Boa noite José Luís Peixoto
Hoje de tarde fui ao médico, sabe? Não sei como aconteceu, baralhei-me nas horas e cheguei uma hora mais cedo; fiquei na sala de espera que tem uma maquineta para tirar senhas muito sofisticada, uma para consultas a marcar, outra para consultas marcadas, mas para avisar na recepção que já chegámos, outra só para pedir receitas, outra para carimbar papéis depois de sairmos da consulta e outra para não me lembro. Há muitos velhos ali e raros são os que chegam e esticam o dedo e carregam na tecla certa à primeira; a maioria olha, olha, e não sai da indecisão até que uma alma caridosa pergunta o que foram fazer e lhes tira a senha, mas nem por isso lhes resolve o problema pois a chamada faz-se num quadro electrónico cheio de cores que se misturam, como se a falta de vista dos clientes não fosse suficiente para dificultar a leitura, e a idade ajudasse a percepção do raio do quadro.
Sabe José Luís, eu sei que as coisas se passam assim porque já lá fui mais vezes mas hoje não vi nada disto. Comecei a ler Cal de manhã no metro e acabei na sala de espera do consultório. Sei que leio depressa, mas a leitura da sua escrita dá-me urgências ainda maiores que as normais, o que se torna engraçado porque tudo é sereno e dá-me a sensação de que escreve devagar, inspirando e expirando cadenciadamente a cada nova palavra.
Ontem acabei de ler uma pedrada, daquelas que nos fazem sorrir e ficar felizes, mas a sabermos porque sorrimos e estamos felizes: Deixem Falar as Pedras; e há um ritmo, um bater de pezinho, um cantarolar na escrita do David Machado que não há na sua, que é duma tranquilidade que leva às lágrimas, duma envolvência que se mete no sabugo das unhas. Nenhum Olhar já me tinha feito chorar, e outras palavras suas, como o Livro também, estão aqui, ali, está a vê-los?, em lugar sempre aquecido, mas Cal tocou-me particularmente e vou explicar-lhe porquê.
Zé Luís, posso tratá-lo assim?, Zé Luís eu também sou alentejana e vi a minha avó Nicácia na Cal, e lembrei-me da caleira que estava sempre no quintal de cima, dura que nem cornos e que se reavivava todos os anos antes das festas de Nossa Senhora do Ó, quando era tudo caiado. Eu só ajudava se não estivesse com aquilo, que era a forma da minha avó aludir à menstruação, pois quem mexia em cal quando estava com aquilo ficava louca.
Os braços da minha avó eram moles como doce de ovos, mas eram mais lindos que os braços da Júlia da farmácia, ai pode apostar com quem queira! Quando a minha avó se zangava largava conhos até dizer chega, sem saber várias coisas, como por exemplo o que queria aquilo dizer e sem saber que levava til porque a minha avó não sabia escrever, só fazia o nome e punha o dedo. Mas sabia contar e desenvolveu um esquema próprio para a ajudar nas contas do talho e saber quanto era meio arráte, nome pelo qual chamava ao arrátel, quando uma família comia metade de metade de quilo de carne durante uma semana.
A minha avó fazia meia com um sistema de quatro agulhas, meias grossas de linha que aqueciam os pés do meu avô. O calcanhar era o mais difícil, mas ela fazia aquilo rápido e não se enganava. Quando não fazia meia, nos fins de tarde de Verão, sem tamanho que se conseguisse medir, penteava-se com um pente de finíssimos dentes e cá dentro eu sabia que ela tinha sido a inspiração para a bela infanta, no seu jardim assentada, com o pente de oiro fino, seus cabelos penteava. Que dúvida podia haver?
No dia da procissão a minha avó tirava o avental, nos outros dias mudava-o. Mesmo quando vinha a Lisboa, que detestava, vinha de avental, um avental próprio para sair onde ela guardava o lenço para se assoar e para lhe limpar lágrimas que sempre lhe escorriam sem saber porquê. Eu é que não sei porquê, percebe Zé Luís?, ela talvez soubesse.
A avó Nicácia e o avô Gualdino – e aqui paro de escrever, procurando as palavras certas que, não só não encontro, como parece-me bem que não existem e terei que procurar umas aproximadas – a avó Nicácia e o avô Gualdino são presenças muito fortes na minha vida e o Zé Luís hoje apareceu-me de mão dada com eles, assim, de repente, de forma inesperada, até à sala de espera do consultório, onde qualquer um dos que lá estava podia ser um deles, mas apenas um estava com alguém que podia ser eu. Os outros estavam sozinhos.
