Os dois dias que antecederam a saída da prisão foram de sufoco absoluto. Agia como um autómato, rezando para que nada acontecesse de repente que quebrasse aquela perspectiva. Passavam-lhe coisas loucas pela cabeça, como a possibilidade duma briga onde se visse envolvida sem intenção e que pudesse prolongar a sua estadia na prisão. Cremilde ainda ficaria e sentiu que deixava ali uma amiga. Muitas das outras atiravam-lhe sorrisos, uns de inveja outros de parabéns. O tempo teimava em correr mais devagar que nunca, as noites eram passadas a passo de caracol, qualquer coisa que fizesse nada ajudava a fazer desaparecer aquela angústia. Uma vez por semana trabalhava na lavandaria da prisão e, já no último dia, completamente alheada e obcecada pela saída dentro de poucas horas, deixou-se ficar muito depois do necessário, o que levou uma das guardas a procurá-la.
- Então Carequinha... hoje dormes aqui?
Ouviu a voz e sentiu-se acordar dum sonho, pondo-se em pé de imediato e começando um balbuciar que nem ela própria percebia. A guarda riu-se e mandou-a sair, sabendo que aquela prisioneira não causava problemas. Sabia também que aquele era o seu último dia ali e já assistira a muitos últimos dias. Uns agitados e até violentos, como uma situação que tinha presenciado há anos, em que uma reclusa esperara pelo seu último dia para pregar um prego na mão de outra, propositadamente, como viria a confessar, devido a brigas antigas. Mas também sabia que a maior parte anda alegre e bem disposta a contar a toda a gente o que vai fazer assim que sair dos portões da prisão, com descrições de abraços aos filhos, de actos sexuais, há muito não praticados, ou de vinganças contra quem ajudou a pô-las na prisão.
Mas a Careca não se encaixava em qualquer destas categorias, estava calada e meia alienada do ambiente que a rodeava. Para além de Cremilde, nunca fizera grandes amizades, exceptuando-se a admiração que sentia por Damiana, uma preta que passava horas a contar como era a vida em Pagué, na Ilha do Príncipe e que ela adorava ouvir. A única discussão que tinha tido ao longo dos três anos fora precisamente por causa de Damiana: numa tarde em que a ouvia com toda a atenção e se deslumbrava com a capacidade de descrição dos pormenores geográficos da Ilha, passou Carla, uma loura platinada com uma enorme raiz preta no cabelo e disse:
- Dá-te com as pretas dá e depois vem-te cá queixar de macumbas...
- Mete-te na tua vida e cala-te.
Carla não respondeu, mas voltou passados minutos com a Taxista, alcunha que lhe advinha da antiga profissão, e que a tinha levado à cadeia, pois insinuava-se aos clientes e depois roubava-os; e com a Rosa Mota, uma pequenina que dava ares da atleta e que alguém assim baptizara.
- A Careca gostava de ser preta... – provocou a Carla.
As outras duas riram-se e começaram a falar com sotaque africano.
- Nem olhes p’ra elas – disse a Careca abrindo os olhos para Damiana.
- Não olhes p’ra nós não...
- Ela quer-te só p’ra ela...
As provocações das outras eram indiferentes para a Careca mas ela sabia que não o eram para Damiana e levantando-se, disse aos berros:
- JÁ DAQUI P’RA FORA ANTES QUE VOS PARTA AS TROMBAS! ANTES DE FALAREM COMIGO VÃO APRENDER A LER E A ESCREVER!
- Olha... tamém quer ser dótora... acha-se mais esperta que as outras – comentou uma.
- É por isso que fala com as pretas que não sabem falar...
No meio dos risinhos a Careca optou por fazer qualquer coisa que sabia que deixaria as outras confusas:
- Oh Carla, diz-me uma coisa... tu que tens um cabelo louro tão lindo porque pintas as raízes de preto?
A Táxista e Rosa Mota olharam para Carla de soslaio, confundidas, e Carla, pronta para responder a uma qualquer ofensa, ficou de boca aberta a pensar o que havia de dizer e, finalmente, olhou as outras duas e disse:
- Esta afinal é mais parva do que eu pensava!
A Careca e Damiana riam-se e Carla ripostou:
- És mesmo estúpida e nem percebes que ainda ficas pior por te dares tanto com a preta...
