quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com as capas dobradas - VI

Foi condenada a cinco anos e esteve presa três. Acusada de cumplicidade pela entrada de droga em Portugal, via Marrocos, e de uso de meios da agência de viagens para os mesmos fins. Fruto do aumento da criminalidade nos últimos tempos, as leis recentemente revistas e introduzidas em Portugal, provocaram uma série de alterações no sistema penal e aplicou-se-lhe um regime excepcionalíssimo e duro, em especial para a sua amada família: foi proibida de ter visitas.
Durante dois meses, ainda em preventiva, recebeu a visita do advogado que lhe comunicou finalmente que nada havia a fazer e que era impossível recorrer. Na melhor das hipóteses reduziam-lhe a pena se tivesse bom comportamento e se, cá fora, a onda de criminalidade amainasse e as coisas fossem revistas.
Passou dias sem dormir a pensar quem poderia tê-la colocado naquele inferno. Alguém da agência era cúmplice mas não ela. Mas quem, quem? Reviu cada um do seus colegas e tentou lembrar-se de algum comportamento suspeito nos últimos meses, tal como já fizera imensas vezes, a pedido do advogado que a aconselhara a fazer esse raciocínio, uma vez que jurava a pés juntos a sua inocência.
Júlia era a mais velha na agência, uma espécie de faz-tudo, principalmente com alguns estagiários que D. Elisabete, a proprietária, contratava, através de programas de estágios e parcerias com universidades. Júlia já era avó e não se passava um dia em que não trouxesse novas fotos dos seus netos, sobre quem falava sem parar, descrevendo as novas gracinhas das crianças. Era viúva e ia todos os dias a casa da filha ajudá-la a dar banhos e refeições aos miúdos depois de sair do trabalho. Para além disso, participava activamente em programas de incentivo à leitura na biblioteca pública do local onde morava, contando histórias ao sábado à tarde, no programa da biblioteca conhecido como ‘Hora do Conto’. Conhecia-lhe duas amigas, ambas viúvas também, com quem ia de férias, mas só até nascerem os netos, porque depois disso Júlia dedicara-se-lhes com o empenho de qualquer avó e esquecera as férias.
Por mais que se esforçasse não via Júlia como uma passadora de droga, nem tão pouco a Fernanda, uma mulher de quase cinquenta anos, casada e com dois filhos, um dos quais com uma deficiência física que levava Fernanda e o marido a escrever repetidas cartas ao Presidente da República, ao Primeiro Ministro, à Assembleia da República, aos partidos políticos e a todos quantos ela se lembrasse, queixando-se das dificuldades que os deficientes motores tinham em andar de cadeira de rodas pela cidade. Fernanda fazia parte da Liga Portuguesa dos Deficientes Motores e, não raro, aparecia na televisão a dar entrevistas. Era uma pessoa calma e que inspirava uma confiança profunda e não se adequava ao perfil de passadora de droga.
- Mas qual será o perfil dum passador de droga? – perguntava-se ela, na solidão do seu isolamento. Na verdade, a única coisa que sabia era que as pessoas mais improváveis também caiam em tentação e o dinheiro que estava envolvido, com frequência, fazia esquecer qualquer moralismo. Mas mesmo assim, não, a Fernanda não.
A estagiária que ia fazer seis meses de trabalho na agência, a Rosário, era uma miúda que gastava horas de vida na camioneta a caminho de Nave de Haver, no concelho de Almeida, a sua terra natal e onde viviam os seus pais. Rosário passava o tempo a contar o que acontecia lá aquelas bandas, como a Câmara de Almeida promovia eventos históricos espectaculares, como a recriação histórica do cerco de Almeida, o que levava milhares de turistas à cidade, falava da exploração de volfrâmio por métodos artesanais onde trabalhavam alguns familiares seus, da Ribeira de Tourões, das idas a Espanha e trazia com frequência enchidos e doce de abóbora para as colegas. Estas brincavam com ela dizendo-lhe que, na verdade ela tinha nascido era em Vale da Coelha ou Vale da Mula, outras freguesias do concelho, mas que não queria dizer a verdade pois tinha vergonha dos nomes. Era uma rapariga bem disposta e franca que tinha vindo para Lisboa para estudar e ainda se espantava com alguns factos da vida, motivo pelo qual também estava de lado como passadora de droga.
