Num salto passei de Paris e duma vila alentejana para Barcelona. Também recuei no tempo. Viajar no tempo é subir uma montanha sem sair do mesmo sítio, sem qualquer esforço. O meu filho lê os Maias e acha que já conhece cada canto do Ramalhete, com tanta explicação do autor. Digo-lhe que quando ler seja o que for, como eu li o último livro, será mais feliz. Fica calado. Pergunto o que está a pensar. É no que tu disseste mãe, acho mesmo que é assim, penso muitas vezes como é que tu desapareces quando estás a ler.
Percebo o que ele diz. Hoje mesmo fiquei dentro do carro cerca de hora e meia e comecei a sentir frio no braço esquerdo; instintivamente acho eu, passei a mão direita pelo braço para me aquecer. Foi quando percebi que estava encharcada. A chuva entrava pela janela, molhou-me o casaco, o braço, escorria pela porta de tal forma que a reentrância por onde puxamos a porta estava meia de água. Como é que não dei conta que estava a chover? Porque em Barcelona fazia sol e eu semicerrava os olhos para lhe fugir.
Sempre fui assim com os livros. Ontem ouvi uma jovem dizer que se fartava de ler quando era pequena porque lhe diziam que ali estavam os seus melhores amigos e ela lia, lia, lia e não encontrava os prometidos amigos, até que, anos mais tarde percebeu a mensagem. Gostei de a ouvir. Eu fiz-me amiga deles, cortejei-os, adulei-os, amei-os, protegi-os, acompanhei-os; ganhei-os, comprei-os e roubei-os. Sei que me fazem parecer perdida, alheada, meia idiota até, fazem-me molhar, como hoje. E eu, que não gosto de chuva e odeio dias cinzentos, consigo esquecê-los, afastá-los e empurrá-los para lá longe se tiver a companhia dum livro.
Os livros levam-me. O objecto em si emociona-me. Penso nos primeiros tipógrafos, e no meu pai evidentemente, tipógrafo linotipista, e em como se emocionariam igualmente ao produzirem semelhante coisa, devagar, manualmente, tipo a tipo, linha a linha, até lhes dar forma, até lhes dar corpo, até lhes dar sabor. Saboreio um livro, como outros saboreiam lagosta ou torresmos, lambendo-me. Com os livros não há tempo, nem passado nem futuro, eles guardam-no e mostram-mo assim que lhes dou oxigénio abrindo-lhes as páginas. São janelas ventosas ou pântanos assustadores; lembro-me de leituras que me aceleraram a respiração e me tiraram o sono substituindo-o por medo até os meus pais ou o meu marido chegarem. Com muita frequência fazem-me chorar, mais que os filmes, quase sempre fazem-me sonhar e todos me fazem viver. São braços de mim feita polvo, uso-os e no seu manuseio sinto prazer e confiança. Amíude penso em todos aqueles, milhões, que me escapam, pela quantidade, pelas línguas e locais onde são editados e tenho pena, não propriamente de não os ler, mas de mim, por ser tão pequena em tempo que não consigo atingir nem um bocadinho da empreitada. Dizem-me que ninguém é, mas isso pouco me importa; dizem-me que é preciso fazer escolhas e é aí que reside o problema pois, como me disse José Mindlin, como escolher, se os livros são tão ciumentos?
sábado, 9 de outubro de 2010
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