quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - VII

Teve por companheira de cela Cremilde, a quem chamavam a Cremalheira, por ranger os dentes a noite inteira e, quando em conversa disse que não conseguia dormir porque Cremilde sofria de bruxismo, uma cigana que dormia duas celas à frente deu gritos até cair para o lado, dizendo que já sabia que Cremilde era bruxa e agora tinha a confirmação.
Cremilde estava presa por roubo, que assumia, e maldizia-se por se ter deixado apanhar, segundo ela, pela sua própria advogada. Três pretas retintas, as Azeitonas, mudaram de nome para irmãs Cajazeras, quando ela lembrou a restante comunidade duma telenovela antiga, o Bem Amado, e das três irmãs que andavam sempre juntas. Porém, um ano depois de ter chegado à prisão, entraram de facto três irmãs, muito jovens, todas casadas e com filhos, que estavam presas por alegados maus tratos aos pais, mas que só se falavam quando entravam em acesas discussões, acusando-se mutuamente do crime que as levara para Santa Cruz. Ela baptizou-as como a Pinta, a Niña e a Santa Maria. Ao todo havia quatro ciganas e três delas faziam a sua inveja pois não se cansavam de falar das visitas que tinham recebido.
Ela, uma das ciganas e mais seis outras mulheres, todas acusadas de tráfico de droga, não recebiam visitas, assim como duas outras, as heroínas da prisão, uma por ter dado uma real sova no marido e lhe ter partido uma dúzia de ossos e outra por ter ido mais longe e ter conseguido matá-lo. Nunca soube qual a verdadeira história pois contava-se que a Malhada, assim conhecida por ter imensas manchas na pele causadas por uma despigmentação, cansada de levar porrada, um dia esperou o marido e quando ele entrou na cozinha empurrou o frigorífico contra ele, derrubando-o e deixando o enorme electrodoméstico em cima do homem que tivera morte instantânea por ter batido com a cabeça na bancada da cozinha. Outra versão dizia que tinha deixado cair o secador ligado dentro da banheira quando o marido tomava banho. Uma coisa era certa, era uma pessoa sorridente, embora muito silenciosa, o que levava a pensar que a prisão era bem melhor que qualquer vida que pudesse ter tido em liberdade.
Ao todo eram dez que não tinham visitas e a quem não era permitido fazer tarefas ao ar livre e para quem as guardas olhavam com especial atenção, entre as quais a Castela – não sabia de onde lhe vinha o nome nem se era nome ou alcunha – que adorava picá-las fazendo circular histórias inventadas, ou não, sobre esta ou aquela e pondo algumas das detidas em polvorosa. Este método simples teve o condão de pôr a cadeia em brasa quando entrou uma brasileira, detida por prostituição, sobre quem a Castela contou que dormira com metade da Brandoa, de onde eram as três irmãs Pinta, Niña e Santa Maria. Foi a única vez que a prisão de Santa Cruz do Bispo viu as três irmãs unidas que, como prémio, viram aumentada a sua sentença e ficaram igualmente proibidas de receber visitas e de trabalhar ao ar livre, enquanto a brasileira foi transferida, primeiro para um hospital e depois, dizia-se, para outra prisão, assim como a Castela.
De início foi-lhe difícil habituar à comida, pois mesmo tendo um aspecto razoável, dava-lhe volta ao estômago e provocava-lhe vómitos. Ela que nunca comera sopa no Âncora, o café onde normalmente iam almoçar, por ser servida em tigelas de metal que a faziam arrepiar, agora tinha sempre um serviço daquele gabarito: tabuleiro, pratos, tigelas e copos, tudo em metal. Emagreceu alguns quilos ajudada pelas saudades e pela falta do sol. Andava sempre calada e desconfiava de tudo e todas, com a certeza de ser diferente pois era inocente. Porém, se muitas havia que faziam gáudio dos seus actos, muitas outras reclamavam a mesmo inocência que ela e, das conversas que tinham, chegava a convencer-se que assim era de facto o que a levava a concluir que a Justiça só era justa quando lhe apetecia. Face a estas dúvidas, passava horas a escrutinar cada uma das mulheres que com ela partilhavam o destino, tentando perceber qual delas seria também inocente, coisa que muitas reclamavam alto e bom som, mais alto que ela própria. Imaginava-as lá fora a serem mães e esposas, donas de casa e as mais diferentes profissionais – havia até uma que tinha sido gerente de um banco, e a proximidade do dinheiro tinha sido a sua desgraça – e mentalmente vi-as de avental, em casas diferentes conforme a sua imaginação lhe ditava, a fazer uma qualquer refeição.
No dia que soube da condenação pediu que lhe cortassem o cabelo o mais curto possível, se fosse rapado tanto melhor, pois a sua imaginação repleta de histórias e romances fizera da prisão um sítio com pulgas e piolhos e pior ainda, com brigas onde os cabelos eram puxados e arrancados e ela preferia prescindir do seu rabo de cavalo castanho a ter que passar por isso e, assim que chegou a Santa Cruz, alguém disse que entrara uma careca e ela ficou a Careca, tanto mais que sempre que lhe era permitido cortar o cabelo, voltava a rapá-lo. Não tinha espelhos e Francisco ficara do lado de fora dos muros, logo, não se importava em nada com o aspecto.
Num dia de boa disposição convenceu algumas das companheiras que cortava o cabelo assim porque pertencia a uma religião diferente, mas arrependeu-se logo pois a brincadeira arranjou-lhe confusões com as ciganas, profundamente católicas.
O que lera em livros e vira em filmes confirmava-se agora: teria que se agarrar a qualquer coisa para sair dali com a mesma sanidade mental com que entrara, mas teve consciência que não podia alimentar a raiva nem a angústia dos condenados inocentes que, com frequência, acabam por ser eles próprios vítimas desses sentimentos, e continuou a ler compulsivamente, afastando-se o mais possível da realidade da prisão, das brigas das companheiras, do consumo de estupefacientes e de qualquer ligação fosse a quem fosse.
Imaginava a sua família e em especial o filho, lá fora, a percorrerem as suas vidas e a esperarem, tal como ela, o dia em que tudo aquilo acabaria para poderem voltar a estar juntos. Via Francisco a tomar conta do filho, como pai solteiro, assumindo todas as responsabilidades pela educação da criança e adivinhou uma ou outra discussão entre eles. Os Natais e os aniversários do filho eram as datas mais difíceis e, numa ocasião em que fizeram uma simulação de incêndio, vira pela primeira e única vez, outras mulheres acompanhadas dos respectivos filhos, o que lhe causou uma dor tão intensa que nem conseguiu seguir as indicações das guardas que gritavam teatralmente, fogo, fogo, por ali, por ali, indicando a suposta saída.
Passava os dedos pelas fotografias do filho, de Francisco, da irmã e dos pais que levara consigo para a prisão e olhava-os como se fossem actores de cinema de que gostava muito mas que lhe eram inacessíveis.
Pensava repetidamente nas circunstâncias em que tinha ido ali parar, mas como se pensasse numa outra pessoa, que não ela própria, e tentava lembrar-se das caras do tal Miguel Vidigal, também conhecido como o Músico, do José Resende e ainda dum Baltasar França, também chamado o Miúdo. Supostamente ela seria cúmplice desta gente, que não conhecia nem sabia donde lhe vinham as alcunhas. Fora confrontada com estes supostos conhecimentos por um juiz com cara de anjo e cabelo tão louro que parecia sueco e não acreditara nela. Questionaram-na sobre as várias viagens que estes homens programaram e efectuaram através da agência onde trabalhava, e que tinham sido marcadas e desmarcadas sucessivamente, tal e qual de acordo com um plano de descarregamento de droga conhecido da polícia, cuja informação lhes foi dada através de informadores que lhes disseram antecipadamente passo a passo o que os traficantes iam fazer; na agência não constavam registos dos pedidos destas viagens, sinal de que só alguém a trabalhar lá dentro podia ter efectuado as marcações e depois apagado as pistas. Muito confusa e completamente atónita ainda percebeu qualquer coisa sobre ela própria escolher o tipo de lugar no avião de acordo com um código qualquer, que informava secretamente sobre a actividade da polícia e que, quando os bilhetes electrónicos eram emitidos e enviados, o passageiro sabia se devia fazer a viagem ou desmarcá-la e esperar data mais conveniente.
Esperava que alguém dum qualquer CSI viesse em sua defesa e declarasse inequivocamente que não era ela e sim outra pessoa a cúmplice daquela gente, mas essa personagem continuou como protagonista de séries de televisão e não fez nada em seu auxílio. Soube que todos os colegas da agência foram ouvidos e interrogados pela polícia e dava voltas à cabeça a pensar o que teria ela feito de diferente que absolvesse os outros e não ela. Pensou que talvez tivesse efectivamente feito as tais marcações, como fazia tantas, dezenas e dezenas delas, mas sem qualquer conhecimento de causa do assunto nem intenção escondida! O que teria indiciado a polícia na sua direcção?
Ouviu a condenação como se lhe falassem aos soluços, retendo apenas parte e reafirmando sempre que não sabia quem eram aquelas pessoas, cujas caras nem chegou a fixar. Decididamente alguém dentro da agência sabia muito mais do que ela sobre o assunto, mas deixou-a ficar com a culpa, ser condenada e cumprir a pena. Quando pensava em demasia neste assunto tentava mudar o pensamento para o filho e para a família, recendo ficar alheada da realidade, presa à ira e à vontade de vingança.