Com ela trabalhava ainda o Sr. Malheiro, homem de cinquentas e muitos, cuja mulher tinha ligeiros ataques de ciúmes por o marido trabalhar só com elementos do sexo contrário, e fazia frequentes visitas à agência dizendo que tinha passado ali perto e resolvera visitar o marido. Todas sorriam sabendo que mentia e que a verdadeira intenção era vigiar o pobre homem. Quando o Sr. Malheiro atendia uma cliente, todas concorriam na brincadeira e diziam-lhe:
- Ai se a D. Elsa entrasse agora...
Ele sorria em resposta e chegava mesmo a adiantar:
- Se ela hoje aparecer por aqui, agarro numa destas velhas cheias de dinheiro que vão passar o Inverno nas praias da Caraíbas e ofereço-me para ir com ela!
- Oh Sr. Malheiro, a D. Elsa é uma querida, não diga isso – ao que ele respondia:
- ‘Tou a brincar... Eu adoro a minha mulher... e as casas que a família dela tem!
Riam todos, pois sabiam há muito que o Sr. Malheiro trabalhava porque queria, uma vez que a D. Elsa era dona dum património considerável e, um dia, herdaria ainda mais.
Numa ocasião, a dona da agência tivera uns problemas de insolvência financeira e fora o Sr. Malheiro que, dum dia para o outro, a ajudara, com a intervenção de D. Elsa que mostrara uma generosidade enorme. Todos conheciam a história e sabiam que fora assim que, quando a D. Elisabete pode pagar a dívida, antes de o fazer perguntou-lhe se ele queria o dinheiro ou se queria ser sócio dela, o que ele aceitou, sendo actualmente dono duma parte da agência. Apesar de tudo, o Sr. Milheiro era uma pessoa humilde que nunca fazia valer a sua posição de destaque dentro da agência, nunca esquecia o aniversário duma colega, que brindava com um ramo de flores e era uma espécie de confessor de problemas de amor, de todas as que ali trabalhavam. Ele e D. Elsa não tinham filhos e tinham em tempos adoptado uma criança, que morrera com uma intoxicação alimentar, assunto tabu, mas do conhecimento geral. A pachorrice do Sr. Malheiro era atribuída ao facto de ver a vida com outros olhos depois de ter vivido semelhante situação.
Não, o Sr. Malheiro, não contribuía para a desgraça alheia passando droga, era impossível.
Restava a D. Elizabete, a dona, adorada por todos, mulher incansável e trabalhadora, que abria as portas da agência de manhã e as fechava depois de todos terem saído. Amiúde, quando chegavam de manhã, verificavam que ela tinha enviado e-mails à meia noite ou mais tarde, com informações sobre reservas ou respondendo a qualquer solicitação que não fora capaz durante o expediente normal. D. Elizabete ia à cabeleireira todos os dias e andava sempre muito bem arranjada e maquilhada. Na maior parte das vezes era a filha, uma jovem com vinte e dois anos, que lhe fazia as compras e todas viam saias novas, camisas, casacos ou sapatos ainda antes de serem estreados, pois a filha mostrava as novidades a todos na agência, orgulhosa de ter descoberto qualquer coisa e perguntava sempre com um sorriso enorme:
- Isto não é a cara da minha mãe?
Todos concordavam que sim, que era a cara da mãe dela e, dias depois, lá vinha a D. Elizabete com a roupa nova que todos elogiavam, incluindo o Sr. Malheiro.
