Estou em Peixoto, agarrada ao Livro.
Ainda mal comecei e já me sinto viciada. Leio em pezinhos de lã pois sinto que o Livro é para ser lido assim, em silêncio, pelo menos as primeiras páginas, para que nada interfira na angústia de Ilídio, para que não se afaste o medo e a insegurança, caso contrário toda a trama, toda a História, que também é de Portugal, deixaria de fazer sentido e seria uma mentira.
Leio e vejo o meu Tio Ilídio, não personagem mas pessoa viva, que emigrou para França, a salto, que viveu dois dias como um contorcionista metido num galinheiro cuja ocupação teve que pagar, urinando e defecando nos centímetros quadrados que lhe foram alugados.
O Tio Ilídio conta histórias da História de Portugal protagonizadas por si, durante a epopeia da ida para França, com polícias à mistura de quem teve de fugir sentindo as balas voar junto ao corpo e que só não lhe acertaram porque o atirador era mau, onde existiam hierarquias invisíveis mas palpáveis de gente que intermediava a saída dos emigrantes. Ele saiu ainda jovem, se bem que já adulto, fugindo duma vida que lhe tinha tirado dois dedos da mão esquerda, comidos pelos coelhos da coelheira onde a mãe o deixava enquanto ia trabalhar. O Tio Ilídio para mim sempre consubstanciou aquela pessoa meia real meia fantástica, pela vida aventureira que coleccionou, em Portugal, em Angola e em França. Ele é a substância do verdadeiro cidadão do mundo, sem medos, de peito erguido face a qualquer tormenta ou tempestade. Não se fala com o Tio Ilídio, embora seja excelente conversador, o Tio Ilídio ouve-se com atenção. E aprende-se, aprende-se muito. Aprende-se a viver uma vida humilde mas sempre com um sorriso e uma piada sobre si próprio, tão longe de tanta gente que por saber dizer oui se julga superior aos que cá ficaram.
O Tio Ilídio é daquelas pessoas que viveria bem e seria tomado por um nativo em Nova Iorque, em Paris, numa aldeia samurai do Japão ou numa tribo africana. É-lhe inato aprender, está-lhe no sangue.
Quando regressou a Portugal não voltou à sua terra natal, mas ficou-se pelos arredores de Lisboa, em casa grande, embora com poucos azulejos. Regressou pelo filho que embora tivesse nascido lá nunca se adaptou e quis viver naquilo que tinha na memória como um jardim à beira mar plantado, o que prova que não saiu ao pai no enfrentar desafios, no explorar e experimentar.
O Tio Ilídio continuou a ir a França fazer certos trabalhos que lhe davam bom dinheiro e conduzia de Lisboa e a Paris, sozinho, com a mesma facilidade com que eu vou de Lisboa ao Porto.
Desde o meu divórcio afastei-me deles, estupidamente, pois sempre foram excepcionais comigo, muito mais até do que com o sobrinho de sangue, o que só prova que o sangue liga as pessoas por acaso.
José Luís Peixoto não imagina que contribuiu para a minha decisão de ir visitá-los. Contribuiu e bem, à grande e à francesa.
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
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