- Carla põe-te a milhas, já! – Respondeu a outra abrindo-lhe muito os olhos e chegando a cara ao nariz de Carla. - Eu dou-me com quem quero e com quem me apetece e já agora ficas a saber que nem chegas ao calcanhares dela e qualquer preta aqui te deixa a um canto!
E elevando a voz ainda mais:
- Nunca me viste chateada pois não? Um conselho... não queiras ver... vais arrepender-te p’ra vida!
Aquilo foi dito com uma entoação tal, por uma pessoa considerada calma e pacífica e que nunca levantava problemas, que Carla intimidou-se e pensou que afinal a Careca não era a sonsinha que parecia. Levantou as mãos em ar de pedido de desculpa e afastou-se com as outras duas.
- Aquela da raiz do cabelo foi o máximo – riu-se Damiana, depois das outras irem embora.
- Elas nem perceberam... estúpidas...
- Como é que te lembras-te daquilo?
- Olha, foi uma prima minha que me contou como sendo real e a pessoa a quem fizeram a pergunta ainda respondeu ‘Não, eu pinto é o cabelo de louro’
Disse aquilo fazendo voz de tia de Cascais e riram-se as duas, até o momento de boa disposição ser interrompido pela Chinesa, a quem assim chamavam por ser mesmo chinesa, e que estava na prisão por motivos idênticos a Damiana, ajuda à emigração ilegal.
A Careca via a Chinesa também como contadora de histórias e, se bem que não tivesse o poder descritivo de Damiana, também a ouvia com frequência, falar de Macau, dos furacões que assolavam a zona, e de como se ouviam as sirenes a anunciar mau tempo e a sugerir que as pessoas ficassem em casa.
Qualquer uma que a ajudasse a ‘sair’ dali para fora era uma companheira que ela via com bons olhos e, não sendo racista, tanto lhe dava que fossem brancas, pretas, amarelas ou verdes às riscas. Eram pessoas, e isso chegava e, se tivessem histórias para contar tanto melhor, principalmente histórias de sítios onde ela nunca fora mas que sempre ansiara visitar. Quando souberam que trabalhara numa agência de viagens pensaram que conhecia o mundo e ela explicara que não era bem assim. A Doutora também tinha história para contar de viagens a congressos e conferências onde participara e ela ouvia tudo atentamente.
Um dia rira-se a bom rir quando, em conversa com a Doutora, esta lhe contava como era a cidade de Dubrovnik na Croácia, chegara uma das três irmãs da Brandoa e, ouvindo a conversa, rematou dizendo que não precisava de ir a sítio nenhum pois a Amadora tinha tudo! Era centros comerciais, cinemas, lojas, supermercados e a praia de Carcavelos ficava a quarenta e cinco minutos de camioneta!
Agora, quase a ver o ar fresco da liberdade, revia mentalmente vários momentos que ali passara: as zaragatas da Niña, Pinta e Santa Maria, um aniversário de Cremilde, quando o irmão lhe trouxera lampreia de ovos, a noite em que Lurdes, uma das ciganas, tivera uma apendicite aguda que a levara ao hospital no meio de gritos horrendos que ecoavam por toda a prisão, a chegada dos primeiros livros pela mão do pai da Doutora, as descrições de Damiana, a maldade da Castela, o contentamento por lhe terem dado a organização da biblioteca, a morte da Regina, uma madeirense com problemas cardiovasculares e que acabara por terminar os dias literalmente no interior da prisão.
Lembrava também o dia em que pedira para lhe raparem o cabelo, o que lhe dera um nome novo durante três anos. De repente ocorreu-lhe que não ouvia chamar pelo seu próprio nome há imenso tempo. Lembrava-se de ter lido que, antigamente, não se dizia o nome a qualquer um, pois achava-se que através dele poderiam ser feitas bruxarias ou similares ao dono do nome. Riu-se interiormente e, não fazendo qualquer esforço para chamar o sono, deixou-se ficar relaxada no catre a olhar, sem ver, o tecto.
- Amanhã... amanhã... meia dúzia de horas é tudo o que me separa do amanhã...
O amanhã dominava-lhe o pensamento e deixou-se ficar imóvel a sonhar com o regresso à vida.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário