segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A pobreza consiste em nos sentirmos pobres*

A maioria das pessoas que anda a pedir em Madrid é diferente dos que pedem em Lisboa pela simples razão que dão algo em troca, ou seja, exercem uma tarefa voluntariamente e esperam que lhes demos algo em troca. No metro sucedem-se as modalidades de músicos: um com um carrinho de supermercado coberto com uma lona que esconde uma aparelhagem, põe-na a tocar e acompanha com uma flauta; violas põe-nos o pezinho a bater, gaitas-de-beiços fazem-nos assobiar, instrumentos diversos gingam-nos, há quem faça malabarismos, mímica, contorcionismo. As pessoas dão qualquer coisa, pois não lhes pedem por pedir. Mesmo que não se dê nada, agradecem. Fizeram-me lembrar o cego que anda a pedir no metro em Lisboa e que bate com a bengala nas pernas das pessoas com violência e lhes dirige todo o tipo de impropérios, fazendo calar as carruagens; ninguém diz nada porque é cego, caso contrário já teria levado umas bofetadas, no mínimo. Como todos conhecem o seu comportamento a única coisa que fazem à sua passagem é encolherem-se e desviarem-se o mais possível, quantas vezes para dentro do minúsculo espaço dos que vão sentados: é melhor pedir desculpa do que levar com a fúria do cego que leva tudo à sua frente, não por ser cego, mas por ser bruto. Quando chega ao final da carruagem sem que alguém lhe tenha dado um cêntimo critica a virtude das mães dos passageiros e junta-lhe todo o calão da língua portuguesa.
Na noite que esperava por José Ignácio por baixo do falso quilómetro zero, veio uma mulher a puxar uma mala de viagem em cima da qual se equilibravam dois sacos de boa qualidade. Dirigiu-se a mim e pediu-me dinheiro para ir para o aeroporto. Perguntei se tinha perdido a carteira e esta minha pergunta fez-me sentir um apresentador de circo que anuncia o próximo número; ouvi a história dela: veio das Canárias em busca de trabalho que não conseguiu arranjar, o marido maltrata-a e não a deixa ver o filho, está desesperada e não tem um cêntimo. Olhos claros, braços e pernas limpos, sem marcas, discurso fluente. Perguntei se tinha fome. Que não, uns estrangeiros pagaram-lhe umas tapas, os estrangeiros são mais simpáticos que os espanhóis, eu era uma excepção. Fiquei indecisa sobre se lhe devia dizer que eu era estrangeira e, dessa forma, matar-lhe a réstia de esperança nos espanhóis. Dei-lhe o dinheiro que tinha, razão pela qual passei um momento embaraçoso mais tarde com José Ignácio, eu a insistir em pagar mas como não aceitavam cartão, logo, ele que já tinha guardado a carteira, teve que a tirar de novo e responsabilizar-se pela despesa.
Contei-lhe a cena com a mulher e ele franziu um bocado o sobrolho, sinal que estava na dúvida se eu tinha feito bem ou não… as pessoas têm muitas manhas para se aproveitarem dos outros e eu devia acautelar-me.
Como tanta vez acontece, lembrei-me do Leão da Tunísia, o verdadeiro, o único, trapezista nos melhores circos do mundo que um acidente moveu, como peça de xadrez comida, para fora do tabuleiro da vida e de quem ouvi a história na primeira pessoa; fui a única a acreditar nele, contra vozes de cuidados que se ergueram e quase não me deixavam ouvir, fazendo assim perigar uma das mais belas descrições de vida que já ouvi. Ao contrário dos demais vim com a carteira mais leve mas com a memória mais rica.

*Frase atribuída a Ralph Waldo Emerson

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