A casa da minha avó tinha três quintais: o quintal, o quintal de cima e o quintal das galinhas.
O quintal era florido, como a dona, na altura certa ficava com um chapéu de videiras que nos abrigava a nós também daquelas calorinas e tinha um poço; era no quintal que estava o tanque que deu origem a muitos gritos dela a pedir-me para deixar de lavar roupa às três da tarde de Julhos e Agostos no Alentejo profundo com temperaturas a tocar 50 graus.
O quintal de cima tinha laranjeiras, leiras de hortelã, poejos, coentros e outras ervas e a lenha. O gigantesco monte de lenha era outro planeta habitado por gatos essencialmente, mas também por ratos e outros bichos cujas casas eram demolidas quando o meu avô ia buscar barrotes para o lume.
O quintal das galinhas tinha galinhas, porcos, vacas, uma mula e um macho, patos, coelhos, mas as galinhas tinham um qualquer lugar especial e davam o nome ao quintal. A minha avó passava muito tempo a migar restos para as galinhas e ficava com os dedos retalhados, mas de cor normal. Quando retalhava azeitonas ficava com as mãos pretas; eu descascava laranjas para lhe juntar as cascas. Ela depois metia lá as mãos e como que amassava as azeitonas com a laranja, os orégãos aos molhos e apetecia-me cantar.
A minha avó, Zé Luís, era gorda como uma mesa redonda, mas o espaço que ela ocupava era muito maior que o espaço quadrado em si porque ela era um mundo, ou dois. Era um mundo do passado que sabia coisas que estavam adormecidas, não mortas, caso contrário não apareciam ali densas, a solidificarem com as palavras dela em estórias do antigamente. Era um mundo do presente porque nem o mundo seria mundo se ela não existisse, com o seu cabelo comprido que compunha num monho com ganchos e se deixava rir quando eu lhe dizia que ela o devia cortar. Ai Zé Luís, as crianças…, as crianças são boas pessoas mas são tolinhas, então já viu, eu a sugerir que ela cortasse bocados dela própria?
Ela tinha um forno onde fazia pão, às vezes, poucas, e muitas vezes fazia bolos. E fazia café numa cafeteira preta que se confundia com o lume no chão e era bom como nada que eu tivesse provado entretanto e se lhe metesse um bolo do cozido partido aos bocados, valia a pena morrer a seguir porque morria feliz e lambuzada.
Sabe que ela me deixava usar o garfo do meu avô? É verdade. O meu avô só comia com um certo garfo que era diferente dos outros e tinha um cabo de madeira; quando ele não estava ninguém lhe mexia, como se fosse um objecto sagrado; mas eu podia comer com ele… era como deixar a pequena princesa brincar com a coroa da rainha. Sei que me entende.
Muitas, muitas, muitas, muitas vezes fui com a minha avó à loja: à do Campaniço, à do senhor Caetano. O senhor Caetano era mais rico que o Campaniço e chamava-se-lhe senhor antes do nome; com o outro ia-se directamente ao apelido. Um pão ou um pacote de arroz era epopeia para uma manhã bem medida. Saíamos de casa na Coitada, descíamos até à ribeira, com muitas escalas pelo caminho, falando com toda a gente, como se não se vissem há meses, depois entrava-se na loja e estava feita a primeira etapa. Na loja passavam-se horas e repetia-se muito uma frase que me fazia rir, ‘ai, despache-me lá primo, que eu tou cheia de pressa’, mas deixavam-se ficar. E a minha avó também reclamava do vagar mas contribuía para ele e eu percebi que aquilo fazia parte do teatro de ir à loja, fosse à do Campaniço, fosse à do senhor Caetano. E depois havia sempre uma guloseima para mim. Sempre.
Quando entrei na universidade o meu pai não recebia ordenado há meses e eles mandaram-me o dinheiro para os livros, já falei disso muitas vezes Zé Luís. Sabe, demorei muito tempo a perceber, mas hoje sei porque é que as lágrimas se assomam à janela dos olhos quando entro no metro e há alguém a tocar um instrumento qualquer: é um chamamento! E lembro-me dos meus avós, vejo-os hoje e sempre, mesmo quando o fazia ao vivo e sem saber porquê chorava de alegria.
Não quero maçá-lo… podia ficar aqui a contar-lhe estórias e histórias dos meus avós até perder a voz e mesmo assim não terminava a viagem.
Os meus avós que viviam numa casa caiada, que não usavam tinta e sim cal, branca, como se usassem a paz para pintar as paredes da sua casa e da sua vida.
