terça-feira, 1 de junho de 2010

Abertura da época balnear

Escrevo aos primeiros minutos do dia 1 de Junho, início da época balnear. Hoje é um dia mágico. Para mim, é o princípio do Verão, a mais saborosa das estações do ano.
Quando era criança o nosso primeiro dia de praia era dia 1 de Maio. Mesmo antes do 25 de Abril o meu pai, tipógrafo linotipista, tinha este dia de feriado. Calhasse a que dia calhasse, eu faltava à escola e a minha mãe metia um dia de férias e íamos à praia, abríamos essa janela que se mantinha aberta durante alguns meses, e que nos dava um alento que permanece até hoje.
A conjuntura política veio depois antecipar a inauguração do nosso Verão, que passou a ser dia 25 de Abril! Chovesse ou fizesse sol!
Na minha vida independente esta tradição manteve-se tendo sido trabalhada com muito esforço e carinho: praia o ano inteiro, caminhadas à beira mar, banho, banho completo, só a 25 de Abril. Adoro estar ali a inspirar sol e calor, sendo dos poucos sítios onde consigo estar quieta sem fazer nada. Bem, se levar um livro (ou dois!) será perfeito.
Há um exercício que gosto de fazer com os miúdos que é perguntar-lhes qual a lembrança mais antiga que têm. A minha lembrança mais antiga é sobre um par de botas, teria eu uns três anos, talvez menos, e sempre achei que seria por isso que tenho a paranóia que tenho com a minhas botas, que ficarão em herança para quem as merecer, de tal forma as tenho em consideração.
Mas uma das minhas lembranças mais antigas é sobre a praia: nós ficávamos na paragem da camioneta, que ficava ao lado duma azinhaga junto a um pequeno rio, no Cacém. Eu não me atreveria a passar na azinhaga sozinha dada a sua configuração, meia escura e sem se ver o fundo, o que me metia medo, mas ao mesmo tempo me atraía. Enquanto esperávamos pela camioneta que havia de dar a volta ao mundo antes de nos fazer aterrar no areal de Santo Amaro de Oeiras, eu fixava a azinhaga, numa atitude interior de contemplação e pensava que um dia a percorreria sem medo. Antes disso poder acontecer, foi ali construído um prédio que derrubou as minhas intenções de dominar o medo. Mas a espera da camioneta era já uma emoção na dinâmica da praia, antevendo-se um dia i n t e i r i n h o esparramada na areia a apanhar escaldões ou dentro de água a engolir pirolitos, mas em ambas as situações, enquanto a pele ficava castanha, tão castanha que durava dum ano para outro. Não havia protectores solares e sim bronzeadores para apressar a camada castanha e deixar os fatos de banho e biquinis todos manchados com nódoas que não saiam mas que eu nem via! Bronzaline era o rei dos bronzeadores, ajudando-nos a atingir os nossos objectivos assim que espalhávamos a mistela na pele deixando-a imediatamente com ar de quem tinha vindo do Sudão. Os escaldões eram tratados com pachos de algodão embebidos em álcool quando chegávamos a casa e eram apenas ossos do ofício, nada mais.
Eu que sempre fui generosa de peito, numa ocasião queimei-me de tal forma que tinha que dormir com um soutien apertado para que as mamas ficassem no sítio sem se mexer nem um milímetro; a coisa foi de tal maneira que a minha mãe levou-me à farmácia! Ora naquela altura ir à farmácia por causa duma coisa daquelas era como ir ao médico porque nos tínhamos engasgado, visita perfeitamente ridícula já que qualquer engasgo passa com uma valente palmada nas costas. O senhor da farmácia deu-nos uma pomada que pus nessa noite em quantidade generosa pois o dia seguinte era dia de ... praia! E à praia não se faltava.
Falava eu das minhas memórias mais antigas para dizer que recordo uma cena que se passou enquanto esperávamos a camioneta, mas em Santo Amaro de Oeiras, já de regresso. A paragem, onde as bichas (antigamente não havia filas, só bichas) se amontoavam e acotovelavam era no jardim, onde horas antes os veraneantes tinham feito piqueniques, e hoje há um McDonald. Depois de tantas horas debaixo dum sol abrasador, com um cansaço enorme vindo das cinco ou seis da manhã, hora a que se levantavam estes viajantes para empreender a dura jornada, depois de horas de camioneta para lá e na expectativa das mesmas horas de regresso, todos ansiavam por um lugar sentado, nem que fosse um por família e, assim, podiam ir trocando ao longo da viagem. Com ânimos quase sempre exaltados lá se punham uns engraçadinhos no fim da fila, embora eles afirmassem que estavam no início há horas, independentemente de ninguém os ter visto. Tenho presente uma destas cenas em que o meu pai fez valer a sua voz possante e deu dois berros a dois homens que queriam passar à frente. Foi secundado por outros que estavam igualmente na bicha há imenso tempo e já viam os seus lugares sentados ocupados por outros rabos que não os seus. De repente, os dois homens foram cercados por várias caras ameaçadoras de vários pais de família que não se inibiam nada em lhes dar um enxerto de porrada, aqui e agora, para depois descansarem nos seus lugares sentados. Lembro-me que tinha o coração a cem à hora e me passaram pela cabeça imagens do dia fantástico que estava a terminar e recordo-me perfeitamente de pensar, como é que era possível que um dia tão bom pudesse acabar assim, como? A bem da verdade, já não me lembro se viemos sentados ou em pé, mas cada vez que passo no jardim vejo o meu pai, novo e com bigode preto, a gritar em coro com mais dois ou três pais de outras crianças e lembro-me desse dia de praia em particular.
Fazendo uma análise, os dias de praia são talvez a acção repetida ao longo da vida de que mais me lembro em particular: os fins de tarde na Fonte da Telha foram soberbos, inesquecíveis e irrepetíveis. Coisas tão boas não se repetem, é isso que faz delas o que são e que as mantém no pódium uma vida inteira. Mas apesar de não se repetirem, podemos multiplicá-las e ter outras igualmente boas.
Haverá coisa melhor que um dia de praia?

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