quarta-feira, 30 de junho de 2010

10 de Junho de 2007

Cachopa Camila
As livrarias de Oslo, como esta onde acabei de te comprar um postal e outras que ficam ao sabor do percurso que se tem que fazer num determinado dia, ou a que se vai de propósito, estão cheias de memórias, minhas (as lidas) ou de outros (as escritas). Aqui ou ali encontrei este ou aquele verso, uma história que me encantou, páginas apenas folheadas e depositadas depois em Santarém e que nunca mais li. A mais querida é a Libris, do outro lado da rua National Galeriet, onde se encontram um Van Gogh auto-retratado de pequeno formato, alguns dos mais obsessivos quadros de Edvard Munch e uma série de pinturas que retratam interiores, admiráveis, quentes, cheios de madeira e outros tempos, que se depositaram em tintas e telas. Na Libris, na Tanum e na Kvist encontrei muitos dos livros memoráveis que me distinguem os dias passados, como um marcador de página, que deixámos num capítulo ou num verso que merece ser revisitado.
Mas o encanto maior, o supra-sumo do encantamento, são os alfarrabistas que aqui se chamam antvikatiater. E há-os de todos os feitios e gostos. Têm em comum o testemunho comovente de uma cultura periférica que absorve o que se produz nos grandes centros do continente, e tenta aprender.
Desde os que, nas áreas chiques, se dedicam a lombadas de dourados, que ficam bem na estante que se quer decorar lá em casa, aos que se dedicam aos livros raros e históricos escritos em língua inacessível para mim, e de preço inacessível também, aos que têm livros amontoados segundo uma lógica que é impossível de decifrar. Estes são, para mim, os mais encantadores. Não só neles existe o prazer de encontrar o que se procura, como estão cheios de surpresas escondidas a que se acede por “escavação”! O supremo templo é o Oslo Ny antvikatiat. Fica perto de um maravilhoso parque concebido para as estátuas de Vingeland; o Vingeland Park. Dele te enviarei um postal, ou fotos. É o sítio por excelência das rosas, onde se encontram as mais belas rosas de Oslo. Até de Inverno, as hastes que despontam da neve conjugam bem com o filigranado do gelo que se recorta nas árvores caducifólicas de encontro ao céu cinzento e ao entrançado de corpos que dançam, amam, sustentam, correm, envelhecem ou olham a cidade de par em par.
Acede-se a este alfarrabista pelo meio das casas de madeira ajardinadas, ou de tijolo castanho avermelhado. Nas esquinas onde começam os prédios de três ou quatro andares encimados pelas cornijas tão típicas deste norte, está a porta de madeira descorada e vidro, com a tranqueta em forma de vírgula deitada. De cada lado, dando para uma e para a outra rua, duas janelas amplas onde os livros aparecem sem ordem. O que é um convite. Uma montra desarranjada que não quer convencer ninguém a comprar, que sabe ou está confiante, como que por modesto orgulho, que encerra tesouros que dispensam pregão. No interior, um distinto cavalheiro de linhas secas e roupas coçadas que se expressa correctamente em várias línguas, recebe-te com um sorriso e com deferência, sem pressas, mas com um olhar directo e curioso. Há sentimento imediato de que não te estará a vender o que quer que seja, mas a receber-te em sua casa como a um hóspede. Indica-te as secções se percebe que não és da casa, e desculpa-se e aos seus livros pela desarrumação como quem os desculpa por andarem de mão em mão qual canalha miúda e traquina. Na cave, encontram-se tesouros ao fundo da escada estreita de tábuas, em escaparates e caixas. Ternas edições da Galimard, de capa branca que contam tropelias de Sartre e Beauvoir, as palavras escritas em “Carnets de Drôle de Guerre”, “Paris c’était mon village”, poemas de Eluard e Rimbaud, coisas passadas de moda, livros de bolso, como este curioso “Abée Pierre” de Chateaubriand, o “processo” do Kafka da Everyman’s Library, “The short novels of Dostoievski, com introdução de Thomas Mann, da Dial de Nova Iorque de 1945. Encontram-se livros dispares em francês rubricados pelo mesmo homem, coleccionados por uma vida, e a que a família não soube dar melhor sorte do que vender por atacado. Encontra-se este “ Group Dynamics and Society” que o autor dedicou à mão com uma saudação amistosa “med venligst hilsen” ao seu amigo Odd, datado de Junho de 98 em Hvalstad, e que o mesmo conservou por estes longos anos (três) se não vendeu no mesmo dia.
Neste volume de Dostoievski, nas short novels, encontram-se as “notes from the underground”. Quando encontrei o sítio, pensei neste título. Recentemente ali o encontrei. Aquela loja é como a cartola de um mágico, até o título que lhe imaginei, ali se encontrava, prefaciado pelo punho de Mann. E tem, suprema felicidade, o olhar do velho nórdico, que faz a adição numa velha caixa registadora de manivela e me vai agradando com o bom gosto das escolhas. Às vezes tenho a sensação de que tem um secreto prazer em encomendar livros para aquele gentleman que vem de Portugal, como uma cegonha receosa empurra o filho do ninho para que conheça o azul de outros céus e para que siga o velho preceito de crescei e multiplicai-vos… às vezes tenho a vontade ou o secreto desejo de estar presente quando morresse, de lhe passar a mão pelo cabelo e pela testa, para lhe assegurar que os livros estão em boas mãos à beira do Tejo, em cabriolas com as tágides de um zarolho que dividiu a história em dez cantos e contou que dez anos serviu aquele pastor o pai de Raquel, serrana bela, mas não servia o pai, servia-a a ela… nunca lhe direi nada disso, é claro, e um dia destes não estará mais lá. Mas abençoados os homens de boa vontade.
Amiga, pergunto-me se a tua paciência chegará para albergar estas coisas. Não será impessoal tudo isto? Tenho uma dificuldade terrível com a linguagem, gostaria que fosse mais económica, precisa e rigorosa. Mas que não fosse fria e estéril como que emanada de labirintos de verve burocrática que, de tão codificada, parece que se dobra sobre si mesma, auto-suficiente, e nunca se consegue determinar se quer comunicar algo ou apenas ostentar o carácter impenetrável, como uma descomunal prisão que nos deixa fechados cá fora, mas que se ergue ameaçadora na nossa frente e ao mesmo tempo, que não fosse feita de termos da moda, esses cometas que atravessam a linguagem e monopolizam a atenção de todos, ofuscando as outras palavras. E especialmente que não fosse demarcada socialmente ou datada no tempo. Sempre achei as modas linguísticas, com que um grupo social se distingue, e deixa os seus contemporâneos de fora, numa demarcação do seu território, uma coisa tão abjecta e pouco higiénica, como o demarcar levado a cabo pelos cães que mijam nos candeeiros. Não queria, na escolha das palavras que uso, ser pretensioso, distante e superior ao meu tempo, ou abster-me de partilhar o linguajar e o destino dos que vivem ao meu lado. Mas gostava que as palavras dos outros que passaram de moda, os arcaísmos, e mesmo as palavras de todos os que não puderam falar fossem mais usadas, recuperadas, como monumentos góticos que enfeitam a cidade. Tens a mesma dificuldade? Isto faz algum sentido?
Bem, vou jantar e dormir um pouco
Quatrocentos beijos
V.

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