Venho no carro a ouvir a M80. O locutor anuncia que vai passar outra vez o Hotel California, imortalizado pelos Eagles pois o público assim o decidiu. Penso que decidiu bem pois gosto desta música. A par de Sounds of Silence, cantada por Simon e Garfunkel, foi a primeira canção em inglês que eu soube cantar sem adulterar a letra emitindo grunhidos que se assemelhavam às letras originais, como ainda faço com outras canções. A primeira que soube cantar e que percebia a letra, pois se virmos bem, são duas coisas diferentes.
A letra de Hotel California – não vi o filme - lembra-me o mais recente Aberto até de madrugada, da dupla maravilhoso-lunática Robert Rodriguez e Quentin Tarantino, e sempre me fascinou, embora não goste de filmes de terror, sejam eles levezinhos ou não.
A minha curta viagem de carro chega ao fim e entro no metro. Ontem deixei O jogo do anjo em cima da secretária, de modo que David Martín pernoitou na biblioteca. Deve ter gostado. Para não ir sozinha no metro tirei da pilha um Capitão Alatriste, que meti debaixo do braço, com capa e espada.
Porém, não me consigo concentrar, vejo Diego num navio, palavra bonita para uma barcaça do século dezassete, mas nem o bigode afiado, nem o facto de lhe dar a cara bonita de Viggo Mortensen, me ajudam.
Passo pelo livro ficando-lhe presa e imagino uma história com os três mosqueteiros, D'Artagnan, Quixote, Alatriste, com o jovem Balboa correndo atrás deles, perdendo o chapéu, voltando atrás para o agarrar e seguindo a peugada dos outros, aos encontrões com um Sancho Pança esbaforido e prestes a rebentar.
Caminham sob uma música de orquestra, maravilhosa e portentosa, mas sem vento, ao encontro de Artur e Lancelot, mediadores numa contenda com os reis das cartas de jogar, o Rei de Ouros, Júlio César, o de Espadas, o Rei David, o de Copas, Carlos Magno e o de Paus, Alexandre, o Grande. Estas quatro figuras reclamam o bigode de Alatriste que, supostamente, pertence a Carlos Magno.
O encontro é numa ruína onde algumas pedras grandes servem de esporas a um lençol armado em telhado. Artur fala, sereno, sobre a inutilidade das disputas e guerras quando o lençol lhes cai em cima da cabeça causando uma confusão de braços que se agitam, gritos e pontapés. Quando todos se conseguem desenvencilhar da cobertura vêem Aquiles que, brincalhão, cortou as cordas que prendiam o lençol às pedras que o mantinham esticado. Rainhas, valetes, dois, três, quatros, cincos, seis e setes aplaudem e riem, sob o olhar grave de ases, oitos, noves e dezes.
Uma voz diz: Marquês de Pombal e percebo que é o nome da estação onde devo sair e não outra personagem daquele enredo doido. Saio do metro com o livro fechado.
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...os carros, ouvidos lá fora, deixam um som de água no asfalto ao descer a ladeira da colina. Chove levemente hoje, ouço a palavra "garoa" que designa este tipo de chuva, entoada no linguarejar paranaense, entre dois tragos de chimarrão...
ResponderEliminarLeio o teu post. Evoca a lembrança do relato de Emerson em Representative Men, o relato de ter lido os ensaios de Montaigne e ter achado que tinham sido escritos de propósito para ele. Ficamos com pena de que Montaigne não tenha podido ler aquilo. Deveria ter gostado de ter conhecido aquele leitor representativo. Deve ter sido bom para Reverte ter escrito de propósito para ti; para a melhor das «leitoras representativas». Iluminas um dia de chuva com um post assim.
Ontem ao jantar ouvia-a contar de novo a história do carro que ao pegar se envolveu numa nuvem de fumaça. Contar como - brincando com o velho professor obeso - o admoestou:
- Olha só qui nuvem de fumaça! Cê não tem vergonha de um troço dêsse aí? Olha aí os carrão dos teus colegas juiz e promotor!
- Pois! Pois mas eu não vendo sentença né? - teria retorquido o outro desculpando o automovido e fumarento destroço... e ela conta sempre aquilo com um certo orgulho nele, com um sorriso.
Do outro lado do oceano num dia de chuva, ou no norte mítico com ruas de neve e vidros embaciados de cafés, da tua Lisboa com as estações altifalantadas de Metro, és o sol destas colinas. Fica um gajo meditabundo na sorte (merecimento não é) de conhecer mulheres assim.