O meu almoço de hoje vai ser arroz de tomate com peixe frito, iguaria que sobrou ontem do jantar e que é o comer de praia mais famoso do mundo. Pelo menos para mim.
Na altura em que íamos para a praia ao raiar do sol e vínhamos de lá ao lusco-fusco era preciso levar alimento consistente e, vá lá saber-se porquê, este era um dos mais comuns. Lembro-me de ver famílias inteiras debaixo de toldos às riscas com uma mão a segurar um prato e a outra agarrada ao rabo dum carapauzinho frito que se comia só com uma dentada. Carapau de gato. Quem inventou este nome devia ter uma medalha. O pior do arroz de tomate e do carapau frito na praia era a espera de duas ou três horas para fazer a digestão, espera onde se desperdiçava o fresco do mar nas horas mais quentes e onde mais apetecia um mergulho. É inevitável que este prato me lembre da praia assim como qualquer talhada de melancia ou a simples menção à fruta me faz lembrar a minha avó Nicácia, adoradora de melancia e que, se fosse boa, rematava as dentadas com uma única palavra, e não eram precisas mais: Bela. Dizia bela devagar, como se fosse uma conclusão onde mais nada havia a acrescentar.
Hoje lembrei-me da minha avó por outro motivo: na clínica das análises estava uma senhora à minha frente que não sabia escrever e assinou com uma pomposa dedada azul. Dei por mim a pensar como votará ela? Alguém lhe diz qual o quadrado onde fazer a cruz e ela fará um xis titubeante mas à confiança. Como não levou o bilhete de identidade a senhora da recepção pediu-lhe que ligasse mais tarde a dar o número da sua identificação, caso não lhe fosse conveniente voltar à clínica. A senhora disse que também não conhecia os números e não podia telefonar a dar essa informação. Pensei na tristeza que consubstancia não saber ler.
O meu avô tirou a quarta classe já em adulto e isso sempre foi um orgulho para mim, expresso no esforço e no empenho e na teimosia dum homem do campo que achava que aquilo era importante demais para lhe passar ao lado, ainda que não tivesse qualquer intenção de fazer carreira nas letras ou perto delas. Mas era importante e ele fê-lo.
O que a minha avó gostava de melancia, o meu avô gostava de melão. Fui com ele aos meloais inúmeras vezes e uma das lembranças de infância que guardo é o cheiro a melão lá em casa, naquela casa que me parecia um palácio, enorme e fresca, tapada do sol escaldante do Verão alentejano com as portadas fechadas, mas cheia, sempre cheia e para a encher bastavam eles os dois. Havia melões em todo o lado, debaixo dos móveis e das camas que deitavam um aroma que se metia na memória e ainda hoje perdura, um cheiro doce e sereno, um cheiro que me embalava e hoje me faz sorrir.
A minha avó fazia fritos no fogão do alpendre e em casa não havia cheiros desagradáveis, como o que ficou ontem na minha casa da fritura do peixe. A casa dos meus avós cheirava a saudades, a avós, a abraços, a beijos, a quintal, a tardes soalheiras, a tanque de lavar, a chouriços e a carne fresca.
Lembro-me duma única vez a minha avó estar na praia a comer arroz de tomate com peixe frito. Sentada debaixo do toldo e completamente vestida. Lembro-me de nos dizer mil vezes que saíssemos da água, que já chegava, que descansássemos ao sol um bocadinho. Para mim ela era o altar que as famílias em certos países do mundo transportam consigo para onde quer que vão e nós levámo-la à praia, embora poucas vezes, que praia não era o seu destino favorito, ao contrário de mim.
Abençoado arroz de tomate com carapaus fritos que me faz sorrir perante tanta lembrança viva que em mim mora.
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