sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Porquê comprar dois livros (aparentemente) iguais?

Pediram-me para colocar o e-mail no blogue. Já cá está e foi utilizado por alguém que me pergunta porque razão compro eu dois livros iguais e porque dou importância a aspectos que em nada alteram o conteúdo.
Antes de responder quero agradecer aos leitores que me acompanham. Não posso deixar de estranhar que queiram comunicar comigo e não o façam aqui, nos comentários, pois todos serão bem vindos!
Por outro lado, achei imensa graça às voltas dadas para que a mensagem me chegasse, uma autêntica epopeia, mas resultou. Fico comovida que me leiam e que me devolvam pensamentos e reflexões. Obrigada.

Porquê comprar dois livros (aparentemente) iguais?
Já experimentaram comer uma bela refeição, mas de pé, com o prato na mão e o copo de vinho algures, perdido no meio de outros, igualmente perdidos, sem se saber qual é de quem? Pois acontece o mesmo com os livros. A refeição, ingerida incomodamente em pé ou confortavelmente sentados, é a mesma.
Com os livros destaco a textura, o peso e a cor do papel, a capa, se é mole ou dura, as lombadas, o tipo de letra, o espaçamento entre linhas, as margens, as badanas. Tudo conta. Realço a capa de Solar, de Ian McEwan (editado pela Gradiva), cujo acetinado nos remete, antes sequer de o abrirmos, para uma sensualidade difícil de encontrar nos livros. Depois de o lermos – gostei bastante – até podemos pensar que o editor quis brincar connosco, e levar-nos a pensar uma coisa diferente da realidade, mas eu entendi esse gesto, não como um engano, mas como um desafio.
Em termos de livros científicos, cuja carapaça é sempre linear e desinteressante, veja-se A imagem útil, de Miguel Figueira de Faria, com uma capa tão bela e cuidada, que nos remete sem qualquer dúvida para um conteúdo recheado de interesse. É um livro que não engana. Na versão em capa dura (azul escura, sóbria) sobrepõe-se-lhe uma capa em papel com enormes badanas que são, elas próprias, conteúdo, e por onde se espraia o título. Na versão em capa mole, de boa gramagem, a própria capa reproduz a imagem, onde os cuidados com a fotografia não foram secundados, mostrando-nos um exemplo onde nada foi deixado ao acaso.
Porque nos sentimos atraídos por determinadas pessoas e não por outras antes mesmo de falarmos com elas? Um livro bem revisto para mim é um Steve McQueen e uma boa tradução pode ser um Paul Newman!
Quando compro livros cujas traduções me deixam desconfiada tento comprar também um na língua original – se for em inglês ou espanhol, pois não domino outras – e vou ler aquela passagem para apanhar o espírito da mão do autor. A primeira vez que me aconteceu foi com Os sete pilares da sabedoria, de T. E. Lawrence. Mais do que faltar ali qualquer coisa, havia pensamentos não esclarecidos (para o leitor) e achei que podia ultrapassar a desconfiança lendo em inglês.
Darei um exemplo claro: se uma obra portuguesa for traduzida, como se traduz a palavra saudade? Ora, saudade é mais que um sentimento, muito mais que uma palavra, é um símbolo, um estado de alma único e cada língua tem as suas impossibilidades de tradução, que ficam ao critério dos tradutores. Eu quero saber como foi escrito, sempre que possível sem mediação, sem intermediários, que escolhem as palavras, que as substituem.
O meu alemão é quase nulo mas sei que a construção frásica se faz de forma diferente, o que indicia uma organização mental também diferente. Darei um breve exemplo: o verbo fernsehen significa ver televisão. Enquanto em português existe um verbo e um sujeito, juntam-se mas não se misturam, permitem outros casamentos, outras ligações, em alemão há uma junção, como se fosse uma coisa só. Foi isto que me levou a mentir e a dizer não, quando me perguntaram se tinha e emprestava O gato e o rato de Günter Grass. O pedido veio dum jovem adulto e a edição que tenho não foi bem traduzida. Recomendei-lhe outra e ofereci-me para lha comprar, mas não quis comprometer a sua entrada em Grass com uma edição fraca.
Já aqui falei de O guardião de livros, que li nas férias e cuja revisão é atroz. Dificilmente o emprestarei, mesmo que me digam, como acontece muito, que não faz mal. Faz sim, é como se emprestasse um casaco sem botões, umas botas sem sola ou um guarda-chuva todo partido.
Vejo as características dos livros como as vejo nas pessoas. A parte de dentro não se vê logo ao primeiro contacto, a parte de fora sim. Pode ser um George Clooney com interior de oficial das SS. Pode ser a Betty Feia com interior de Madre Teresa de Calcutá. Mas eu procuro sempre um Matthew Mcconaughey com interior de Alberto Manguel, para referir o autor que deu origem a esta conversa, podiam ser outros.
Fico desiludida com um mau livro na perspectiva duma má tradução ou má revisão; encalho nas gralhas e custa-me passar adiante. Para mim os livros são visuais, leio e vejo o que está a ser descrito, as expressões faciais das pessoas, sinto dor e alegria, transpiro, acelera-se-me a respiração, arrepio-me. Quebra-se todo o encantamento quando a leitura é interrompida por uma gralha que me faz saltar, por um erro cronológico, por um anacronismo. Não tenho culpa de ser assim, tal como o motorista do metropolitano ontem também não teve culpa de estarmos parados numa estação tempo infinito, por motivos que lhe eram alheios. Ele não podia avançar, não conseguia. Eu também não, porquê, não sei. Posso continuar a ler, mas crio uma distância com a leitura, como se desconfiasse de tudo o que vou ler a seguir, como se aquilo, a partir daquele momento, não fosse legítimo, como se eu deixasse de acreditar.
Gosto de neologismos e tenho uma certa pena de não sentir mais necessidade em os criar. Fazem-me abrir os olhos de espanto e interesse pois resultam da necessidade de alguém ir onde mais ninguém ainda foi, o que me fascina, é claro. Ir mais longe e mais além sempre foi um sonho.
Por outro lado também constato que por vezes são criados por um desconhecimento da língua, e aqui recomendo a aquisição dum dicionário…
Se sou uma leitora esquisita? Sou. Embora leia tudo, ou quase tudo, o que me vem parar às mãos, mas não deixo de pensar que tanto posso estar diante duma vista para o Curral das Freiras, imponente, ou para as traseiras do meu prédio.

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