sexta-feira, 25 de junho de 2010

Se a vida nos rouba a vida, em que a usará?

Fim do dia. Entro no metro e sento-me. À minha frente vai uma senhora literalmente a dormir, deitada em cima da mulher do lado que se mexe ligeiramente, incomodada com a proximidade da outra.

A mulher tem uns cinquenta e qualquer coisa anos embora aparente ter mais, muito mais. Em tempos foi loura e um solavanco maior do metro fá-la abrir os olhos deixando-me ver que são azuis. O cansaço, pois é de cansaço que se trata, fá-la fechar os olhos novamente, os olhos e o corpo, que deixa cair em cima da companheira do lado.
Tem os braços vermelhos do cotovelo para baixo e brancos, quase alvos, debaixo da manga curta da camisa. O cabelo apanhado com um elástico, embora curto, juntamente com a vermelhidão dos braços e com as unhas cortadas rentes e uma cicatriz de queimadura levam-me a pensar que talvez seja cozinheira. Acabou o turno num qualquer hotel, está exausta e tenta por o sono em dia nas poucas estações que medeiam o local de trabalho e a sua casa, onde a esperam para fazer o jantar.
É uma mulher maltratada. Vê-se e sente-se. Maltratada pela vida, talvez também em casa. As rugas que vivem na sua cara e que são mais expressivas quando abre os olhos para ver em que estação parou o comboio mostram raiva e submissão.
Quem será o homem que com ela vive mas que com ela não convive? Ou a expressão devia ser ao contrário? Que vivência se esconde por detrás daqueles olhos outrora belos e agora sujos de cansaço?
Estava eu a ficar incomodada com os arremessos de ombro da companheira de banco da ‘minha cozinheira’ para que esta se endireitasse até que decidi tocar-lhe na perna e disse-lhe, com o meu melhor sorriso, que se se encostasse para o lado da janela conseguia dormir melhor. Olhou-me como se eu fosse um extraterrestre. Ficou direita e muda a olhar-me. Sorri levemente. Ela não disse nada e encostou-se de acordo com a minha sugestão. Porém, abria os olhos com mais frequência e olhava-me, tão simplesmente porque assim que os abria a minha cara estava diante da dela. Olhava-me com suspeita. De quê, não sei. Talvez desconfie, mas saber, não sei. Pensaria ela que era preciso uma desconhecida para lhe sugerir qualquer coisa, qualquer coisa que fosse, relacionada com o seu bem estar?
Reparei que as mãos de unhas curtas seguraram com mais força na mala velha e gasta que nem imitava pele, era plástico assumido. Ninguém acredita que outro alguém faça seja o que for voluntariamente, sem esperar pagamento e eu podia apenas querer que ela adormecesse para a roubar. Senti que ela tinha experiência disso, de ser roubada, especialmente pela vida.

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