quarta-feira, 30 de março de 2011

Criar Afectos

Há anos atrás, a minha irmã e eu deliciávamo-nos com uma brincadeira que consistia em pôr a minha mãe a ler os genéricos dos filmes. Ela proferia palavras inexistentes, lendo em inglês como sabia o português, a longa lista de palavras com nomes de realizadores, actores, fotógrafos, músicos, produtores e um sem fim de outros intervenientes e funções, e nós produzíamos gargalhadas com tal energia que dava para alimentar um qualquer electrodoméstico.
Mesmo antes, na nossa infância e adolescência havia sempre um livro na mesa-de-cabeceira da minha mãe, em cima da toalha da praia ou no sofá, e se havia qualquer coisa onde não se poupava dinheiro, era em livros e isso é qualquer coisa que nunca poderemos agradecer.
Ao longo dos anos fomos vendo-a desinteressar-se da leitura, do cinema, dos teatros de revista. Quer a minha irmã quer eu somos grandes leitoras, sôfregas, ansiosas, insatisfeitas, lendo os mesmos livros, discutindo-os e, regra geral, com iguais preferências e atribuímos a falta de interesse da nossa mãe pela leitura à redução da capacidade de concentração, ao excesso de entrega aos netos, ao nascer de outros interesses (ou desinteresses) próprios da idade.
As maleitas do meu pai ao longo da vida não ajudaram em nada e ela ficava exausta com tanta consulta, operação, medicamentos, preocupações, sustos, hospitais e outros que tais.
Mas de repente, como um bilhete de lotaria que nos vem parar às mãos sem que fossemos nós a querer comprá-lo, eis que as coisas mudam de figura!
O Projecto Criar Afectos entrou na nossa vida por volta do Natal e talvez por isso, nós achemos que foi uma bela prenda, porque milagre foi com certeza.
Por entre várias coisas, tantas que preciso duma agenda para me orientar, o meu pai deixou de se queixar das dores, fazem imensos planos para eles próprios, sem inclusão de filhas nem netos, o que prova que têm vida própria, e a minha mãe voltou a ler.
Ela não sabe, nunca saberá, por muitas palavras que use para lho dizer, a alegria que isso me proporciona, porque quem não lê, não tem essa consciência, mas é mais pobre que os que se dedicam a essa tarefa.
Ler é dos mais maravilhosos mundos que se podem descobrir e a leitura pode até ser uma forma de vida, que o diga eu que comecei a ler aos quatro ou cinco anos e nunca mais parei.
Orgulho-me imenso quando o meu filho brinca e me diz que eu não devo ser muito esperta porque entrei na escola aos seis anos e nunca mais saí!, para designar o vício que tenho em aprender, em saber coisas novas, em conhecer mais e mais e mais. Nunca me canso. E também por isso nunca aceitei muito bem que alguém tão próximo de mim não tivesse um bocadinho, ainda que pequeno, deste meu vício.
Mas agora tudo mudou, o que só prova que se aprende até morrer, que há provérbios populares que não ditam a verdade e que, na minha opinião, nem sequer há burros velhos! Só é velho quem quer e nessa matéria Parabéns à Dona Prata que velha é coisa que ela nunca há-de ser!
Há pessoas mais ou menos abertas à vida e a vida é dum tamanho gigantesco, só temos que ter os olhos abertos, dormir pouco e estar atentos. Teremos muito tempo para dormir quando morrermos!
Por entre danças e cantorias, passeios e novas amizades, teatros e piscinas, cuja saudabilidade é excepcional, o facto de a minha mãe voltar a ler é o que me dá mais descanso. Sei que assim ela terá sempre um amigo à sua espera.

2 comentários:

  1. Discordo. Quem não lê, não lê. Ponto final. Não são menos nem mais pequenos nem menos ricos. São pessoas que aprendem de outra forma a histórias que a vida nos conta. Muitas das vezes são essas pessoas a escrever os seus próprios livros. O meu avô não lia mas tinha histórias da sua vida vivida e sofrida que eram incrivelmente belas de ouvir. Infelizmente nunca as ouvi da sua boca, morreu muito novo, para mim. Já lhe contei de que tive muitos livros na mão que os percorri do princípio ao fim, li-os com os olhos mas não com os sentidos. É preciso saber ler. Muito importante. Porque senão não se está a ler, está-se a perder tempo e a queimar as pestanas. Tenho essa consciência e por isso acho que até certo ponto foi preciosismo meu ter lido certos autores. Não veja os não-leitores como pessoas diminuídas. Não é justo. As suas vidas dão tantas histórias...

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  2. Nada disso... se há alguém que não vê outro alguém diminuído sou eu. Porém, tal como a alimentação equilibrada, certas doses de sol, as horas certas de sono, etc., etc., etc., também a leitura proporciona um 'estar' que não se tem doutra forma. A minha avó também não sabia ler nem escrever e o meu avô aprendeu já em adulto... teve a oportunidade e aproveitou-a, podia não a ter tido e podia tê-la e passar-lhe ao lado.
    No caso em apreço trata-se de alguém que perdeu a prática mas que a recuperou e é sobre isso que me regozijo!

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