Fique bem Zé Luís e seja feliz
Hoje de tarde fui ao médico, sabe? Não sei como aconteceu, baralhei-me nas horas e cheguei uma hora mais cedo; fiquei na sala de espera que tem uma maquineta para tirar senhas muito sofisticada, uma para consultas a marcar, outra para consultas marcadas, mas para avisar na recepção que já chegámos, outra só para pedir receitas, outra para carimbar papéis depois de sairmos da consulta e outra para não me lembro. Há muitos velhos ali e raros são os que chegam e esticam o dedo e carregam na tecla certa à primeira; a maioria olha, olha, e não sai da indecisão até que uma alma caridosa pergunta o que foram fazer e lhes tira a senha, mas nem por isso lhes resolve o problema pois a chamada faz-se num quadro electrónico cheio de cores que se misturam, como se a falta de vista dos clientes não fosse suficiente para dificultar a leitura, e a idade ajudasse a percepção do raio do quadro.
Sabe José Luís, eu sei que as coisas se passam assim porque já lá fui mais vezes mas hoje não vi nada disto. Comecei a ler Cal de manhã no metro e acabei na sala de espera do consultório. Sei que leio depressa, mas a leitura da sua escrita dá-me urgências ainda maiores que as normais, o que se torna engraçado porque tudo é sereno e dá-me a sensação de que escreve devagar, inspirando e expirando cadenciadamente a cada nova palavra.
Ontem acabei de ler uma pedrada, daquelas que nos fazem sorrir e ficar felizes, mas a sabermos porque sorrimos e estamos felizes: Deixem Falar as Pedras; e há um ritmo, um bater de pezinho, um cantarolar na escrita do David Machado que não há na sua, que é duma tranquilidade que leva às lágrimas, duma envolvência que se mete no sabugo das unhas. Nenhum Olhar já me tinha feito chorar, e outras palavras suas, como o Livro também, estão aqui, ali, está a vê-los?, em lugar sempre aquecido, mas Cal tocou-me particularmente e vou explicar-lhe porquê.
Zé Luís, posso tratá-lo assim?, Zé Luís eu também sou alentejana e vi a minha avó Nicácia na Cal, e lembrei-me da caleira que estava sempre no quintal de cima, dura que nem cornos e que se reavivava todos os anos antes das festas de Nossa Senhora do Ó, quando era tudo caiado. Eu só ajudava se não estivesse com aquilo, que era a forma da minha avó aludir à menstruação, pois quem mexia em cal quando estava com aquilo ficava louca.
Os braços da minha avó eram moles como doce de ovos, mas eram mais lindos que os braços da Júlia da farmácia, ai pode apostar com quem queira! Quando a minha avó se zangava largava conhos até dizer chega, sem saber várias coisas, como por exemplo o que queria aquilo dizer e sem saber que levava til porque a minha avó não sabia escrever, só fazia o nome e punha o dedo. Mas sabia contar e desenvolveu um esquema próprio para a ajudar nas contas do talho e saber quanto era meio arráte, nome pelo qual chamava ao arrátel, quando uma família comia metade de metade de quilo de carne durante uma semana.
A minha avó fazia meia com um sistema de quatro agulhas, meias grossas de linha que aqueciam os pés do meu avô. O calcanhar era o mais difícil, mas ela fazia aquilo rápido e não se enganava. Quando não fazia meia, nos fins de tarde de Verão, sem tamanho que se conseguisse medir, penteava-se com um pente de finíssimos dentes e cá dentro eu sabia que ela tinha sido a inspiração para a bela infanta, no seu jardim assentada, com o pente de oiro fino, seus cabelos penteava. Que dúvida podia haver?
No dia da procissão a minha avó tirava o avental, nos outros dias mudava-o. Mesmo quando vinha a Lisboa, que detestava, vinha de avental, um avental próprio para sair onde ela guardava o lenço para se assoar e para lhe limpar lágrimas que sempre lhe escorriam sem saber porquê. Eu é que não sei porquê, percebe Zé Luís?, ela talvez soubesse.
A avó Nicácia e o avô Gualdino – e aqui paro de escrever, procurando as palavras certas que, não só não encontro, como parece-me bem que não existem e terei que procurar umas aproximadas – a avó Nicácia e o avô Gualdino são presenças muito fortes na minha vida e o Zé Luís hoje apareceu-me de mão dada com eles, assim, de repente, de forma inesperada, até à sala de espera do consultório, onde qualquer um dos que lá estava podia ser um deles, mas apenas um estava com alguém que podia ser eu. Os outros estavam sozinhos.
