Os relacionamentos amorosos entre duas
pessoas de idades muito diferentes estão no capítulo da desconfiança no manual
de comportamentos da maior parte das sociedades. Um homem com um pé nos setenta
e uma jovem pouco mais velha que Cristo quando morreu, são alvos de olhares, de
comentários, de fraca aceitação social.
Ainda assim, as pessoas comentam, mas
não se chocam, olham mas não condenam, sorriem à velocidade de pensamentos
comuns sobre aquelas que acreditam ser as verdadeiras motivações de um e de
outro, bastas vezes financeiras, da parte do elemento feminino da relação. O que vê ela nele? É pergunta que se
repete, com interesse científico na resposta ou, com frequência, com alguma
inveja?
Seja como for os exemplos andam por
aí, o amor não é discriminatório, não escolhe idades, raças, credos políticos,
clubistas, religiosos, acontece. Ao fim de algum tempo, habituamo-nos,
esquecemos o assunto.
Mas… e se já tiverem passado setenta
primaveras por ela e pouco mais de trinta por ele? Aí o caso muda radicalmente
de figura! A velha é uma maluca, o rapaz é muito novinho para saber o que faz,
coitado, em conclusão, a culpa é dela.
A culpa, esse fortíssimo peso da
herança cristã, presente com todo o seu arcaboiço em qualquer acção da nossa
vida, a culpa, que ganharia o primeiro prémio, fossem os sentimentos
materializáveis.
Sabendo de um caso assim,
interesso-me, quero saber pormenores, não por curiosidade mas por querer
perceber onde vão buscar coragem para enfrentar a sociedade. No bolo que é a
vida de cada um, a fatia da sociedade é muito mais pesada que a familiar ou
qualquer outra. É a sociedade que dita as regras e seria a sociedade de uma
vila tipicamente portuguesa, de tamanho médio, que torceria o nariz a um
relacionamento de uma branca com um preto, a um relacionamento de duas
mulheres, mas que condena de dedo em riste e definitivamente um casal em que a
mulher tem mais que o dobro da idade do homem.
Ele, profissionalmente activo, vê uma
multidão de adoradores das suas competências e desempenhos questionarem o que
até aqui eram só certezas sobre a sua performance no trabalho; afinal, o seu
relacionamento atípico cai numa certa amoralidade e, se ele tem aquela atitude,
que outras igualmente fora dos cânones sociais – leia-se, condenáveis – será
capaz de perpetrar?
Ela, profissionalmente não activa,
sente na pele um afastamento das amizades que não querem dar-se com alguém que
devia ter idade para ter juízo, e sentem, ainda que inconscientemente, que
foram traídas, como é que ela foi capaz?
eu nunca suspeitei de nada… pensava que
ela era uma mulher normal… que desrespeito à memória do marido, Deus o tenha no
céu em descanso…
O silêncio impõe-se nos restaurantes e
cafés quando um deles entra. Há quem se ajeite na cadeira para ficar de costas,
o empregado ao balcão rosna a querer saber o que querem. Os poucos que
aparentam aceitar esta situação fazem-no para saber pormenores que, podendo,
venderiam a todos os outros, cuja curiosidade imensa se esconde numa capa de
nojo, doentiamente ansiosos por todos os detalhes e a sofrerem dores alheias, nem quero imaginar o que sentem os pais dele,
e mesmo a família dela, que vergonha…
Grande, enorme diria mesmo, é a probabilidade
de ela lhe ter feito qualquer coisa,
introduzindo-se o elemento mágico para explicar a relação, sim, ela deve ter-lhe dado qualquer coisa a beber ou a comer, é
definitivo, todos sabem, todos acreditam.
A ninguém ocorre sorrir ao pensar numa
relação sexual activa, onde se glorifica o facto de, aos setenta, uma mulher
ser tão ou mais poderosa que uma de trinta. Dá vómitos. Vómitos de inveja, não
assumida, é claro. O escárnio é partilhado e quem se ponha de fora, também não é
normal.
Conheci o casal. Ele parece ter muito
mais idade, ela aparenta muito menos. Percebe-se que há uma comunhão rara de
entendimento nas conversas, até no discordar são melodiosos e suaves, numa
palavra, exemplares. Ele ganha o ordenado mínimo, ela recebe o mesmo de
reforma.
Perguntam-me se concordo. Não há que
concordar ou não. Perguntam-me o que sentiria se fosse com o meu filho. A bem
da verdade, não sei responder. As pessoas são todas diferentes e é precisamente
a necessidade premente da sociedade em catalogar, em arrumar em determinados sítios,
em pôr em caixinhas pré-eleitas para cada situação que provoca a falta de
abertura para situações diferentes, situações que não encaixam.
A nossa mente, pré-formatada, aceita o
que conhece, o que é normal, o que é natural. Na biblioteca não conseguimos
fazer um tratamento documental standard
aos trabalhos de arquitectura: três dimensões, grandes, desformatados – cá está
– e que nos dão uma trabalheira dos diabos. É tão mais fácil quando são de
economia, de direito ou qualquer outra matéria, onde a catalogação, indexação e
arquivo é quase automática. Mais do mesmo.
Na vida passa-se mais ou menos o mesmo.
Contam-me a reacção da filha dela,
mais velha que o actual companheiro da mãe. Não gostou, mas aceitou, quer a
felicidade da mãe mas, é honesta, avança que lhe é mais fácil por não viverem
na mesma terra e apenas ser a mãe que a visita, ela, o marido e os filhos vão à
pequena vila só quando o rei faz anos e nós não vivemos numa monarquia. Ama a mãe,
mas não deixou de dar voz ao incómodo sentido.
Se o amor é lindo, a sua vivência pode
ser horrível, carregada de sentimentos confusos – o assumir o sentimento já foi
duro, assumir a relação um inferno, afinal, ela própria pertence ao grupo da
culpa e confessa não saber o que teria feito e pensado há um ano atrás, se os
protagonistas fossem outros.
Perguntaram-me o que faria se fosse
eu. Pergunta difícil, confesso, à qual respondi com a verdade: não sei. Disse-lhes
que vivessem um dia de cada vez.
A sociedade, a família, o trabalho, os
diversos contextos onde vivemos e convivemos são feitos de moldes onde nos
adaptamos, não eles a nós. As relações inter-raciais ou a homossexualidade ainda
têm muito caminho a percorrer, porque ousaram pôr em causa este equilíbrio.
A manutenção
do respeito do caminho de vida,
crescer, casar, ter filhos, por aí fora, é uma espécie de último bastião
social, onde não se aceitam intérpretes que não possam seguir o caminho
previamente alcatroado. Ainda assim, um homem velho pode dar filhos a uma
mulher nova, mas uma mulher velha não serve para isso. Quereremos dizer, não
serve para nada?
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