segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O assalto

Se há coisa que as férias ainda não aprenderam foi a caminhar, sempre a galope, qual cavalo selvagem. Aquelas não eram excepção. Mesmo assim, corriam mais lentas que nos dias de hoje pois ainda não existiam telemóveis.
A casita alugada não tinha telefone fixo, pois claro, e tomávamos lugar na fila para a cabina na praça central e fazíamos o dever do telefonema à família. A conversa era sempre a mesma, Que sim, que estava tudo bem, a praia estava óptima e do outro lado anunciavam-se saudades, como se estivéssemos emigrados nas Franças e não víssemos a família há meses.
Um dia disse ao meu marido que fossemos a meio da tarde fazer o telefonema da ordem para evitarmos a fila nocturna e os sucessivos telefonemas para a Alemanha, Dinamarca, Espanha e todos os países de origem dos turistas que chegavam primeiro que nós ao telefone.
Se mais cedo tivéssemos ido mais cedo regressaríamos a Lisboa: do outro lado, a voz da minha mãe mostrou-se ansiosa com um ainda bem que telefonaram, e cautelosa lá nos disse que a nossa casa fora assaltada. Aparentemente não faltava nada, mas só nós é que podíamos ter essa certeza. A polícia esperava pela informação, a Judiciária, precisou ela. A Judiciária? Desde quando é que tomavam conta de assaltos? Que estranho…
Tarecos no Fiat Uno, estrada acima, muito curiosos e expectantes com o que faltaria pois, de certeza, os ladrões deviam ter levado qualquer coisa, mas o quê?
Nessa altura morávamos naquela que ficou para a história como a Casa Azul: uma vivenda pintada com um azul piscina tão fascinante que numa ocasião em que fui de táxi para casa e dei a referência ao taxista, o cruzamento que ficava diante da casa, ele disse saber onde era, ficava mesmo ao pé daquela casa azul, horrível. Pelo caminho ainda dissertou sobre o que levaria as pessoas a escolher cores como aquela, e pensei o que me responderia ele se lhe desse o número de telefone do meu sogro para que perguntasse…
A Casa Azul era enorme: nós morávamos no rés-do-chão e os meus sogros e cunhada no andar de cima. Tinha um enorme quintal nas traseiras e uma garagem onde cabiam quatro carros. Na frente, o metro quadrado de terra com umas tímidas plantas tinha o nome pomposo de Jardim.
Quando chegámos já o vidro da janela por onde os meliantes entraram estava substituído, tarefa a que o meu sogro se entregou na manhã seguinte ao assalto.
Os assaltantes eram três, pularam o muro, dirigiram-se às traseiras, partiram o estore e o vidro e entraram em casa. Primeira tarefa: abrir as janelas todas, à excepção de uma que dava para a vivenda do lado esquerdo, um lar de idosos. Todas as outras, num total de seis janelas, foram escancaradas. Mesmo as que davam para o lado oposto ao lar, outra casa com características semelhantes, mas desabitada pois estava a sofrer obras profundas.
Como é que o meu sogro sabia que eram três? Alguém os viu?
Acontece que a casa do lado estava desabitada, de facto, mas não a garagem… Então o que aconteceu?
Os nossos vizinhos estavam não só a remodelar a mansão, mas também a fazer a bela da piscina. O quintal, não, eles tinham jardim, quintal tínhamos nós, o jardim estava cheio de máquinas e o homem lá achou por bem contratar alguém para ficar de olho nelas. Esse olheiro dormia na garagem, coisa que ninguém sabia.
Naquela noite acordou com vidros a partirem-se e foi espreitar sorrateiro. Viu logo os nossos belos cortinados da sala a quererem fugir com o vento pela janela de vidros em cacos e percebeu que a casa estava a ser assaltada. Viu as outras janelas a serem abertas, enquanto se manteve em silêncio. Ficou a pensar que tinha que fazer alguma coisa, mas o quê? E se o tipo fosse violento? Não pensou em usar o telemóvel pois, como já se viu, ainda não tinham sido inventados… pensou, pensou, pensou, até que teve uma ideia, e boa, diga-se de passagem. Se ele não via o ladrão, ou ladrões, era muito provável que eles também não o vissem. Foi buscar as chaves do seu próprio carro, arriscou-se a sair da garagem, encostou-se ao muro comum às duas casas e avançou agachado rente ao muro até ao portão, que abriu com mil cuidados. Chegou ao carro e começou a abaná-lo com força. Foram precisas três abanadelas para o alarme começar a tocar.
