segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Com um brilhozinho nos olhos

No segundo dia de estadia em Madrid fui visitar um bibliotecário que me tinha anteriormente contactado para fazer Erasmus na minha biblioteca. Deparei-me com um jovem a rondar os 30 anos, bem-disposto e alegre, que me convidou para um café e me cumprimentou como se eu fosse da família.
No primeiro contacto por escrito, não sei porquê, dissera-me que estava de regresso de uma longa viagem e foram estas as palavras-isco que me prenderam sem ele fazer a mais pálida ideia.
Desinteressada de grandes preliminares fiz a conversa avançar rapidamente e perguntei que longa viagem era aquela. Resposta:
- Samarcanda, Vietname e Cambodja. Já ouviste falar de Samarcanda?
O pobre do rapaz não fez, não faz, nem fará ideia do efeito que teve sobre mim e provavelmente pensou que o meu tímido ‘sim’ seria um ‘não’ que eu envergonhadamente queria esconder. Mas este pensamento só surgiu depois. Depois das palavras entrarem em mim, formarem um remoinho, provocarem uma onda submersa, com efeitos de tempestade tropical mas numa floresta sem vivalma, de modo que ninguém vê. Alguns dos meus músculos petrificam ao sabor de certas palavras que têm uma conotação mágica e José Ignácio conseguiu com apenas um acorde dizer três delas: Samarcanda, Vietname e Cambodja, ganhando a minha dedicação e atenção total sem o perceber e sem sonhar como é difícil alguém conseguir um feito épico desta natureza.
É claro que tudo isto tem enormes doses de inveja e ciúme e, sem dar a entender, projectou-se uma bela longa-metragem na minha cabeça: Samarcanda igual a Alexandre, igual a fabrico de papel, igual a Gengis Khan, igual a Marco Polo, igual a Rota da Seda, igual a sultão, igual a desejo.
Depois de algumas explicações sobre a viagem, começou a falar português e eu acordei do transe. Queria praticar e combinámos que cada um falaria a língua do outro.
Temendo estar a impor-lhe a minha companhia desviando-o do trabalho, fui embora com a promessa de me ir despedir antes do regresso a Lisboa. Disse-me que nesse dia arranjaria mais tempo para falarmos e foi assim que José Ignácio ficou hibernado o resto da semana.
Como alterei a data de regresso, disse-lho por msn e combinámos ‘tomar un vino’ na minha última noite.
Esperei que não trouxesse companhia e a trazê-la, que fossem os companheiros de viagem pois, para ser franca, o que me interessava verdadeiramente era ouvir o relato, de preferência nas línguas dos países visitados, mas também aceitava espanhol ou português com erros. Combinámos no quilómetro zero que eu, tão ansiosa estava, confundi com uma porcaria duma placa na parede que anunciava uma joalharia com o mesmo nome, e à porta da qual um vagabundo bebia e falava sozinho.
Já passavam quinze minutos da hora marcada e pensei que se atrasara pois decerto convidara alguém, colegas de faculdade talvez, da sua idade, que o ajudassem a conversar com a portuguesa que o iria receber em trabalho dentro de meses e com quem tinha que ser simpático. Dei-lhe mais quinze minutos, ao fim dos quais, se não dissesse nada, me iria embora pois não estava para aturar um bando de jovens atrasados que me levariam a um sítio turístico com certeza, onde se falaria muito alto e onde eu não poderia atingir o meu objectivo, ouvir a descrição da viagem.
Surpreendi-me com um telefonema dele a perguntar se estava tudo bem e se eu estava muito atrasada… Atrasada? Eu? Bem, lá esclarecemos o local do quilómetro zero, eu apelidei-me de tonta mas sorri porque ele fora sozinho.
Primeira paragem: cerveja com batatas fritas e anchovas. Tipicamente madrileno, segundo ele, encostados ao balcão, eu com uma mala com um caderno e o meu Kerouac, ele com um monte de papéis.
Segunda paragem: Los Gatos; cerveja e polvo à galega, apinhados com gente a falar e a rir e onde me foi jurado que o local estava vazio. Normalmente não se consegue entrar e do balcão vão passando as cervejas de mão em mão aos clientes pois o empregado não consegue passar.
Terceira paragem e seguintes, só cerveja e muita conversa: sobre a vida, as viagens, os emigrantes, os livros e mais mil coisas, até que ele comenta que agora está mais seguro pois ficou efectivo no trabalho: era arqueólogo e nunca sabia se tinha trabalho ou não, se as verbas chegavam para dar continuidade a escavações em Toledo onde vivia. Registei o facto de ser arqueólogo (tanto que havia a dizer sobre isto…) e com ar maternal perguntei-lhe se podia dar-lhe um conselho; entrei por um discurso sobre a sua idade, falei do caracter chinês comum a crise e oportunidade, falei da velha divisão das pessoas em momentos de crise quando umas choram e outras aproveitam logo para vender lenços, que não tivesse medo da vida, que não se apegasse a empregos que fariam dele uma fotocópia dos pais, que vivesse a vida de olhos bem abertos, para aproveitar e não deixar escapar oportunidades, que o mundo é de facto maravilhoso mas tem que ser explorado, visto com olhos de ver, ao vivo e a cores. Enfim, fiz-lho o discurso nº 1 para alunos cujo objectivo é licenciarem-se e de repente acordam com prestações de casas e carros e móveis e no meio desta vida rotineira e pesada fogem os sonhos que morrem sem alimento.
Ele ouviu-me a sorrir – a esta altura já tinha desistido de falar português embora eu seguisse num espanhol amantizado com a nossa língua materna – e perguntou-me que idade achava eu que ele tinha. Percebi imediatamente o fulgor da sua juventude a sentir um qualquer ataque, como tantas vezes acontece com o meu filho cuja idade o faz pensar que sabe tudo e vê os conselhos dos mais velhos como palavras ocas. Ou seja, concluí que falara demais…
Disse-lhe que não lhe dava mais de 32 achando que estava a ser generosa em lhe aumentar a idade e a resposta foi uma sonora gargalhada que subiu mais alto que todos os outros barulhos juntos. Tirou a carteira e provou que era quase da minha idade…
Continuou a rir e disse saber ter este efeito nas pessoas. Pagámos e saímos, para voltarmos a entrar mas desta vez num local com mesas e cadeiras onde nos sentámos e me contou o percurso de vida por alto, e eu senti-me dentro de Hudson, com Dean e Sal, a ouvir as suas descrições.
Por entre relacionamentos amorosos estivera em Toledo e em Dublin a viver, era arqueólogo, desistira depois a meio do curso de Direito por não lhe dizer nada e um dia descobrira as bibliotecas sobre as quais está a fazer um master e onde trabalha há anos.
Este percurso interessava-me cada vez mais e acabámos por ir embora quando a empregada nos veio pedir o dinheiro dizendo que iam fechar.
Fecham eles mas não a nossa conversa. Entrámos noutro bar, com cadeirões de verga e grandes cinzeiros que não eram para as beatas mas para as cascas de pipas. Não sei como, mas a conversa foi dar aos sobrinhos e ambos tínhamos uma enciclopédia para debitar. Ainda as histórias da miudagem iam a meio quando o dono nos põe a conta à frente, dizendo, Vamos fechar! Já?
Andámos pelas ruas a falar de diferentes cidades europeias, africanas, asiáticas. Está tudo fechado. De repente aparece um jovem a perguntar se queremos beber alguma coisa… ele conhece o sítio certo. Vamos? Vamos!
Começámos a andar como se a polícia viesse atrás de nós numa rua a subir que nos extenuou. Finalmente chegámos a uma porta que quando se abriu nos atacou a visão e a audição com luzes a mexerem-se rapidamente e música de discoteca…
O ‘tio’ que nos levara recebeu imediatamente a propina do que estava atrás do balcão; olhámo-nos mutuamente perguntando-nos em silêncio se ficávamos ou não. Porque não? Será diferente de tudo.
Em Madrid não há excepções para locais de fumo, nem com chaminés, exaustores, o que seja. É proibido e pronto. Por outro lado, não se pode estar à porta de copo na mão, a polícia não deixa. Então bebemos uma cerveja e saímos a fumar. Explico que em Lisboa se pode beber na rua e os bares e restaurantes aderiram à moda de colocar mesas de pé alto às portas, nos passeios, para satisfazer os clientes fumadores.
Concordámos que a hospitalidade portuguesa é maior que a espanhola e ele contou-me episódios passados em Portugal que comprovaram isso mesmo. Disse-lhe que o meu avô adoraria ouvir a conversa e contei-lhe um momento caricato doutros tempos: o meu avô foi ao Rosal de la Frontera, a aldeia mais próxima da sua, não obstante ser espanhola, e entrou numa acesa discussão com um espanhol, cada um argumentando que o chouriço do respectivo país era melhor que o do outro! Ora como a discussão era acompanhado de vinho, rapidamente tomou proporções épicas e acabaram os dois na esquadra da Guardia Civil a passar a noite. O meu companheiro de noitada disse-me com ar sério que se via também obrigado a defender o chouriço espanhol e acabámos a rir.
Quando saímos do tugúrio vi-me diante do Prado. Tínhamos andado assim tanto? Espreitámos o Monumentos a los Caídos por Espanha que vivia na minha ignorância. Eram quatro da manhã e estávamos com as caras encostadas aos ferros, eu aluna a ouvir, ele professor a explicar que a maioria das pessoas confundem o monumento com o do Vale dos Caídos, sem saber que me provocava uma certa tristeza por eu ser uma delas.
Nesse momento recordei uma noite magnífica em Hania, na ilha de Creta quando um companheiro polaco chamado Blazej – também bibliotecário – me levou descalça, para não acordarmos alguém, por um labirinto de ruas estreitas onde ele desencantara uma igreja ortodoxa na noite anterior, cujo chão estava coberto de velas acesas, numa manifestação de fé que as correntes de ar pareciam ser incapazes de parar. Aquilo era tão belo, tão sereno, tão inesperado, tão autêntico, tão nu, que acabei por perder os sapatos e tive que voltar atrás a buscá-los.
A experiência em Madrid não se revestiu do misticismo da de Creta, mas fez-me pensar que a maior parte das situações inesperadas que me acontecem e que não esqueço, são proporcionadas por perfeitos desconhecidos.
As cinco da manhã já se vestiam e aprontavam para sair à rua quando cheguei ao hotel. O meu companheiro e eu despedimo-nos com um afectuoso abraço, mas como quem se vai encontrar de novo no dia seguinte. Não faço ideia de quando será o dia seguinte, mas penso que fiz um amigo e coisa mais preciosa no mundo não há.

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