Leio o Âncoras e sou levada por uma espécie de ciclone da Dorothy, não até Oz, mas ao Sobral da Adiça. Subo a rua Longa, como fiz tantas vezes, da casa dos meus avós até à casa do Tio Raposo que nunca vi noutra posição senão deitado.
Para mim ele é tão velho como o mundo, tão velho que já não envelhece mais. Sempre o conheci assim, velho, deitado num quarto escuro onde nem os poderosos raios de sol escaldante do Verão alentejano se atreviam a entrar. Ao pé do Tio Raposo falava-se baixo e baixava-se a voz quando se falava dele, num tom que parecia a voz de joelhos.
O Tio Raposo tinha estado na guerra e a guerra ficara-lhe com um braço e dera-lhe em troca uma doença que o obrigava a estar deitado. Estava assim há muitos, muitos anos, mais de cinquenta diziam. Eu não fazia ideia de quanto eram cinquenta anos, sabia que eram muitos, mas não conseguia aperceber-me da dimensão de meio século. Porém, isso só dava mais credibilidade à minha certeza que ele era muito velho.
Uma prima minha, pouco mais velha que eu mas que morava na aldeia e conhecia as dinâmicas de toda a gente, levava-me à casa dele quando ninguém suspeitava e falávamos com ele.
O facto dele falar foi uma surpresa não sei porquê. E supresa maior eram as coisas que contava: o frio, o peso da roupa, capotes e botas, a chuva que não parava e era tanta que entrava, passava pela carne e pelo sangue e saia do outro lado, a falta de comida e como se matavam pessoas pela posse de cascas de batatas, o melhor que se encontrava para comer. O receber uma carta, milagre que ele nunca recebera. E a perda do braço.
Hoje, quando vejo filmes passados na I GG e os realizadores nos metem nas trincheiras, olho a ver se vejo um braço, um braço a gritar de dores no meio dum lamaçal de sangue, cujo dono nunca aprendeu a viver sem ele, apesar de ter vivido até depois dos oitenta anos, como se se mantivesse vivo na esperança que o braço voltasse.
Diziam que o Tio Raposo tinha gangrena, que eu associava a uma gripe grave e nas primeiras visitas não me sentava na cama com medo do contágio. Depois percebi que a minha prima, que o visitava com frequência, era mais que saudável, logo, aquilo não se pegava e passei até a visitá-lo sozinha. Para mim era uma aventura subir a rua, entrar às escondidas naquela casa e sentar-me a ouvi-lo, nem que fosse só para me perguntar pelos meus pais. Ele tinha estado na guerra e tinha regressado, podia estar numa cama que fedia, mas se estivesse num trono era a mesma coisa porque ele era um herói. Tinha trazido a tal de gangrena, doença da França com certeza, pois aqui eu nunca ouvira falar dela. Nunca soube exactamente o que era a doença que mantinha aquele homem na cama, magro que nem um cão, amarelo e cheio de febres altas que iam e vinham ao sabor duma permanente inconveniência e mantiveram este ciclo ao longo de mais de cinquenta anos. Quando estava sozinho em que pensaria? Que pecados lhe assomariam à ideia que pudesse ter cometido e que justificassem aquela vida?
E ela? Eu pensava muitas vezes nela, a mulher com quem casara antes da viagem para parte incerta e por razões desconhecidas. Ela que era uma jovem alegre e bonita como dizia a minha avó e se viu transformada em sombra, sem vida, nem própria nem alheia, com uma grilheta a um morto-vivo que o destino colocou na sua vida, um morto-vivo que ela primeiro adorara e depois aprendera a suportar como vingança da vida por qualquer coisa que ela fizera mal e que não fazia ideia do que seria.
Eram dois caminhos perdidos por onde a vida não passava à décadas.
Pelo meu lado, sentia uma enorme pena dela, vontade de chorar quando lhe via os olhos sempre lacrimejantes, as rugas tão profundas como tristes e por várias vezes deixei mesmo as lágrimas cair quando ela se punha na cozinha e dizia que ia fazer certos cozinhados porque eram os favoritos dele. Dava-lhe de comer e ele sorria, ela retribuia e nos sorrisos havia palavras que me escapavam.
Um dia recebemos um telefonema a dizer que o Tio Raposo morrera. Apesar de o ver poucas vezes e sempre naquele ambiente lúgubre, senti que o mundo, pelo menos o meu mundo, perdera um herói.
