Diz-me o M. que quer ler Guerra e Paz mas lá em casa só há uma edição de estante. Farto-me de rir com ele e entendo-o na perfeição. Como levar aquele calhamaço nos transportes, com capa dura debruada a dourado? Como escrever apontamentos e deixar marcas em edições de estante?
Na anterior reflexão sobre a razão de comprar dois (ou mais…) exemplares do mesmo título, coloca-se, é claro, a possibilidade de termos primeiras edições, livros comprados em alfarrabistas, ou sebos, com papelinhos lá pelo meio, bilhetes de autocarro, de cinema, facturas ou listas de compras. A lista de possibilidades é imensa.
Quando falo numa primeira edição não me refiro a Nora Roberts, a quem não retiro a importância que tem como captadora de leitores.
Lembro, lembrarei sempre, o momento em que tive nas mãos e em simultâneo as edições de Os Lusíadas, com o pisco para a direita e o pisco para a esquerda. Ambas primeiras edições. O momento foi-me proporcionado por José Mindlin e eu nem queria acreditar no que estava a acontecer. É claro que este exemplo não se repetirá e não me vejo com a Bíblia de Gutenberg na mão, não que eu não o desejasse! Mas são momentos que gente como eu vive apenas uma vez. E ficamos felizes.
O V. fala-me de livros autografados pelos autores que encontra pelos alfarrabistas lá dos Mares do Norte. Apodera-se deles como um esfomeado duma côdea de pão e eu fico cheia de inveja.
Comprei As memórias de Adriano num sebo em São Paulo e guardo-o longe da vista de todos, embora nem precisasse, pois qualquer um que me visite não se sentiria atraído por aquele livro velho, já amarelo e o que não falta aí nas livrarias são edições de Marguerite Yourcenar. Porém, foram as páginas marcadas nos cantos, com pequeníssimas dobras que me chamaram a atenção por eu fazer exactamente a mesma coisa, nas páginas que sei que quero revisitar. Resultado, comprei-o, pois claro.
Discordo da chamada de atenção que os manuais escolares trazem para que os utilizadores não os risquem. O uso dum livro pressupõe muita coisa, entre elas, poderem ser sublinhados, escreverem-se apontamentos nas margens, chamadas de atenção, conclusões a que se chama, e mais um mar de coisas.
Sempre escrevi nos livros. Tenho alguns com o espaço entre as linhas ocupado por reflexões, como se fosse um livro dentro de outro. Nunca me lembraria de pedir ao meu filho que não escrevesse num livro, antes pelo contrário incentivo-o a fazê-lo, a transformar cada objecto daqueles num objecto só seu, quase intransmissível, mas identificável, como se tivesse um carimbo com o seu nome, como se outrem, ao lê-lo dissesse sem apelo nem agravo, este livro já foi de fulano.
Quando o meu pai trabalhava numa gráfica fez o meu nome numa linha de chumbo e deu-me uma almofada de carimbo. Os meus livros estavam identificados como se fosse um adulto, coisa que eu adorava. Escrever nos livros não significa falta de respeito, mas antes é uma prova de uso, quase uma prova de amor.
Numa altura da minha vida fui motorista num colégio infantil o que coincidiu com a entrada na universidade. Levanta-me muito cedo e ia buscar os gaiatos a casa, deixá-los no colégio, levava-os à ginástica, à natação, ao judo, e a todas as actividades onde estivessem inscritos. O trabalho não era pesado mas ocupava-me muito tempo. Desse tempo guardo imensos livros cujos sublinhados são às ondinhas o que levava os meus colegas a perguntarem-me como conseguia eu fazer aquilo. Simples: tinha sempre um livro no lugar ao meu lado e quando parava a carrinha do transporte dos miúdos, enquanto os pais vinham e não vinham buscá-los ou trazê-los, enquanto os adultos que me acompanhavam os retiravam para entrarem no ginásio ou na piscina, eu agarrava imediatamente no livro e colocava-o em cima do volante. O trepidar do carro, por mais esforço que eu fizesse para riscar linhas a direito, criava aquelas ondas, que tanto espantavam os meus colegas.
No sábado na FNAC, vagueava eu no meio das estantes, com um 2666 em castelhano na mão quando ouvi uma conversa entre duas adolescentes. Uma dizia que nunca tinha lido um livro inteiro na vida, Deus a livrasse de tal e a outra mostrava-lhe um exemplar de José Rodrigues dos Santos – O sétimo selo – informando a amiga que alguém conhecido delas estava a ler aquele livro. O ar de surpresa da rapariga parecia-me genuíno mas irritou-me profundamente ouvi-la dizer o seguinte, com ar afectado (sic):
- Com tanto livro tinha que escolher logo esse? Não podia ser um mais piqueno?
A outra conseguiu levar-lhe o espanto ainda mais longe dizendo-lhe que, para além desse, a tal pessoa já tinha lido outros! Para a pobre criatura aquilo eram os segredos de Fátima, revelados ali aos seus ouvidos.
As duas andavam na casa dos 15, 16 anos e dali não sairão leitoras; mas a questão principal é que daquela abominação nascerão outras, pois que preocupação ou incentivo à leitura com os filhos terão seres com cabeças como aquelas?
Imagino-as a falarem com o M., pouco mais velho, e este a dizer-lhes que quer outra edição de Guerra e Paz, e só consigo visualizar uma conversa entre um português do século XV e um chinês do século XXV.
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
Porquê comprar dois livros (aparentemente) iguais? 2
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