutilidade que me afoga, numa fuga alucinada de mim, num círculo exausto de mais e mais, com tão pouco, quase nada.
Este fim-de-semana não há jogos e já tenho planos: ao contrário de amigos que têm a mesma vida desportiva que eu e vão aproveitar para arejar de sábados e domingos atrás duma bola com as mãos vermelhas de bater palmas ou as vozes roucas de gritar, vou arrumar armários e transferir roupas de Verão e Inverno, roupas velhas e gastas que de novo não há nada, e sei que a cada peça que tire ou que arrume vai saltar um livro, uma página, uma tirada que decorei sei lá porquê, a camisa preta com riscas brancas que tem uma nódoa que lá caiu enquanto lia e comia ao mesmo tempo; outra camisa, branca com bordados, que foi comprada pelo meu filho em Belleville, morada de Benjamin Malaussène; o fato cinzento do qual desisti em prol duma biografia de Bruce Chatwin, e que acabei depois por comprar em saldos e outros, cada um com a sua história, a sua ligação.
Arrumo, logo sou útil? Não, não e não. Sinto que faço o meu trabalho, aquele pelo qual sou paga ao fim de mês, mas perdi-me da comunidade, como se fosse uma estátua no meu habitat, que ocupa espaço mas não serve para nada. Quem sabe até esse espaço não será preciso para outra coisa qualquer? Por isso não me imponho, seja a quem for, à excepção das minhas janelas que não tarda darão sinal de deterioração com tanta lavagem.
Sinto à légua o aborrecimento que transporto, a canseira que me é cada vez mais inata, a repetição de conversas de doenças que abomino, sempre com os meus mundos paralelos a voarem invisíveis sob a minha cabeça e a meterem-se no meio de conversas, assim como se metem na minha roupa ou na cara dos ocupantes do metro que identifico como personagens dum livro, mesmo que eu os afaste e lhes abra os olhos exigindo-lhes silêncio. Por isso com frequência sou uma conversadora estranha parecendo que falo para uma plateia de anjos ou fantasmas, pois os de carne e osso têm outros interesses, mais naturais, mais terra a terra, mais materiais. Não lhes sou útil, já fui, mas já não sou. Sinto-me como alguém que morreu, do qual sabemos o nome e ocasionalmente recordamos uma coisa qualquer, mas cuja utilidade se extinguiu.
Não preciso de médicos para me dizerem que tudo isto consubstancia uma fuga. Já o afirmei e assumi. Quero fugir de mim, como dizia alguém, tirar férias de mim própria ou, talvez ainda seja melhor, licença sem vencimento de longa duração da minha pessoa. Quero fugir desta tristeza que me consome, que se alimenta de cada partícula de mim, que me faz transformar, que me consolida em inútil.
A linha que me liga ao universo da utilidade é o meu filho, muitas vezes penso que é a única coisa que me liga ao universo da normalidade, das pessoas, do mundo. Acordo antes do despertador tocar e naqueles breves instantes, estremunhada, penso que me transformei em letra, que levantarei a cabeça e verei o meu corpo como um A ou um Z, uma coisa esquisita digna de andar de feira em feira, como a mulher com cabeça de cobra ou o homem elefante.
Procuro alegrias, nem que sejam pequeninas, minúsculas, mas só vejo doenças e tristezas e não há motivo para alguém, seja quem for, ter que me aturar, a mim e às páginas dos livros que arrasto como se fosse uma serpente e carregasse todas as peles que já devia ter perdido, como um camião com atrelado cheio de males que expressados podem ser contagiosos.
E por isso sofrem as janelas e as madeiras do chão que são esfregadas e esfregadas, até que o vício fala mais alto e a galope instalo-me de livro na mão. Nenhum me faz sentir inútil, nem a mais, não me cansam, não me fazem perguntas. Deixam-me estar ali. Não leio nos intervalos, a minha vida é o intervalo das leituras, com toda a inutilidade que isso acarreta.
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