Encho-me de pavor com a descrição de como é que a minha interlocutora arranjou as nódoas negras que tem no braço. Foi a mãe, a quem o alzheimer deixou violenta e que não admite que lhe toquem com um dedo.
Encontramo-nos no centro de saúde e tenho ideia que conheço aquela cara, mas não sei de onde. A cara meia conhecida sorri-me e avança para mim, cumprimenta-me, pergunta-me pelos meus, elogia o meu bronzeado, compara-o com a alvura da sua pele. Aos poucos reconheço-a, há meia dúzia de meses era mais nova uma dúzia de anos.
A linha recta descendente que a doença da mãe tomou levou-ao aquele limite. Conta-me que os banhos e a higiene diária são feitos com grandes doses de sedação, de outra maneira não deixa que lhe toquem. Conta-me que grita com toda a gente, com o marido com quem vive, com ela, filha, com os netos, e já deixou de gritar com os vizinhos e outra família porque eles deixaram de lá ir a casa.
Está no centro de saúde a pedir receitas para medicamentos que ponham a mãe a dormir para que possam tomar conta dela, para que a protejam de si mesma.
A vida é mesmo irónica, sacana, cabra. Obriga-nos a passar por estas coisas, por estes infernos em vida; sob o nome de cuidados paliativos, e porque amamos aquela pessoa, matam-se famílias inteiras aos poucos, devagar, lentamente aplicam-se-lhe torturas, físicas e psicológicas. Mas será aquela pessoa que se ama? Ou a pessoa que viveu naquele corpo? Aquela nem nos conhece, nem sabe quem somos, não reconhece a vida que se partilhou, nem sabe que em tempos teve dores de parto para dar à luz os filhos a quem agora atira as jarras que vai encontrando no caminho.
A quem temos que fazer uma petição para deixarmos de estar doentes e passarmos a morrer uns anos mais cedo? A Deus não pode ser, ele que tudo vê, mantêm-se sossegado, já sossegado estava quando o filho foi crucificado, porque havia de interceder por nós?
Aquela mulher, bem mais jovem que eu e que parecia mais velha que a minha mãe, que carregava a tristeza, o desânimo, a frustração, a impotência, continua a viver, ou a fingir que vive, porque o papel que lhe coube em sorte não é vida, é o de trave, trave que suporta, que sustenta, que segura, que permanece, que aguenta. Até um dia, até ao dia em que o pensamento, que inconscientemente foi ficando vazio para dar espaço ao nada que não deixa o tique-taque do pensar avançar, estiver completamente branco e estéril.
Enquanto fala, ouço a respiração desta mulher calma, habituada, a contrastar com a minha, acelerada. Vendo bem as coisas não era a minha respiração, era o meu medo.
Encontramo-nos no centro de saúde e tenho ideia que conheço aquela cara, mas não sei de onde. A cara meia conhecida sorri-me e avança para mim, cumprimenta-me, pergunta-me pelos meus, elogia o meu bronzeado, compara-o com a alvura da sua pele. Aos poucos reconheço-a, há meia dúzia de meses era mais nova uma dúzia de anos.
A linha recta descendente que a doença da mãe tomou levou-ao aquele limite. Conta-me que os banhos e a higiene diária são feitos com grandes doses de sedação, de outra maneira não deixa que lhe toquem. Conta-me que grita com toda a gente, com o marido com quem vive, com ela, filha, com os netos, e já deixou de gritar com os vizinhos e outra família porque eles deixaram de lá ir a casa.
Está no centro de saúde a pedir receitas para medicamentos que ponham a mãe a dormir para que possam tomar conta dela, para que a protejam de si mesma.
A vida é mesmo irónica, sacana, cabra. Obriga-nos a passar por estas coisas, por estes infernos em vida; sob o nome de cuidados paliativos, e porque amamos aquela pessoa, matam-se famílias inteiras aos poucos, devagar, lentamente aplicam-se-lhe torturas, físicas e psicológicas. Mas será aquela pessoa que se ama? Ou a pessoa que viveu naquele corpo? Aquela nem nos conhece, nem sabe quem somos, não reconhece a vida que se partilhou, nem sabe que em tempos teve dores de parto para dar à luz os filhos a quem agora atira as jarras que vai encontrando no caminho.
A quem temos que fazer uma petição para deixarmos de estar doentes e passarmos a morrer uns anos mais cedo? A Deus não pode ser, ele que tudo vê, mantêm-se sossegado, já sossegado estava quando o filho foi crucificado, porque havia de interceder por nós?
Aquela mulher, bem mais jovem que eu e que parecia mais velha que a minha mãe, que carregava a tristeza, o desânimo, a frustração, a impotência, continua a viver, ou a fingir que vive, porque o papel que lhe coube em sorte não é vida, é o de trave, trave que suporta, que sustenta, que segura, que permanece, que aguenta. Até um dia, até ao dia em que o pensamento, que inconscientemente foi ficando vazio para dar espaço ao nada que não deixa o tique-taque do pensar avançar, estiver completamente branco e estéril.
Enquanto fala, ouço a respiração desta mulher calma, habituada, a contrastar com a minha, acelerada. Vendo bem as coisas não era a minha respiração, era o meu medo.
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