Para mim ele é tão velho como o mundo, tão velho que já não envelhece mais. Sempre o conheci assim, velho, deitado num quarto escuro onde nem os poderosos raios de sol escaldante do Verão alentejano se atreviam a entrar. Ao pé do Tio Raposo falava-se baixo e baixava-se a voz quando se falava dele, num tom que parecia a voz de joelhos.
O Tio Raposo tinha estado na guerra e a guerra ficara-lhe com um braço e dera-lhe em troca uma doença que o obrigava a estar deitado. Estava assim há muitos, muitos anos, mais de cinquenta diziam. Eu não fazia ideia de quanto eram cinquenta anos, sabia que eram muitos, mas não conseguia aperceber-me da dimensão de meio século. Porém, isso só dava mais credibilidade à minha certeza que ele era muito velho.
Uma prima minha, pouco mais velha que eu mas que morava na aldeia e conhecia as dinâmicas de toda a gente, levava-me à casa dele quando ninguém suspeitava e falávamos com ele.
O facto dele falar foi uma surpresa não sei porquê. E supresa maior eram as coisas que contava: o frio, o peso da roupa, capotes e botas, a chuva que não parava e era tanta que entrava, passava pela carne e pelo sangue e saia do outro lado, a falta de comida e como se matavam pessoas pela posse de cascas de batatas, o melhor que se encontrava para comer. O receber uma carta, milagre que ele nunca recebera. E a perda do braço.
Hoje, quando vejo filmes passados na I GG e os realizadores nos metem nas trincheiras, olho a ver se vejo um braço, um braço a gritar de dores no meio dum lamaçal de sangue, cujo dono nunca aprendeu a viver sem ele, apesar de ter vivido até depois dos oitenta anos, como se se mantivesse vivo na esperança que o braço voltasse.
Diziam que o Tio Raposo tinha gangrena, que eu associava a uma gripe grave e nas primeiras visitas não me sentava na cama com medo do contágio. Depois percebi que a minha prima, que o visitava com frequência, era mais que saudável, logo, aquilo não se pegava e passei até a visitá-lo sozinha. Para mim era uma aventura subir a rua, entrar às escondidas naquela casa e sentar-me a ouvi-lo, nem que fosse só para me perguntar pelos meus pais. Ele tinha estado na guerra e tinha regressado, podia estar numa cama que fedia, mas se estivesse num trono era a mesma coisa porque ele era um herói. Tinha trazido a tal de gangrena, doença da França com certeza, pois aqui eu nunca ouvira falar dela. Nunca soube exactamente o que era a doença que mantinha aquele homem na cama, magro que nem um cão, amarelo e cheio de febres altas que iam e vinham ao sabor duma permanente inconveniência e mantiveram este ciclo ao longo de mais de cinquenta anos. Quando estava sozinho em que pensaria? Que pecados lhe assomariam à ideia que pudesse ter cometido e que justificassem aquela vida?
E ela? Eu pensava muitas vezes nela, a mulher com quem casara antes da viagem para parte incerta e por razões desconhecidas. Ela que era uma jovem alegre e bonita como dizia a minha avó e se viu transformada em sombra, sem vida, nem própria nem alheia, com uma grilheta a um morto-vivo que o destino colocou na sua vida, um morto-vivo que ela primeiro adorara e depois aprendera a suportar como vingança da vida por qualquer coisa que ela fizera mal e que não fazia ideia do que seria.
Eram dois caminhos perdidos por onde a vida não passava à décadas.
Pelo meu lado, sentia uma enorme pena dela, vontade de chorar quando lhe via os olhos sempre lacrimejantes, as rugas tão profundas como tristes e por várias vezes deixei mesmo as lágrimas cair quando ela se punha na cozinha e dizia que ia fazer certos cozinhados porque eram os favoritos dele. Dava-lhe de comer e ele sorria, ela retribuia e nos sorrisos havia palavras que me escapavam.
Um dia recebemos um telefonema a dizer que o Tio Raposo morrera. Apesar de o ver poucas vezes e sempre naquele ambiente lúgubre, senti que o mundo, pelo menos o meu mundo, perdera um herói.
Comovente, como tu sabes comover. O herói encontrou a cronista. É tão necessário virem a público estas coisas. Não trazes apenas a sua história, dás um exemplo de contar, és sua representante.
ResponderEliminarSe o âncoras serve para trazer a terreiro estas histórias e a vontade de contar, vale a pena.
Soliplass