Lembrava-se de como fora contratada por D. Elizabete, num dia de temporal, às nove da manhã. Chegara à agência completamente encharcada, sem as mínimas das condições para ser entrevistada; meia envergonhada de ter ar de quem saiu da banheira no minuto antes, com a pintura a escorrer-lhe pela cara e com riscos negros de rímel a fazerem ribeirinhos pelas suas bochechas, fora recebida por uma Elizabete que se revelou uma mulher loura e bonita nos seus quarentas e vários anos. Elizabete mostrou uma aflição não fingida e levou-a à cada de banho, ajudando-a a limpar-se e a compor-se. Arranjou-lhe até um casaco que por ali andava, conversaram sobre o tempo danado que se fazia sentir nas últimas semanas, como era prejudicial para agência pois, as pessoas não sentem vontade de sair de casa com um tempo assim, muito menos de viajar. O pequeno gabinete de Elizabete estava quente e ela aqueceu rapidamente, depois de ter metido o revoltoso cabelo num elástico e de ter limpo a cara de toda a maquilhagem. Desde esse primeiro instante achou que a D. Elizabete era uma mulher com preocupações muito humanas o que se veio a confirmar ainda mais ao longo dos anos: ao menor sinal de doença de qualquer um, D. Elizabete mandava-os para casa sem apelo nem agravo. Dera uma semana extra de férias a Júlia na altura dos nascimentos dos seus netos; via com sentida emoção os esforços de Fernanda com o seu filho e dava-lhe dias para tratar de assuntos diversos; quando morrera o filho do Sr. Malheiro, D. Elizabete não poderia ter sido mais compreensiva e amiga da família. Com frequência Rosário ‘perdia’ a camioneta de Almeida para Lisboa e D. Elizabete tinha sempre uma palavra de apoio para minimizar o constrangimento da rapariga. Além disso, as viagens que faziam nas férias, ou as viagens de familiares e alguns amigos, eram sujeitas a descontos brutais que D. Elizabete dizia serem mais que merecidos. Todos trabalhavam afincadamente e não olhavam a horas extraordinárias quando era necessário fazê-las pois sabiam que a ‘patroa’ era do melhor que havia. Quando o seu próprio filho nasceu, D. Elizabete fora das primeiras a visitá-los ainda no hospital e oferecera-lhe a cama do bebé, com tudo o que ela tinha imaginado, mas que sabia ser de difícil aquisição, face à forretice do seu próprio marido.
Na sua opinião, Elizabete Tavares estava também completamente de fora como passadora de droga.
Por outro lado, havia clientes que nunca se deixavam ver: faziam tudo por e-mail e pagamentos por transferência bancária. Conheciam-lhes os nomes, a alguns conheciam as profissões, mas não as caras. Lembrava-se de uma vez ter ido almoçar com D. Elizabete e desta ter ficado a dar um dedo de conversa a um homem que encontraram e, depois de se despedir, ter comentado que era o Sr. José Arruda, um dos maiores clientes da agência, engenheiro numa multinacional que tinha mais horas de voo que muitos pilotos da TAP, e que só a D. Elizabete conhecia, embora qualquer um deles falasse com ele ao telefone e lhe fizesse marcações; mas como não sabia quem era não prestara atenção à cara do homem e seria incapaz de o reconhecer. Como este havia mais, assim como havia eventuais clientes que não eram regulares e marcavam na agência uma única vez. A quantidade era imensa.
Dos regulares lembrava-se duma família de quatro elementos que, passaram a três quando um dos filhos casou, passaram a dois quando casou o outro, e agora já eram novamente quatro pois os avós viajavam com os netos. Ela era a D. Matilde e trazia sempre uma lembrança para todos na agência quando regressava de férias.
Lembrava-se também duma mulher que trabalhava na Associação Bandeira Azul da Europa, trabalho que invejava, pois a senhora passava a vida a viajar, a verificar a pureza da água pela Europa fora em tudo o que era praia e a ajudar a decidir se seria contemplada com Bandeira Azul ou não.
Vinham-lhe à lembrança inúmeros outros que ia pondo de lado, não lhes encontrando nada que os ligasse à droga.
Miguel Vidigal, José Resende e Baltasar França, de quem supostamente era cúmplice, eram nomes que nada lhe diziam. Nada lhe diziam a ela, mas alguém sabia bem demais quem eram e ela estava a pagar por actos alheios.

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