Dava-lhe um aperto no peito não saber se o filho a pensava culpada ou inocente, mas esperava que se lembrasse de todas as conversas que tinham tido sobre drogas e que percebesse que a mãe jamais faria uma coisa daquelas. Mas sabia também que a dúvida é das coisas mais poderosas e um miúdo com treze anos que vê a mãe ser condenada por tráfico de droga, tem direito a ter dúvidas. Porém, era animada com a ideia que os avós e a tia Teresa não deixariam a dúvida enraizar-se no espírito do neto e do sobrinho, respectivamente. Quanto ao seu próprio marido, aí era ela que tinha dúvidas.
Como era a maior utilizadora da biblioteca da prisão, foi-lhe permitido trabalhar lá, o que diminuiu a angústia dos dias e das horas. Muitos dos livros eram do mais desinteressante que havia e mais velhos que os trapos e ela propôs que contactassem editores a pedir ofertas de literatura. O pedido levou tempo a chegar ao director da prisão e os resultados positivos não vieram por essa via, mas antes pela mão do pai duma reclusa, a Doutora como lhe chamavam, uma médica acusada de negligência e que ali estava com uma roupa cinzenta igual à das outras. O pai, que também era médico, empenhou-se e conseguiu dezenas de livros, mas muitos deles eram manuais de medicina e, ainda por cima, em inglês e com anos de edição, o que deixava as potenciais interessadas com vontade de os devolver. Concluíram que os editores não sabiam o que fazer aqueles monos e foi uma maneira de se verem livres deles. Mas pelo meio vieram todas as traduções para português de Arturo Perez-Reverte, vários livros sobre as lendas de Avalon de diversos autores e editoras, livros de economia e política, em que ninguém pegou e, entre várias outras coisas, uma colecção da editora Ática das Obras Completas de Fernando Pessoa que tinha uma pequena grande particularidade, que todas desconheciam, todas menos ela: o volume das Odes de Ricardo Reis, era de 1946 mas fora impresso em 1945! Para ela isto era uma preciosidade e teve imensa pena de não ter ali a sua irmã para partilhar a leitura:

O tempo passa
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Além disso, apesar de ser uma oferta, nenhum dos livros tinha a capa dobrada, como a irmã fazia questão de os preservar. Recordava algumas das manias de Teresa e, se lhe pedissem que a definisse, provavelmente diria:
-É uma rapariga que não gosta de livros com capas dobradas.

Quando ganhou um bocado de confiança com Cremilde pediu-lhe que pedisse ao seu irmão, que a visitava regularmente, que falasse à sua própria irmã, que lhe dissesse que morria de saudades e que fosse beijar o filho por ela, com beijos longos e calorosos.
Optou pela irmã com receio da reacção de Francisco, que nunca aceitaria falar com alguém que estava proibido de o fazer, mesmo que esse alguém fosse a mãe do seu filho. Mas o irmão de Cremilde regressou com notícias estranhas: a casa dos seus pais estava vazia, à venda.
À venda? Como assim, à venda? Então onde moravam? A irmã teria casado? Os pais mudaram-se? Para onde? Por instantes passou-lhe a Austrália pela cabeça, onde moravam os pais de Robin. Não, eles não tinham ido para tão longe; teria a situação dela causado alguma coisa? De repente deu-lhe um aperto no peito e subiu-lhe uma agonia: Aconteceu alguma coisa aos meus pais...
Lembrava-se do pai sem dizer nada a não ser chorar perante a figura da filha, presa e em julgamento no tribunal, e a mãe a dar-lhe força e a dizer que tudo se resolveria, que não se preocupasse com o pai, que ele já ficava melhor...
Há quantos séculos é que isto se tinha passado? As breves palavras no tribunal pareciam gotas de água que recolhia num frasco para alturas de muita sede.
O irmão de Cremilde trabalhava nas obras em Torres Vedras e não lhe era fácil andar dum lado para o outro, armado em detective, ainda por cima, sabendo que os contactos estavam proibidos. E assim, os dias iam passando sem que ela soubesse onde parava a família.
Estava sensivelmente a meio da pena, desconhecendo que o Presidente da República assinaria dentro de dias um documento que lhe permitiria, assim como a muitos outros, sair em liberdade condicional em poucos meses. Se bem que o diploma publicado em Diário da República levasse algum tempo a fazer efeito, ela foi transferida para Tires onde passaria o tempo que lhe restava e, em simultâneo, ajudaria a criar a nova biblioteca da prisão, dado que tinha feito um bom trabalho em Santa Cruz.
Quando lhe disseram que sairia dentro de um mês, sorriu mas não se mostrou extremamente entusiasmada. Num sítio como aquele, preferia comemorar os golos sozinha e, com a excitação, passou noites em claro, acariciando a cabeça quase rapada, lembrando-se da sua antiga cabeleira de Rapunzel que, não tardava nada, voltaria a renascer.

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