sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A ciência da meia-de-leite

Na casa comprida da Rua Longa do Sobral da Adiça, assim que o meu avô se levantava punha logo o café ao lume. Por lume não se entenda um fogão, mas sim aquilo a que a maioria das pessoas chama lareira e que sempre ouvi designar, simplesmente, lume: madeiros e galhos acesos por baixo duma chaminé que também tinha um nome engraçado, chupão, por ter a importante tarefa de chupar o fumo.
Desde muito pequena que bebo café, feito naquela peça que só muito mais tarde percebi que não se chamava escolatêra e sim cafeteira, preta do lume, sem restos do azul original com pintas brancas. O café era espumoso, compacto, de sabor forte e protagonizava pequenos-almoços e lanches inesquecíveis com bolos do cozido que eram partidos aos bocadinhos, metidos lá para dentro e comidos à colherada, havendo sempre o cuidado de não deitar o café todo até ao fim para não despejarmos as borras na caneca, sim, na caneca, que lá não se usavam chávenas e talvez daí este hábito que temos de beber, mesmo água, preferencialmente, por uma caneca e não por copos.
Não sendo nada esquisita com o que como ou bebo, há coisas com as quais compenso as esquisitices e sou muito exigente, e o café é uma delas. Há sítios manhosos onde vou de propósito porque adoro o café, há outros onde consumo outras coisas mas não café.
Rio-me da quantidade de variações que o pedido dum simples café pode ter, desde a bica lisboeta, ao café curto, longo ou cheio, pingado, com cheirinho, em chávena fria, em chávena escaldada, duplo, sem princípio, fraco ou carioca, italiana, curto e devo estar a esquecer-me de algum. Escusado será dizer que os descafeinados têm as mesmas versões. Para mim é café, ponto.
Ora toda esta conversa serve para introduzir uma coisa onde o café é essencial e que se chama meia-de-leite e para que conste uma chávena de café com leite não é uma meia-de-leite! Longe disso, muito longe!
Escolho os locais para tomar o pequeno-almoço em função da maestria em fazer meias-de-leite: o pão pode ser duro, a manteiga rançosa, os empregados mal encarados, o chão estar seboso, desde que saibam fazer meia-de-leite, têm-me como cliente.
A meia-de-leite deve ter espuma como o café, suave, com não mais de dois ou três milímetros de espessura e não se apresentar como se fosse um capuccino, com espuma a fazer cagulo, como se diz no Alentejo, ou seja, com ar de miniatura de Monte Branco. Mais ainda, a espuma não deve ser branca, do leite e sim castanha, do café; deve ser sedosa e uniforme e não ratada e esburacada como um véu.
O pior de tudo é quando me dão uma meia-de-leite fria e decidem resolver o assunto colocando o manípulo do vapor dentro da chávena para aquecerem o líquido! Aí estraga-se em definitivo a essência da meia-de-leite e passa a ser uma chávena de leite com café, sem espuma ou com espuma que parece ter sido tirada dum alguidar de lavar loiça! Uma receita de culinária não tem preceito sobre os ingredientes? Não se colocam primeiros uns e só depois outros? E se a coisa for feita ao contrário, o resultado não fica, quantas vezes, um desastre? Pois aqui sucede o mesmo, e estranho que as pessoas que trabalham nos cafés não saibam o básico sobre a matéria.
Quando entro num sítio pela primeira vez não peço logo a meia-de-leite e tento ver se alguém está a beber o mesmo, para que possa ver como a fazem e só depois faço o pedido ou opto por um simples café.
Mas a grande especialista de meias-de-leite é a minha mãe, para quem é difícil arranjar poiso certo para os pequenos-almoços nas férias, quando chegamos a qualquer lado que desconhecemos e andamos, literalmente, a experimentar meias-de-leite até acertarmos com aquela que gostamos. Há quem nos goze, quem nos ache snobs, quem nos chague o juízo, enfim, quem não compreenda como uma simples meia-de-leite pode condicionar a nossa boa disposição dum dia inteiro.
Manias.

4 comentários:

  1. «...uma simples meia-de-leite pode condicionar a nossa boa disposição dum dia inteiro.»
    E de que maneira!

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  2. aqui está uma "mania" que eu não sabia que tinha :-)
    nem imagina a quantidade de vezes que ensinei as funcionárias do bar do meu sítio a fazer meia-de-leite. Infelizmente elas giravam com tanta frequência que desisti e passei a beber em casa antes de sair. manias...

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  3. Ainda bem que te ficas pelo tinto e pelo café das raras vezes que tenho o prazer da tua companhia.

    Lembro-me daquele acéfalo sogro, salazarista retinto (a viagem de lua-de-mel incluiu o Vale dos Caídos)industrial e essas coisas, cujo universo revolteava à volta da estomagueira e do intestinal. Esse empedernido católico não passava sem a sua meia-de-leite, coisa que me fazia - a poder de repetições - um nojo supremo. Especialmente aquando das férias na Lagos do fatídico Allgarve, depois do jantar e na esplanada do passeio dos tristes.

    De modo que já sabes: se me pedes uma meia-de-leite quando estiveres ao pé de mim, deserdo-te e nunca mais te desencanto livros velhos do Lawrence, ou bonecos de neve em parques alemães.

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  4. Se tiver que ser em jeito de confissão, será: amo beber uma meia de leite de manhã! Bem feitinha, quentinha qb., hum...

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