segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Love is in the air

Os relacionamentos amorosos entre duas pessoas de idades muito diferentes estão no capítulo da desconfiança no manual de comportamentos da maior parte das sociedades. Um homem com um pé nos setenta e uma jovem pouco mais velha que Cristo quando morreu, são alvos de olhares, de comentários, de fraca aceitação social.
Ainda assim, as pessoas comentam, mas não se chocam, olham mas não condenam, sorriem à velocidade de pensamentos comuns sobre aquelas que acreditam ser as verdadeiras motivações de um e de outro, bastas vezes financeiras, da parte do elemento feminino da relação. O que vê ela nele? É pergunta que se repete, com interesse científico na resposta ou, com frequência, com alguma inveja?
Seja como for os exemplos andam por aí, o amor não é discriminatório, não escolhe idades, raças, credos políticos, clubistas, religiosos, acontece. Ao fim de algum tempo, habituamo-nos, esquecemos o assunto.
Mas… e se já tiverem passado setenta primaveras por ela e pouco mais de trinta por ele? Aí o caso muda radicalmente de figura! A velha é uma maluca, o rapaz é muito novinho para saber o que faz, coitado, em conclusão, a culpa é dela.
A culpa, esse fortíssimo peso da herança cristã, presente com todo o seu arcaboiço em qualquer acção da nossa vida, a culpa, que ganharia o primeiro prémio, fossem os sentimentos materializáveis.
Sabendo de um caso assim, interesso-me, quero saber pormenores, não por curiosidade mas por querer perceber onde vão buscar coragem para enfrentar a sociedade. No bolo que é a vida de cada um, a fatia da sociedade é muito mais pesada que a familiar ou qualquer outra. É a sociedade que dita as regras e seria a sociedade de uma vila tipicamente portuguesa, de tamanho médio, que torceria o nariz a um relacionamento de uma branca com um preto, a um relacionamento de duas mulheres, mas que condena de dedo em riste e definitivamente um casal em que a mulher tem mais que o dobro da idade do homem.
Ele, profissionalmente activo, vê uma multidão de adoradores das suas competências e desempenhos questionarem o que até aqui eram só certezas sobre a sua performance no trabalho; afinal, o seu relacionamento atípico cai numa certa amoralidade e, se ele tem aquela atitude, que outras igualmente fora dos cânones sociais – leia-se, condenáveis – será capaz de perpetrar?
Ela, profissionalmente não activa, sente na pele um afastamento das amizades que não querem dar-se com alguém que devia ter idade para ter juízo, e sentem, ainda que inconscientemente, que foram traídas, como é que ela foi capaz? eu nunca suspeitei de nada… pensava que ela era uma mulher normal… que desrespeito à memória do marido, Deus o tenha no céu em descanso…
O silêncio impõe-se nos restaurantes e cafés quando um deles entra. Há quem se ajeite na cadeira para ficar de costas, o empregado ao balcão rosna a querer saber o que querem. Os poucos que aparentam aceitar esta situação fazem-no para saber pormenores que, podendo, venderiam a todos os outros, cuja curiosidade imensa se esconde numa capa de nojo, doentiamente ansiosos por todos os detalhes e a sofrerem dores alheias, nem quero imaginar o que sentem os pais dele, e mesmo a família dela, que vergonha…
Grande, enorme diria mesmo, é a probabilidade de ela lhe ter feito qualquer coisa, introduzindo-se o elemento mágico para explicar a relação, sim, ela deve ter-lhe dado qualquer coisa a beber ou a comer, é definitivo, todos sabem, todos acreditam.
A ninguém ocorre sorrir ao pensar numa relação sexual activa, onde se glorifica o facto de, aos setenta, uma mulher ser tão ou mais poderosa que uma de trinta. Dá vómitos. Vómitos de inveja, não assumida, é claro. O escárnio é partilhado e quem se ponha de fora, também não é normal.
Conheci o casal. Ele parece ter muito mais idade, ela aparenta muito menos. Percebe-se que há uma comunhão rara de entendimento nas conversas, até no discordar são melodiosos e suaves, numa palavra, exemplares. Ele ganha o ordenado mínimo, ela recebe o mesmo de reforma.
Perguntam-me se concordo. Não há que concordar ou não. Perguntam-me o que sentiria se fosse com o meu filho. A bem da verdade, não sei responder. As pessoas são todas diferentes e é precisamente a necessidade premente da sociedade em catalogar, em arrumar em determinados sítios, em pôr em caixinhas pré-eleitas para cada situação que provoca a falta de abertura para situações diferentes, situações que não encaixam.
A nossa mente, pré-formatada, aceita o que conhece, o que é normal, o que é natural. Na biblioteca não conseguimos fazer um tratamento documental standard aos trabalhos de arquitectura: três dimensões, grandes, desformatados – cá está – e que nos dão uma trabalheira dos diabos. É tão mais fácil quando são de economia, de direito ou qualquer outra matéria, onde a catalogação, indexação e arquivo é quase automática. Mais do mesmo.
Na vida passa-se mais ou menos o mesmo.
Contam-me a reacção da filha dela, mais velha que o actual companheiro da mãe. Não gostou, mas aceitou, quer a felicidade da mãe mas, é honesta, avança que lhe é mais fácil por não viverem na mesma terra e apenas ser a mãe que a visita, ela, o marido e os filhos vão à pequena vila só quando o rei faz anos e nós não vivemos numa monarquia. Ama a mãe, mas não deixou de dar voz ao incómodo sentido.
Se o amor é lindo, a sua vivência pode ser horrível, carregada de sentimentos confusos – o assumir o sentimento já foi duro, assumir a relação um inferno, afinal, ela própria pertence ao grupo da culpa e confessa não saber o que teria feito e pensado há um ano atrás, se os protagonistas fossem outros.
Perguntaram-me o que faria se fosse eu. Pergunta difícil, confesso, à qual respondi com a verdade: não sei. Disse-lhes que vivessem um dia de cada vez.
A sociedade, a família, o trabalho, os diversos contextos onde vivemos e convivemos são feitos de moldes onde nos adaptamos, não eles a nós. As relações inter-raciais ou a homossexualidade ainda têm muito caminho a percorrer, porque ousaram pôr em causa este equilíbrio. 
A manutenção do respeito do caminho de vida, crescer, casar, ter filhos, por aí fora, é uma espécie de último bastião social, onde não se aceitam intérpretes que não possam seguir o caminho previamente alcatroado. Ainda assim, um homem velho pode dar filhos a uma mulher nova, mas uma mulher velha não serve para isso. Quereremos dizer, não serve para nada? 

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