Numa ocasião, em Marrocos, assisti a uma das cenas mais loucas da minha vida.
Quando aterrámos fomos incorporados numa pequena excursão com mais cinco pessoas, um casal de espanhóis e três portugueses, tios e sobrinha.
Os portugueses eram donos duma loja de pneus em Caminha e o homem era conhecido, e assim se nos apresentou, como o António dos pneus. Para além disso, eram produtores de Vilarinho, cujas propriedades eles choraram durante aquela semana, em que se viram inibidos de o ingerir. Ele andava com maços de notas, em escudos ainda, a saírem dos bolsos, de tal forma que o meu (ainda) marido o aconselhou por mais de uma vez a tomar atenção quando tirava qualquer coisa das algibeiras.
O snobismo dela era tão atroz que se tornava cómico. Chegados a um hotel, ela perguntava-lhe:
- Oh António, a nossa piscina é maior do que esta, não é?
Dirigindo-se ao marido todas as frases da senhora começavam com Oh António, o que ainda nos dava mais vontade de rir, pois parecia que ia começar a cantar uma qualquer cantiga pimba. Algures lá para o sul, não me lembro onde, já sentados na mesa do restaurante, ela pergunta:
- Oh António, estes talheres não são em prata, pois não?
E virando-se para a plebe esclareceu:
- É que lá em casa nós só comemos com talheres de prata.
Para além destas pérolas ainda nos tentou convencer que, quando era emigrante em França, amigos seus marroquinos faziam a viagem de comboio entre França e Marrocos, directa e sem passarem pelo Estreito de Gibraltar, nem sequer pelo Mediterrâneo, proeza que ainda hoje me assombra!
Por onde passavam compravam tudo o que havia e que não havia para comprar, desde tapetes a casacos, passando por mobiliário, especiarias, roupa, jóias. Ao fim dos primeiros dias, o carrego era gigante.
Valia-lhe a ele a modéstia, nas conversas e nas atitudes, em contradição com a estupidez natural dela, cuja situação de nítido desafogo financeiro a levava a pensar que isso equivalia a poder dizer e fazer o que bem lhe apetecesse.
Nós e os espanhóis gozávamos à francesa! Os espanhóis eram funcionários da Iberia, ela hospedeira, ele engenheiro e quando ouviram o casal dos pneus afirmar que tinham em casa vários faqueiros, feitos à custa de companhias de aviação, pois roubavam (sic) os talheres todos, passámos a chamá-los O terror de los cubiertos.
Em Marraquexe, e depois dum fim de tarde encantador, mágico, que guardo na memória como dos mais prazenteiros da minha vida, na esplanada sob a praça Jemna el Fna, onde quase se sente o sabor das especiarias na ponta dos dedos, saímos da esplanada e fomos dar uma volta pela praça.
Já os candeeiros dos vendedores de laranjas se acendiam, os encantadores de serpentes a fazerem-nos arrepiar ainda mais, os magníficos contadores de histórias (falarei sobre isto em post dedicado) a cativar assistência e os inevitáveis dentistas, espalhados por ali, à espera de clientes.
A comitiva da excursão andava dispersa, uns por aqui outros por ali, com hora marcada em determinado sítio, para o reencontro e com tempo calmo para as inevitáveis compras.
Ao deambularmos pela praça avistámos o António dos pneus, carregado com sacos, como uma mula, mas ainda com dedos para carregar no botão da máquina fotográfica. E esse foi o mote para o que se seguiu.
Ele tirou uma fotografia a um dentista e ia virar costas, quando o profissional dos dentes e das dentaduras começou um rebuliço de voz, que o mesmo é dizer, uma gritaria. Clamava pelo pagamento que não fora feito! O pobre do António não percebia nada e ainda olhou de esguelha para trás, na esperança que aquilo não fosse com ele. Mas era. De longe gritámos-lhe que lhe desse dinheiro:
- António pague-lhe, pague-lhe!
Mas o António estava tão surdo pelo medo que deixou que o dentista o agarrasse, puxasse e sentasse na marquesa de rua sem que pudesse fazer alguma coisa, pois nem agitar os braços lhe era concedido, tão pesados e carregados estavam com cachimbos de água, djellabas, sacos de especiarias, sapatos bicudos e enrolados na biqueira, chapéus de Musli, turbantes e quanto mais houvesse em Marraquexe para comprar.
Já a correr na direcção dele vimos o dentista, aos gritos, usar o próprio corpo para o segurar, joelho em cima do António e, com uma mão, abria-lhe a boca, e com a outra dirigia uma turquês em direcção dos dentes do desgraçado, que nem gritar conseguia.
Quando nos abeirámos dele o meu marido deu uma nota, muito simpática, ao dentista e começou logo a puxá-lo, ajudando-o a levantar-se da cadeira.
Levantámos as mãos à altura do peito, a olhar para o dentista, gesto mundial para designar paz e lá fomos embora com o António atrelado aos seus inúmeros sacos.
Um pouco adiante a nossa viatura apanhou-nos e o António, lívido, entrou como se fosse o Paraíso e 70 virgens o esperassem.
Lá agradeceu, à sua maneira meio bruta, e acabou por se rir. Mas como as lições nem sempre são aprendidas, no dia seguinte já estava outra vez a fazer disparates.
Num restaurante, bastante modesto por sinal, em cima da mesa havia uma pequena jarra de loiça, sem qualquer história, e nulo interesse. Quando o empregado veio buscar a encomenda ele perguntou-lhe:
- Me regalas isto?
Convém esclarecer que ambos, marido e mulher, misturavam o português com o espanhol, aumentando substancialmente o volume quando se dirigiam aos marroquinos, achando, como muito boa gente, que se falarmos mais alto, os estrangeiros ouvem melhor, donde se conclui que não nos entendemos, não é por falarmos línguas diferentes e sim por eles serem surdos.
O homem respondeu que não, que não podia regalar-lhe nada e quando virou costas, sem qualquer constrangimento, o António meteu a jarra no bolso, olhando para as nossas caras atónitas e dizendo:
- Vocês viram que eu pedi! Ele não mo deu, então…
Depois disto, comentei com o meu marido que ele merecia que o dentista lhe tivesse arrancado um dente! A sangue frio!
terça-feira, 7 de setembro de 2010
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