Deixou-se ficar escondido pelo carro e foi aí que viu três homens vestidos de negro da cabeça aos pés a saírem por três janelas diferentes. Dois deles lavavam coisas nas mãos. Fugiram a pé. O homem meteu-se no carro e foi avisar a polícia. Estavam os meus sogros a entrar com o carro na garagem quando chegaram os agentes acompanhados do homem. Ainda nem tinham dado conta do que acontecera.
Lá entraram todos, o homem a penalizar-se pelo medo e pela idade que o impediram de correr atrás deles.
O pé de cabra com que entraram ficou na sala. Começou aí a sucessão de coisas estranhas que fez com que chamassem a Judiciária: os candeeiros da sala eram aquilo a que se chama plafonds, e estavam cuidadosamente colocados nos sofás.
Em cima da mesa do escritório estavam lado a lado, com minúcia de distância entre eles: livros de cheques, uma caixa com fios e brincos de ouro e aquelas pulseiras de Lembrança da Madrinha que ambos guardávamos, entre outras quinquilharias e um pote cheio de moedas que eu guardava como mealheiro. Não faltava nada. Duas das caixas dos estores estavam abertas, mostrando toneladas de pó e cotão. 
A casa de banho tinha o autoclismo dentro da parede, mas ainda tinham retirado a maçaneta do dito, mostrando o buraco na parede. Mas a coisa mais esquisita eram as fotografias de casamentos e baptizados, por assim dizer, espalhadas no chão do escritório e os álbuns fotográficos em cima das cadeiras. Que raio era aquilo?
Lá demos volta à casa e vi que faltavam algumas das minhas malas, das que costumava usar no Inverno, assim como as que costumava usar em casamentos e baptizados, e que estavam guardadas dentro dum armário, nada mais. As malas que usava no Verão, penduradas num cabide à entrada da porta, estavam todas no seu lugar.
Enquanto deixávamos a estranheza tomar cada vez mais conta de nós e nos perguntávamos repetidamente, mas que raio…?, lá fomos à polícia dar conta das malas roubadas e o que eles tinham para nos dizer parecia um filme: aparentemente tinha havido um engano e os ladrões assaltaram a casa errada.
Quiseram saber se tínhamos alguma jóia especial. Se a pergunta tivesse sido colocada aos meus pais, tenho a certeza que a resposta do meu pai seria que a única jóia da vida dele era a minha mãe. Nós respondemos ambos que não. Então explicaram-nos que tudo indicava que os assaltantes procuravam uma determinada jóia, uma peça valiosa daquelas que não se guarda no guarda-jóias, mas antes se esconde bem escondida, por exemplo nos apliques dos candeeiros, nos autoclismos ou em qualquer outro local de difícil acesso, mas que podem ser inúmeros pois, por norma, estamos a falar de coisas pequenas, um anel, um pregador ou algo do género.
A coisa tinha sido estudada pelos profissionais do roubo: sabiam que estávamos de férias; sabiam a que horas chegavam os meus sogros; sabiam que a casa da esquerda estava habitada – o lar – por isso não abriram a janela desse lado; abriram todas as outras janelas para poderem ter pontos de fuga imediatos em caso de necessidade; apenas não sabiam que dormia alguém na garagem do lado…
As gavetas não estavam reviradas pois o tipo de coisa que procuravam não se esconde em gavetas; levaram as malas pois não tendo encontrado o que procuravam, era provável que estivesse guardado numa delas, principalmente em duas com características de serem usadas apenas em dias especiais.
As fotografias espalhadas no chão do escritório ajudavam à tese: em que ocasiões se usam jóias? Nas festas. Não tendo encontrado o que procuravam, deram uma vista de olhos nas fotografias procurando ver a dita jóia. A meio de todas estas tarefas o homem que guardava a maquinaria da casa do lado pô-los em fuga.
Semanas mais tarde telefonaram-me da escola de línguas onde andava a ter aulas de alemão: alguém os contactara dizendo ter encontrado umas malas numa pedreira a poucos quilómetros da zona onde morava. Dentro duma delas estava o cartão da escola com o meu nome. O senhor que as encontrara deixara o seu telefone para que eu lhe ligasse. Assim fiz e encontrei-me com o homem que disse andar a passear o cão quando deu com as malas. Estranhou estarem todas em bom estado e serem várias. Vasculho-as e encontrou aquele contacto. Foi assim que recuperei a única coisa que os ladrões levaram.
Quando o meu filho era pequeno contei-lhe a história do assalto. A parte melhor da narrativa foi a observação dele:
- Então eles não chegaram a encontrar a jóia! Onde é que vocês a tinham escondida? Mostra-ma!

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