sexta-feira, 22 de outubro de 2010

No Centro de Saúde

Hoje fui ao médico ao Centro de Saúde. O mesmo é dizer, hoje fui ao cinema ver um filme realista, ou um documentário.
Esperas e filas e senhas amarelas e senhas verdes à parte, enquanto esperava numa minúscula sala dum segundo andar, onde os velhotes chegam já em coma, depois duma subida pior que a do Bom Jesus de Braga, desenvolveu-se uma conversa de estalo entre duas companheiras de infortúnio medicinal. Falavam mal do governo, deste e de todos os governos que já existiram, sendo que uma delas afirmava que o problema não era do Primeiro-Ministro, não senhora, nem dos Ministros, nem do Presidente da República mas sim das Câmaras e das Juntas de Freguesia. Não falava da boca para fora, tinha estado duas vezes lá fora (adoro esta expressão; depois percebemos que era no Canadá), e só tinha ido duas vezes porque o falecido marido não gostava de andar de avião, não era que o filho não os convidasse ou não insistisse, que insistir, insistia ele, mas felizmente (sic) o marido morrera e ela aproveitara e fora lá já duas vezes.
A outra atenta, perante este palavreado sem que nada se apresentasse de concreto que esclarecesse a razão da culpa das Câmaras e Juntas, perguntou-lhe o que tinha o Canadá a ver com o assunto.
- O que tem a ver? Então a senhora não sabe? Não pagam portagens! Ah, isto não sabia você!
Perante esta revelação, feita como se fosse o último segredo de Fátima, a outra calou-se momentaneamente, dando ideia que se preparava para uma resposta à altura e quando todos esperávamos expectantes que falasse em impostos ou elogiasse o maravilhoso país que é o Canadá, não por saber por experiência própria como a interlocutora, mas por ouvir dizer e o que se ouve contar também conta, ela diz:
- A minha filha também usava o cabelo assim comprido, dava uma trabalheira pentear que nem imagina, a menina deve imaginar pois o seu é muito grande, mas as pessoas não lhes passa pela cabeça o que isso é, e sabe, ela, mesmo de Inverno, lavava a cabeça de manhã e saia-me p’ra rua assim, com a trunfa toda molhada, ora no Verão, é como o outro, mas no Inverno, às vezes com dias que valha-me Deus.
A assembleia ficou baralhada e não percebemos se a conversa era comigo ou com outra mulher que tinha igualmente cabelo muito comprido, eu a esperar que fosse comigo pois não é todos os dias que me chamam menina. Não tivemos tempo de perceber nada porque um Dona Fernanda em voz rouca fez-se ouvir num altifalante e a mãe da filha de longos cabelos, qual Lady Godiva, levantou-se e caminhou para a porta do gabinete médico.
A primeira, a que estivera lá fora, continuou em frente a toda a velocidade, agora que já não havia uma maluquinha que falasse de cabelos quando ela falava de portagens!
- Na minha casa comeram comunistas, centristas e outros, comeram todos e sentados à mesma mesa! Era o que faltava!
Eu nem tinha começado a ler porque cheguei a meio da palestra e estava interessadíssima em ouvi-la, quando chega novo candidato ao estetoscópio, a bufar, rapaz aí para quase oitenta anos, que se atira para cima duma cadeira e só instantes depois distribui os bons dias, ainda com a respiração acelerada. Face a esta aparição a senhora que nos informou não haver portagens no Canadá começou uma nova intervenção sobre as instalações do Centro Médico, com absoluta razão, até que, já em ar de comício disse:
- Alguém me explica porque temos que ter uma biblioteca? Sim, os médicos fazem mais falta e a biblioteca está ali tão bem localizada, mesmo no centro, com estacionamento e tudo, atão não era de verem as coisas com olhos de ver e porem lá o Centro de Saúde?
Silêncio na plateia.
- Eu até conheço bem aquilo, vou lá quase todos os dias, ainda ontem de lá trouxe isto.
O isto era Adelino Amaro da Costa: Histórias de uma vida interrompida, que nos mostrou, realçando a etiqueta na lombada, prova que pertencia à biblioteca e, para isso, levantou o rabo ligeiramente do assento e passou o livro a trote diante dos nossos olhos, que a mirávamos entre o deslumbrado e o estupefacto.
- Eu já disse isto às pessoas lá da biblioteca e elas até concordaram comigo.
Nesta afirmação mostrava ser uma Brites de Almeida, sem medo nem pejos nem papas na língua e eu vi-me na situação de desertora pois a voz rouca fez-se ouvir chamando o meu nome e, com pena, abandonei a palestra que tão interessante estava a ser. Espero que ela tenha sido a última a ser chamada para poder ter tido tempo de iluminar a assembleia que ali ficou.

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