A casa da minha avó tinha três quintais: o quintal, o quintal de cima e o quintal das galinhas.
O quintal era florido, como a dona, na altura certa ficava com um chapéu de videiras que nos abrigava a nós também daquelas calorinas e tinha um poço; era no quintal que estava o tanque que deu origem a muitos gritos dela a pedir-me para deixar de lavar roupa às três da tarde de Julhos e Agostos no Alentejo profundo com temperaturas a tocar 50 graus.
O quintal de cima tinha laranjeiras, leiras de hortelã, poejos, coentros e outras ervas e a lenha. O gigantesco monte de lenha era outro planeta habitado por gatos essencialmente, mas também por ratos e outros bichos cujas casas eram demolidas quando o meu avô ia buscar barrotes para o lume.
O quintal das galinhas tinha galinhas, porcos, vacas, uma mula e um macho, patos, coelhos, mas as galinhas tinham um qualquer lugar especial e davam o nome ao quintal. A minha avó passava muito tempo a migar restos para as galinhas e ficava com os dedos retalhados, mas de cor normal. Quando retalhava azeitonas ficava com as mãos pretas; eu descascava laranjas para lhe juntar as cascas. Ela depois metia lá as mãos e como que amassava as azeitonas com a laranja, os orégãos aos molhos e apetecia-me cantar.
A minha avó, Zé Luís, era gorda como uma mesa redonda, mas o espaço que ela ocupava era muito maior que o espaço quadrado em si porque ela era um mundo, ou dois. Era um mundo do passado que sabia coisas que estavam adormecidas, não mortas, caso contrário não apareciam ali densas, a solidificarem com as palavras dela em estórias do antigamente. Era um mundo do presente porque nem o mundo seria mundo se ela não existisse, com o seu cabelo comprido que compunha num monho com ganchos e se deixava rir quando eu lhe dizia que ela o devia cortar. Ai Zé Luís, as crianças…, as crianças são boas pessoas mas são tolinhas, então já viu, eu a sugerir que ela cortasse bocados dela própria?
Ela tinha um forno onde fazia pão, às vezes, poucas, e muitas vezes fazia bolos. E fazia café numa cafeteira preta que se confundia com o lume no chão e era bom como nada que eu tivesse provado entretanto e se lhe metesse um bolo do cozido partido aos bocados, valia a pena morrer a seguir porque morria feliz e lambuzada.
Sabe que ela me deixava usar o garfo do meu avô? É verdade. O meu avô só comia com um certo garfo que era diferente dos outros e tinha um cabo de madeira; quando ele não estava ninguém lhe mexia, como se fosse um objecto sagrado; mas eu podia comer com ele… era como deixar a pequena princesa brincar com a coroa da rainha. Sei que me entende.
Muitas, muitas, muitas, muitas vezes fui com a minha avó à loja: à do Campaniço, à do senhor Caetano. O senhor Caetano era mais rico que o Campaniço e chamava-se-lhe senhor antes do nome; com o outro ia-se directamente ao apelido. Um pão ou um pacote de arroz era epopeia para uma manhã bem medida. Saíamos de casa na Coitada, descíamos até à ribeira, com muitas escalas pelo caminho, falando com toda a gente, como se não se vissem há meses, depois entrava-se na loja e estava feita a primeira etapa. Na loja passavam-se horas e repetia-se muito uma frase que me fazia rir, ‘ai, despache-me lá primo, que eu tou cheia de pressa’, mas deixavam-se ficar. E a minha avó também reclamava do vagar mas contribuía para ele e eu percebi que aquilo fazia parte do teatro de ir à loja, fosse à do Campaniço, fosse à do senhor Caetano. E depois havia sempre uma guloseima para mim. Sempre.
Quando entrei na universidade o meu pai não recebia ordenado há meses e eles mandaram-me o dinheiro para os livros, já falei disso muitas vezes Zé Luís. Sabe, demorei muito tempo a perceber, mas hoje sei porque é que as lágrimas se assomam à janela dos olhos quando entro no metro e há alguém a tocar um instrumento qualquer: é um chamamento! E lembro-me dos meus avós, vejo-os hoje e sempre, mesmo quando o fazia ao vivo e sem saber porquê chorava de alegria.
Não quero maçá-lo… podia ficar aqui a contar-lhe estórias e histórias dos meus avós até perder a voz e mesmo assim não terminava a viagem.
Os meus avós que viviam numa casa caiada, que não usavam tinta e sim cal, branca, como se usassem a paz para pintar as paredes da sua casa e da sua vida.
Fique bem Zé Luís e seja feliz
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